O que faz de alguém um pai?
Eu não sei se o garoto Sean Bianchi Goldman deve ficar com o pai biológico, David, ou com o padrasto, João. Resolvi, então, pedir licença para expor não minhas certezas, mas minhas dúvidas. Peço desculpas aos leitores que esperam uma sentença, mas não tenho nenhuma. O que tenho são muitas perguntas. E a maior delas é sobre o que faz de alguém um pai.
Me assusta esse clima de jogo de futebol – hoje competindo com os gols do Ronaldo no Corinthians – em torno do destino de uma criança de nove anos. E me surpreende como parece fácil para quase todos julgar o futuro de alguém, apenas com base no que leu, viu ou ouviu na imprensa. Me impressiona como quase todos têm certeza do que é melhor para uma criança que nunca conheceram. E me incomoda essa facilidade de se tornar juiz e dar sentenças incontestáveis sobre o destino de pessoas.
O que me chama mais atenção, porém, é que a maioria dos argumentos em favor da “certeza” de que o menino deve ficar com o pai biológico podem ser resumidos por uma espécie de “clamor do sangue”. David teria mais direito do que João porque é pai. E é pai porque tem o mesmo sangue.
Volto então à pergunta central que proponho aos leitores. O que faz de alguém um pai? A mim, não parece que a resposta seja – apenas – o sangue.
David é um bom pai porque quer a guarda do filho? Ou David é um mau pai porque teria ficado quatro anos sem ver o menino por conselho de advogados espertos? David é um bom pai porque diz que ama o filho em programas de TV de grande audiência? Ou David é um um mau pai porque exporia comercialmente o filho de todas as formas, de chaveiros a camisetas?
Sua ex-mulher, Bruna, sequestrou o menino e o carregou para longe de um pai amoroso? Ou fugiu, com seu filho, para o país e a família onde se sentia segura, de um homem que quebrava armários com os punhos? João, o padrasto, é um bom pai? Ou tem interesses escusos para ficar com o filho da mulher que perdeu? Como será para Sean mudar de língua, de país e de família depois de tantos anos? Ou como será ficar?
Não sei. Mas me espanta constatar que todos parecem saber. E não só saber, como ter certeza.
O argumento totalitário do sangue, esgrimado em todos os fóruns como prova incontestável de paternidade, pode ser muito perverso. Já fiz reportagens sobre crianças abusadas, por violação sexual e espancamentos, e ouvi mais de uma vez, de mães e familiares: “Ele machuca, é violento, mas é seu pai. E pai é pai”. Como se “o sangue” desse a esse homem um poder de vida e morte sobre seu filho. Como se o sangue – esse clamor atávico – fosse tudo o que devemos levar em conta para decidir qual é a melhor escolha para uma criança.
David pode ser um ótimo pai, embora alguns sinais possam nos fazer suspeitar de que não. Assim como João pode ser um ótimo pai. O fato de que a família de João tem dinheiro não o transforma imediatamente em carrasco. E o fato de David não ter dinheiro não o converte em vítima. A vida é um pouco mais complexa que isso. E esse é um caso difícil. Qual é a melhor resposta para o menino?
Não sei. Mas eu, que estou longe de achar a Justiça brasileira um modelo de eficiência, espero que os juízes de fato e de direito exerçam sua espinhosa tarefa com mais dúvidas e menos pressa do que aqueles que berram sentenças definitivas tanto aqui como nos Estados Unidos. E que a sentença definitiva seja a melhor possível para Sean, já tão violado no direito de não ter sua vida transformada em polêmica internacional.
Nesse tema, só tenho uma certeza. Compartilhar o “mesmo sangue” comprova apenas quem era o dono do espermatozóide que gerou aquela criança. Mas não faz de alguém um pai, no sentido mais amplo e complexo do conceito moderno de paternidade.
O que faz de alguém um pai é uma boa pergunta para transformar essa polêmica em algo que nos ajude a ser melhores do que somos. Qual é o melhor pai para Sean Bianchi Goldman é tarefa da Justiça responder. Com todos os defeitos que a Justiça possa ter, a sociedade democrática ainda não encontrou um instrumento melhor para julgar destinos em suspenso.
Por fim, a todos que se apressam a virar juízes, sugiro exercitar o instrumento da dúvida. São as perguntas que nos mostram os caminhos – não as certezas. E cuidado. Um dia vocês também poderão ter seu destino decretado com essa mesma facilidade por pessoas tão sensatas como vocês.
(Publicado na Revista Época em 12/03/2009)