Sobreviventes

O que nos faz continuar vivendo depois de um grande trauma? Gente que beijou o limo do fundo do poço e voltou para contar sua história

Acabo de assistir ao documentário “Sobreviventes”, de Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro. Pela segunda vez. Explico. Na primeira vez, na última quinta-feira, quando passou na TV Cultura, ele mexeu tanto com o que há de mais enterrado em mim que apaguei, sentada, diante da televisão. Apaguei no depoimento da diretora de teatro Tiche Vianna, que um dia saiu para dar uma aula, grávida de oito meses, e foi interceptada por um caminhão. Ficou em coma. Teve três paradas cardiorrespiratórias e perdeu um pulmão. Seu bebê foi arrancado de dentro dela. Quando despertou, semanas depois, ainda sem conhecer o filho, ela disse: “Tragam o Miguel”. Colocou-o contra o rosto, sentiu a sua pele macia, aquela “vida muito nova”, e descobriu não apenas que podia, mas que desejava viver.

Não foi nessa parte que eu apaguei. Foi quando ela disse a seguinte frase: “O espectador não é um contemplador. Minha função é tirar o espectador do conforto, do resolvido, e colocá-lo diante do desafio da escolha. A vida para mim é uma coisa muito palpável, porque a morte saiu do universo da abstração”. Tiche falava sobre a mudança de sua relação com o teatro depois de ter morrido e renascido no instante em que seu filho nasceu.

Eu apaguei num sono de fuga. Despertei no meio da madrugada, sentada no sofá da sala, remexida por dentro, esfarrapada. Voltei a dormir, dessa vez na cama, depois de alguma insônia e de muitos conflitos. Acordei feliz. Descobri que há muito tempo eu venho fazendo a minha escolha, que é reeditada diariamente, que se reinventa a cada amanhecer, que volta atrás em pequenas covardias, que se perde seguidamente para ser encontrada mais adiante. Às vezes me confundo e esqueço que fiz uma escolha, aí preciso que alguém me lembre. Minha escolha depois de uma vida de muitos pequenos traumas, alguns grandes, é viver para além da zona de conforto, na busca radical por chegar mais perto de mim mesma, seja lá o que isso signifique.

Minha escolha foi feita 27 anos atrás, quando minha filha nasceu. Eu estava estilhaçada por dentro, tinha 15 anos e me sentia literalmente em cacos, uma pessoa feita de estilhaços, por uma série de vivências que pertencem apenas a mim. Como um vaso quebrado em pedaços muito pequenos, eu sabia que me colar era impossível. Isso eu sabia. O que eu não sabia era como ser mãe. Maíra, porém, sabia que eu era sua mãe.

Desde sempre ela me reconheceu. Naquele olhar de bebê recém-emerso dos meus confins, ela me dizia que eu era sua mãe. E então, lentamente, com dificuldade, eu me tornei mãe da Maíra. E mais lentamente ainda eu descobri que sobreviver não é colar os pedaços. Não há como colar. O que a gente pode fazer é pegar aqueles pedaços todos e se reinventar. Com todas as nossas fissuras, com todas as nossas marcas, com toda a nossa história inscrita nesse corpo ao mesmo tempo íntegro e costurado pela trama raramente regular da vida.

Hoje Maíra cria um sentido para sua vida, com dificuldade, com fúria, com paixão e com uma generosidade que é só dela. E sou eu que a olho com um amor tão grande que parece às vezes não caber dentro de mim. Mas sigo me buscando, para além dela e para dentro de mim. Por isso dormi naquele ponto do filme, depois um ano de perdas as mais variadas, de um profundo confronto com a finitude da vida e das histórias de amor interrompidas antes do final. E acordei para viver.

Consegui então assistir ao “Sobreviventes” até o fim. Assistir, não. Fui tirada do “conforto, do resolvido”. Há muito tempo algo não me impactava tanto. Da primeira à última frase cinematográfica. Não sou capaz de teorizar sobre o que é arte, mas sei que entrei em contato com ela quando algo me transforma, como nesse documentário. Dos depoimentos ao mesmo tempo terríveis e belos à estética do filme, entre os limites das paredes de tijolos e a passagem do trem, ele não tem sobras. É todo contido para que nós, os espectadores, possamos transbordar. As pessoas dão seus depoimentos sentadas numa poltrona, mas nós somos arrancados da nossa. É uma pena que exista tão pouco espaço para os documentários nacionais. “Sobreviventes” deveria estar nos melhores cinemas – e passando de graça nas lajes do Brasil.

Um dos depoimentos é do cineasta Jean-Claude Bernardet, soropositivo. É arrasador. Ele leva todos nós, que sabemos que vamos morrer, mas não sabemos quando, a uma reflexão profunda: “Minha vida se transforma depois da meningite. A partir desse momento eu era sujeito a uma morte a curto prazo. Eu estava já com a morte inscrita. Só que, para mim, ela foi uma libertação. Uma libertação bastante grande e bastante produtiva. Foi uma época de muita produção de filmes, roteiros. Usei isso para me projetar para frente, para me abrir…” Ele continua: “Com o coquetel, minha carga viral baixou, eu tinha uma nova chance. Mas minha cabeça tinha se organizado no sentido de uma vida ativa, às vezes de provocação, de não aceitar o que me desagradava e de morte breve. Depois de todos os esforços que eu fiz, agora tinha de reorganizar minha cabeça em função de uma morte de prazo indefinido. E isso foi o mais difícil. A partir desse momento, pouco a pouco, a minha vida se tornou menos interessante”.

Há mais. Cada testemunho nos carrega para uma inquietação além. Tião Nicomedes, que se tornou morador de rua depois de uma queda num acidente de trabalho, abandonado pela família, pelos amigos e pela mulher com quem estava de casamento marcado, sem nenhum olhar onde se reconhecer, perguntava à enfermeira no hospital: “Eu estou morto?”. Bell Marcondes, na luta contra a dependência da cocaína, conta: “A cocaína atenuava a dor de viver. É um esforço que eu gasto, diariamente, pra não usar, ele rouba toda minha energia. Porque depois que tirou a droga, voltou para aquela moça que não tem habilidade para viver”. Dermi Azevedo, torturado pela ditadura junto com a mulher e o filho de um ano e meio, afirma: “O torturador retira a vida das pessoas, a vida interior. A gente deixa de ser sujeito, se despersonaliza, desaparece como pessoa. Eu não tenho rancor, eu tenho memória”. Risonete Fernandes, internada várias vezes em hospitais psiquiátricos e tratada com eletrochoque, diz: “Fui quase apagada diversas vezes. Mas a vida ainda está dentro de mim”. E Luiz Alberto Mendes, ex-presidiário, assassino, escritor, nos provoca: “Dizem que o poder corrompe, mas a falta de poder corrompe muito mais. Sem ter poder sobre você mesmo, você se deteriora, perde a vontade de viver. E tudo o que eu tenho é vontade de viver. Sabe o que é, meu, desde que nasci eu nunca coube dentro da minha vida”.

Os diretores Miriam Chnaiderman, que além de documentarista é psicanalista, e Reinaldo Pinheiro, tiveram o reconhecimento da confiança de seus entrevistados. Os depoimentos contêm uma entrega contundente. Miriam e Reinaldo não arrancam nada de ninguém, apenas escutam. A câmera foca a boca, por onde a voz se liberta em forma de discurso. Os pés que batem, nervosos, no chão. As mãos que se crispam, as unhas que carregam fragmentos do mundo. E as marcas. Elas causaram meu primeiro arrebatamento ao ver o filme. Todas as marcas são apreendidas pela câmera, devassadas por uma luz terna. Pela primeira vez, não vi as rugas, as olheiras, as cicatrizes como algo feio, sinal da degeneração do corpo, da proximidade da morte.

Achei todos tão belos não apesar das marcas, mas por causa delas. O filme me levou a apreender, não racionalmente, como sempre fiz, mas pela vivência das cenas, as marcas como inscrição da vida. E ao me olhar no espelho, depois, reconheci também as minhas como história. Tenho minha vida contada em meu corpo. Nós todos temos. Pode haver testemunho mais eloquente que esse?

Por que sobrevivemos à grande queda ou às sequências de pequenos, mas dolorosos tombos? Porque não sobrevivemos. Percebo que não há como sobreviver, só o que podemos fazer é viver. Reinventar a vida incluindo nela o sangue, o barro e o limo do fundo do poço. Criar um sentido para o que aparentemente não tem nenhum. Não existem sobreviventes. O que existe são viventes.

(Publicado na Revista Época em 27/04/2009)

Como medimos nossa vida?

A lei antifumo de José Serra, que vai proibir o cigarro em quase todos os ambientes fechados do estado de São Paulo, me faz pensar na medida da vida. O cigarro faz mal, causa câncer e outras doenças, o tratamento custa dinheiro público do SUS, sem contar o inventário de mortes. Bani-lo dos bares e restaurantes, dos locais de trabalho, de quase tudo menos a casa do fumante (por enquanto), em tese é pensar na defesa da vida. É também estar adequado a esses tempos em que a saúde tornou-se um valor absoluto para uma espécie que lida de forma cada vez pior com a certeza da morte.

A questão que a lei evoca em mim, porém, é outra. É a da vida condenada não pela doença, mas pela saúde. A cada manhã, fingimos que nunca vamos morrer. Queremos esticar a vida a qualquer preço – e não apenas a vida, mas a juventude. Envelhecer e morrer nos aterroriza. As cirurgias plásticas, os cosméticos, as vitaminas, os medicamentos ortomoleculares, os alimentos orgânicos, os lights e os diets, as academias movimentam uma gigantesca indústria alimentada pelo nosso medo da decadência e do fim. Crescem e multiplicam-se pela força de nossa ilusão de que a velhice e a morte podem ser burladas.

Um número cada vez maior de pessoas consome seus dias numa rotina de cuidados para preservar saúde e juventude. Exercícios e pílulas. Cremes e vitaminas. Alimentos orgânicos. Carnes margas. Nada de fritura. Mais exercícios. Cigarro, jamais. Álcool, cada vez menos. Ovos, consulte a pesquisa do momento. Gorduras trans, fuja.

Tomamos todos os cuidados, olhando para os lados para nos assegurar que o fim não nos espreita. Sempre com medo de que a doença, a decrepitude e a morte nos descubra distraídos em alguma esquina de prazer roubado. Quando transgredimos, nos sentimos culpados, algo catastrófico vai nos acontecer. Seremos punidos pela nossa ousadia de nos entupir de chocolate ou nos exceder no bar. Corremos para o espelho para ver quantas gramas aumentamos ou se não surgiu uma ruga nova. Estamos mais velhos? Estamos mais mortos? – é o que perguntamos o tempo todo, mesmo que não pronunciemos a palavra fatal.

Mas será que temos de não viver para viver? Ou melhor: qual é a medida da vida?

Há pouco tempo, revi o filme sobre a trajetória do Cazuza – Cazuza, o tempo não pára (2004.) Herói dos anos 80, Cazuza contraria todos os valores de uma vida plena de saúde física. Nada mais distante de Cazuza do que essa cidadania cheia de proibições. Aquele que talvez tenha sido, como disse Caetano Veloso, o maior poeta de sua geração, morreu jovem, de Aids, ao fim de uma vida de muito sexo, álcool, drogas, amores e poesia. Mas não foi essa morte precoce que me impactou. E sim a intensidade de sua vida. É a vida de Cazuza – e não a morte – que evoca perguntas e inquietação.

Fiquei pensando sobre o que esse anti-herói teria a nos dizer nesses tempos obstinados pela saúde. Percebi que, com sua vida intensamente vivida, Cazuza questiona um valor que nos é muito caro: a duração da vida. Não é por acaso que diante de uma doença sem chances de cura as pessoas tentam esticar a vida a qualquer preço, submetendo-se a todo tipo de tratamento invasivo, doloroso e alienante. Submetem-se à imagem clássica do doente furado por agulhas, amarrado a tubos, privado de sua própria morte, por consequência privado de sua vida na última cena.

Esse é só o desfecho, na morte, de um valor que regeu a vida inteira daquela pessoa. Esticamos o comprimento da vida pela vida toda – e não apenas na doença. Não é essa a questão do momento? Proibir o fumo não é um pouco isso? Eliminar as gorduras trans não é um pouco isso? Evitar qualquer excesso não é um pouco isso?

Diante de nossa vida longa, Cazuza nos confronta com sua vida breve. O que Cazuza faz, ao nos confrontar com sua poesia contundente também na literalidade dos dias vividos, é propor um outro valor para medir a vida: não mais o comprimento da vida, mas a largura. Quando assisto ao filme de sua vida, o que vejo não é uma vida desperdiçada, mas uma vida sem um segundo desperdiçado.

Cazuza aponta seu dedo atrevido para a nossa vida condenada não pela doença, mas pela saúde. Para a nossa vida que não bebe, não fuma, corre quilômetros numa esteira sem chegar a lugar algum, não come feijoada nem churrasco por causa do colesterol, dorme pouco e trabalha a maior parte do tempo em que está acordado para poder comprar todos aqueles artigos de consumo que supostamente vão tapar o buraco existencial deixado por essa vida sem vida.

A vida que nossa sociedade propõe como um valor é uma vida com saúde. E com uma compreensão do que é saúde determinada por contingências históricas – e mercadológicas. Mas pagamos caro por essa vida que nos prometem longa. Talvez seja uma longa vida sem vida mesmo antes da doença e da morte. E aí, sim, diante da doença e da morte é preciso, de novo, espichar a vida a qualquer preço porque não fomos capazes de alargar a vida quando tínhamos saúde.

E com isso não estou defendendo que tenhamos todos de nos matar de overdose numa grande orgia sexual. Muito menos fumar até aparecer um câncer no pulmão. O conceito de intensidade só pode ser dado por cada um de nós. Como vivemos nossa vida – ou nossa morte – é livre arbítrio. Apenas, talvez, podemos parar para pensar com qual medida queremos viver a nossa vida desde já. O comprimento ou a largura?

(Publicado na Revista Época em 20/04/2009)

Em Porto Velho, não diga que o rei está nu!

Estive em Porto Velho, Rondônia, no final de março. No norte do país, o estado se prepara para a construção de duas controvertidas usinas no Rio Madeira, Santo Antonio e Jirau, obras que são vitrines do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, e já mereceram visita recente do presidente Lula. Funcionários especializados das empresas dos consórcios responsáveis pela implantação das usinas estão chegando com suas famílias para se instalar na capital pelos próximos anos.

Como sempre que viajo, por curiosidade pessoal e por obrigação profissional, gosto de ouvir as pessoas nas ruas. Em Porto Velho, as reclamações eram muitas. Os que estão chegando, pelas dificuldades que encontram. Os que estão lá, porque as dificuldades que já existiam multiplicaram-se com a chegada de mais gente. No domingo em que me despedi da cidade, a manchete de um dos jornais da capital era: “Médicos ameaçados de morte nos postos de saúde da capital”. A causa: demora no atendimento.

As razões que me levaram a Rondônia eram outras e nada tinham a ver com a precária infra-estrutura de Porto Velho. Mas, para um jornalista, deixar de contar uma história é deixar de cumprir seu dever. Decidi fazer uma matéria para este site, com foco no cenário encontrado pelos recém-chegados. Antes, como agora, o interesse jornalístico era óbvio.

Na matéria, eu mostrava que Porto Velho tinha problemas sérios de atendimento nas áreas da saúde, educação e saneamento básico. E um pouco mais: carência de espaços públicos, como praças e parques, ruas e calçadas esburacadas e acúmulo de lixo. Quem chegava, encontrava ainda aluguéis triplicados. Quem já estava lá, tinha dificuldade de renovar seus aluguéis porque as imobiliárias apostavam no poder aquisitivo dos novos moradores.

Essa era a história. Por contá-la, fui transformada numa espécie de inimiga pública de Rondônia. Como foi afirmado num artigo, em um site, “Nunca na história deste Estado tantos em tão pouco tempo se levantaram para atacar uma mesma pessoa, a anti-heroína Eliane Brum”. Uma das pessoas entrevistadas por mim, com nome e sobrenome na matéria, foi caluniada e perseguida. Um dos caluniadores descobriu suas fotos no Orkut e estimulou, ainda, uma campanha contra ela pela internet. Comentários feitos nesse site – e em outros – referiram-se a mim e a meus entrevistados com palavrões e ofensas de todo o gênero, passíveis de serem enquadrados como crime no Código Penal. Para não violar a lei, eles não serão reproduzidos aqui.

No início, fiquei chocada e sem entender. Afinal, sou jornalista há mais de 20 anos e já fiz centenas de matérias denunciando problemas de saúde, educação e saneamento básico, sem que jamais alguém estranhasse o fato de estar fazendo meu trabalho. Respirei fundo e passei a desconstruir as críticas, com a convicção de que deveria aproveitar a oportunidade para aprender mais sobre Rondônia.

Denunciar problemas é uma das mais importantes obrigações da imprensa em qualquer país do mundo. Apenas governos de países totalitários se notabilizam por atacar jornalistas que mostram os fatos como os fatos são. Em nenhuma das reações à matéria – de parte dos políticos, empresários e população –, alguém afirmava que os problemas mencionados na matéria não existiam. As informações estavam corretas. O suposto crime ao qual me condenavam era o fato de divulgá-las no site de uma revista nacional.

Cheguei então a uma curiosa conclusão: fui caluniada publicamente por ter ousado dizer que em Porto Velho há problemas. Ou seja: para parte da população e dos dirigentes, o que revolta não são os problemas, mas dizer que eles existem. Ou seja: basta apedrejar quem denuncia os problemas que os médicos vão se multiplicar, as vagas na escola vão aparecer e os buracos desaparecer.

A próxima pergunta era óbvia: por que as pessoas que se unem para me difamar não se unem para reivindicar a melhoria das condições de vida em Porto Velho? Por que não usam essa indignação para exigir cidadania e cumprimento das promessas de campanha? Não sei. Bom para os responsáveis que os eleitores se enfureçam não com os problemas, mas com quem diz que os problemas existem.

Onde eu já vi isso? Um inimigo comum sempre foi muito útil para tirar o foco das mazelas reais. A História é pródiga em exemplos, no Brasil e fora dele, no passado e no presente. O truque é velho, o surpreendente é que alguém ainda caia nele. Melhor, claro, se o suposto inimigo vem do Exterior. Sim, porque foi isso que eu também descobri. Em Rondônia, eu sou uma estrangeira. Eu e meus entrevistados que lá chegavam. Nós todos, que não gostamos de buracos nas ruas, assistência ruim e desmatamento, deveríamos voltar para o lugar de onde viemos, o Brasil. Como “estrangeiros”, não temos direito de apontar mazelas.

Alguns ressuscitaram jargões da ditadura, período histórico, aliás, em que Rondônia multiplicou muitas vezes a sua população por estímulo do governo federal e de sua desastrada ocupação da Amazônia. Foram adaptados os mantras, algo como “Rondônia, ame-a ou deixe-a”. Eu, claro, não a amava. Nem os recém-chegados que ousavam criticá-la. Mais uma conclusão: para amar uma cidade é preciso ser cego. Deixe seus olhos e seu senso crítico na divisa. Ou seria fronteira?

Então entendi. Eu deveria ter escrito uma fábula sobre as maravilhas da cidade de Porto Velho. Me enganei de conto. Acabei protagonizando uma versão rondoniense de “A roupa nova do rei” e virei aquele menino que ousa dizer que o rei esta nu. Alguém esqueceu do fim da história. No meu livro, o menino não era atacado por dizer a verdade. Era o rei que ficava envergonhado ao ver que todos enxergavam sua nudez.

O problema é que eu amo Rondônia. Amo tanto que acho que Porto Velho merece ser uma cidade melhor do que é. E ouso achar isso porque sou brasileira e aquele estado me pertence tanto quanto a qualquer um. Acabo de voltar de uma viagem pelas capitais amazônicas. E, se todas têm problemas, nenhuma é tão carente de infra-estrutura e de espaços públicos quanto Porto Velho. E isso não acontece porque é uma cidade nova, porque outras o são na Amazônia.

Fazer de Porto Velho um lugar melhor para viver é tarefa de todos nós. E minha melhor colaboração é fazer bem meu trabalho de jornalista. Por isso, passada a decepção causada pela virulência das ofensas, não vejo a hora de voltar a Porto Velho e me debruçar sobre outros graves problemas da cidade e do Estado. É uma pena que jornalistas de todo o país não viajem mais seguido a Rondônia para exercer o ofício de registrar a história cotidiana do Brasil.

Devo desculpas, sim, a uma de minhas entrevistadas e à sua família. Ao contar suas dificuldades de adaptação a Porto Velho na matéria, eles foram vítimas de uma violenta reação por parte da população. Conversamos por cerca de uma hora, por telefone, dias depois dos ataques pela internet. Eles também estavam revoltados comigo. Era eu a culpada. Qual era o problema? Eles tinham dado a entrevista, as informações estavam corretas, mas, ao citar seu nome e sobrenome na matéria, foram crucificados. Se já estava difícil se adaptar à cidade, pior ficou com parte da população mandando que, se não estivessem gostando, que voltassem para casa. Como se não tivessem tanto direito quanto qualquer um de estar ali e de falar sobre as dificuldades que enfrentavam.

Eles têm razão. Eu não deveria ter divulgado o nome deles na matéria. Costumo dar palestras e oficinas sobre Jornalismo e um dos tópicos que abordo é a proteção das fontes. Nós, jornalistas, temos o dever de saber o que pode acontecer com nossos entrevistados quando as matérias são publicadas. E esse é um cuidado que eu sempre tomo no exercício da profissão. Nunca imaginei, porém, que alguém pudesse ser perseguido por dizer que encontrou problemas numa capital. Aprendi. Em Rondônia, só podemos divulgar os nomes dos entrevistados se eles afirmarem, como os bajuladores da fábula, que o rei está vestindo o mais belo traje do mundo, de preferência tecido com ouro e prata.

Já eu, como jornalista, sigo cumprindo meu dever: o rei está, sim, nu. Porto Velho tem problemas. E eles são graves. Como cidadã, espero que a parte mais lúcida da população, que também se manifestou, continue reivindicando uma cidade melhor para viver. Como jornalista, vou seguir fazendo a minha parte.

(Publicado na Revista Época em 13/04/2009)