Você gosta do que faz?

Quando o trabalho massacra. E quando liberta

Em 13 de julho, a capa de Época apresentava a seguinte questão: “Dá para ser feliz no trabalho?”. A reportagem, baseada em dois livros sobre o tema, me fez pensar sobre a minha relação com o trabalho. Eu adoro trabalhar. Mas conheço mais gente que detesta do que gente que gosta do que faz. E o curioso é que muitos dos que não gostam falam mais de trabalho do que eu. Não do trabalho em si, mas do ambiente do emprego. Parecem presos às disputas de poder, às fofocas, a quem está sacaneando quem, ao que o fulano disse ou deixou de dizer, aos supostos privilégios de um em detrimento de outro. São alimentados pelas pequenezas do cotidiano que os massacra. E, mesmo que não admitam, também colaboram com sua cota de intrigas. Mesmo que não admitam, há um prazer nessa dinâmica do dia a dia, seja num escritório revestido de mármore, seja num chão de fábrica.

Fiquei pensando por que eu adoro trabalhar. Primeiro, para mim há uma diferença fundamental entre trabalho e emprego. Na minha divisão pessoal, o emprego é o lugar onde eu trabalho. Se meu emprego permite que eu trabalhe, é um bom emprego. Se não permite, é hora de sair em busca de um que me deixe trabalhar. Então, é uma relação de troca, para além do salário. Eu faço da melhor maneira aquilo que sei fazer de melhor, e o emprego me dá as condições e a autonomia para que eu possa fazer o melhor que sei fazer. Se essa relação está equilibrada, todos ganham. E eu posso trabalhar sossegada.

De tempos em tempos, eu faço uma análise dessa relação de equilíbrio. O resultado me mostra se algo precisa mudar. Na minha avaliação, interna e pessoal, entram não só as questões objetivas, mas também as subjetivas. Ou seja: o salário, os equipamentos, as condições, o espaço, o investimento é importante, mas ser tratada com respeito e educação é tão importante quanto. Se um dia eu tivesse um salário milionário, mas meu chefe cometesse o que hoje é chamado no Código Penal de assédio moral, tenho certeza de que não ficaria um minuto a mais.

Deixar-se maltratar arrebenta com a nossa autoestima, nos quebra a espinha. E ninguém trabalha bem de espinha quebrada. Trabalhador aniquilado nos seus desejos só serve a chefe incompetente. E nenhuma empresa, tenha o tamanho que tiver, pode ser bem-sucedida se tolerar gente assim em cargos de chefia. Se não for pelos outros cem motivos, basta um: chefe abusivo mata a iniciativa e a criatividade.

Eu aprendi sobre o valor do trabalho com meu pai, Argemiro. Meu pai foi o penúltimo dos 12 filhos de uma família de agricultores, descendentes de imigrantes italianos. Dos 12, os gêmeos sucumbiram no parto e outras duas, tia Lídia e tia Henriqueta, morreram ainda na infância, por acontecimentos tão absurdos que cada um deles rende uma outra história.

A família vivia no interior do município de Ijuí, no Rio Grande do Sul, num lugarejo chamado Barreiro, que sempre fez por merecer o nome que tem. Meu pai passou a primeira infância pisando a geada do inverno gaúcho com os pés nus, tomando banho de rio mesmo quando a água era quase gelo. Meu avô era fabricante de erva-mate e morreu depois de passar mal no soque, extenuado de tanto trabalhar. Minha avó se foi três anos depois. Aos 15 anos, meu pai e

Seus irmãos mais velhos cumpriram o desejo paterno, o de que o filho mais novo conhecesse as letras. Meu pai pagou os estudos no colégio interno da cidade fazendo limpeza e cuidando dos outros estudantes. Herdeiro de gerações de analfabetos, tornou-se um professor apaixonado e ajudou a fundar uma universidade. Até hoje, perto dos 80 anos, quando ele anda pelas ruas encontra ex-alunos já de cabelos brancos, que o olham com reverência e o chamam de “professor”. Muitas e muitas vezes ao longo da minha vida topei com gente que fazia questão de me dizer: “Seu pai mudou minha vida. Sou o que sou por causa dele”.

Eu, que sou a filha mais nova, e meus dois irmãos, nos criamos num mundo em que o trabalho não era apenas necessário para pagar as contas, adquirir casa própria, carro e bens de consumo. A gente tinha pouco disso tudo e ninguém ligava muito, porque tínhamos o suficiente para os livros e para a comida. Nosso pai nos ensinou com seu exemplo, mais do que com suas palavras, que o trabalho era a expressão de nosso ideal. Era a construção cotidiana de nossa marca singular na História.

Nosso trabalho era para nós. Mas só era para nós se, ao mesmo tempo, não fosse para nós. O trabalho de cada um só se cumpria se pudesse ser para o outro, se transformasse para melhor a comunidade, o mundo em que vivíamos. Não fosse isso, não seria um trabalho, seria um emprego. E, como empregados, não mais como trabalhadores, estaríamos alienados de nós mesmos, esvaziados de sentido e de propósito na vida, apartados de nossa criação no mundo.

Nunca fui filha, portanto, do individualismo, que vê no trabalho apenas uma forma de adquirir bens materiais e dinheiro para exercer seus próprios desejos. Meu desejo só se realiza se puder ser veículo do desejo do outro. Eu não “sou feliz e bem-sucedida” apenas realizando meus desejos. Sou feliz se o outro também puder realizar os seus. Minha vida não é apenas minha, ela está implicada com a do outro. E o outro não é a minha família, meus parentes de sangue, minha raça, meu grupo, os meus. O outro é a humanidade toda, que eu alcanço a partir da diversidade dos que estão mais perto de mim.

Lembro que, quando me tornei uma adolescente tão encantadora quanto insuportável, meu pai me pegou pelos ombros e disse, com aqueles olhos que refletem a alma da gente. “Você sabe quanto custa a um operário para você estudar?”. Eu não sabia, mas fiquei sabendo naquela hora que mesmo os trabalhadores que não conseguiam dar educação para seus filhos pagavam para que eu pudesse estudar. Ou não estudar, como eu fazia naquele momento. Muito diferente daqueles alunos de escola privada que, porque o pai paga a mensalidade, supõem ter o direito de desrespeitar o professor dizendo: “Você não pode fazer nada, porque sou eu que pago seu salário”.

Meu pai nos mostrava que nossa vida se ligava, de várias maneiras, à de todos os outros. Era ele que nos apontava os fios invisíveis que, querendo ou não, nos transformava em coletivo, plural. Num domingo foi me buscar num acampamento nativista, uma espécie de festa que durava vários dias enquanto se desenrolava um festival de música. Eu tinha 15 anos e meu maior projeto era conhecer todas as festas do mundo. (Em minha opinião, um projeto bem saudável naquela fase da vida). No carro me esperava a família toda. Meu pai nos levou a um acampamento um pouco diferente, de agricultores pobres e sem-terra, para que eu conhecesse a multiplicidade da vida e dos desejos humanos. Professor Argemiro era um pai severo, mas acreditava. E sonhava.

E me ensinou a acreditar e a sonhar. Os olhos dele sempre estavam – e estão – postos no horizonte. E sempre brilhando. Ele me mostrou que carregamos a largura do mundo dentro de nós. E não podemos esquecer disso. Quando as pequenezas do cotidiano ameaçam me engolir, eu olho para dentro. Não tenho tempo a perder com os ataques traiçoeiros dos pequenos poderes e grandes medos. Eu não pertenço à umbigolândia. Sou habitada, como todos que se sabem parte – não todo – pela vastidão do universo. Tenho em mim “a vertigem horizontal da planície”.

Todos nós já ouvimos um colega justificar sua infelicidade com o chefe que não permite que faça um bom trabalho, com a estrutura que não deixa espaço para ousar, com as sacanagens das quais é uma vítima recorrente. Se tivesse espaço, condições, tempo, ele faria um ótimo trabalho. Como não tem, só pode reclamar e buscar culpados. Se tudo fosse diferente, ele poderia ser diferente, poderia ser um profissional melhor, uma pessoa mais feliz.

Eu desconfio desse discurso. É sempre conveniente quando a responsabilidade é do outro, especialmente se esse outro tem um poder maior que o meu. A impotência esmaga, mas também justifica, nos exime de tomar uma atitude, de arriscar. É paradoxal, mas assim como a impotência arrasa, ela também tem seu lado de conforto. Se eu acredito que nada posso fazer, que sou um eterno injustiçado, então eu não preciso fazer nada nem explicar aos outros – e a mim mesmo – a razão e a tristeza da minha imobilidade.

Por outro lado, se tudo é verdade, se as condições são ruins, o chefe é um déspota e os colegas sabotadores, o que nos obriga a gastar a maior parte da nossa vida no inferno? Ou mesmo se não é totalmente insuportável, mas é o suficiente para nos impedir de criar, de nos expressar, de chegar mais perto de nós mesmos, qual é a razão para insistir? O salário, muitos dirão. Está difícil conseguir emprego, outros lembrarão. É verdade. Mas será que é toda a verdade? Tenho dúvidas.

Tento escapar dessas armadilhas. Assim como evito consumir meu tempo falando mal de um ou de outro. Às vezes, porém, caio nessas arapucas, me debato um pouco. Depois paro, encaro o silêncio, tento ouvir minha voz. Olho para dentro e lembro que sou aquilo que sonho. Minha expressão no mundo é determinada pela minha capacidade de sonhar – e de criar a partir dos meus sonhos. Espano as minhas dores e vou em busca de alguma fresta esquecida nas tantas portas fechadas.

Por isso sou feliz no trabalho. Não trabalho apenas para ter um salário que me permita adquirir bens, nem trabalho para agradar um chefe. Ter um bom salário e um chefe satisfeito é o melhor cenário. E é importante. Mas meu horizonte está além. Não é circunstancial, nem estou a serviço de um projeto corporativo ou do projeto individual de um outro. O que tenho é um projeto de vida que, naquele momento, coincide com o de um superior, de uma empresa. Coincide, mas não está preso a ele. Acredito que todos ganham quando um projeto coletivo é construído não por escravos modernos e corporativos, mas por gente livre.

Nosso olhar sobre o mundo muda o mundo. Mesmo que seja um não-olhar, mesmo que seja uma falta. Se o seu olhar é vazio não é só a sua vida que se torna opaca, mas o que você poderia criar no mundo que se apaga antes de existir. O que somos e o que fazemos não é apenas uma profissão, um emprego, um meio de pagar as contas. É a expressão da singularidade de cada um de nós. É o nosso jeito único, intransferível e irrepetível de estar no mundo. E, com nosso trabalho, mudar o mundo e ser mudado por ele.

Quando você dá sentido ao seu trabalho, você não se deixa alienar. Seu trabalho não se torna algo separado de você, um produto que não é seu. Ao contrário. Ele é você, contém você, tem nele o seu desejo. Como expressão de sua passagem pelo mundo, seu trabalho lembra a cada dia de quem você é e do que realmente importa. Se isso não acontece, talvez seja hora de mudar. Não apenas de emprego, não somente o que está fora de você, mas algo um pouco mais profundo, bem mais fundo, mas que pode condenar ou libertar a sua vida.

(Publicado na Revista Época em 27/07/2009)

Carta de adeus

Minha vida no primeiro ano de sua morte

Querida Ailce,
na semana que passou, acordei pensando em você. E, várias vezes por dia, me pegava com alguma cena sua na cabeça. Voltei à reportagem em que contei os últimos 115 dias de sua vida e percebi que completava um ano de sua morte. Você entrou no hospital para morrer em 15 de julho. Nesse dia, na cama asséptica do apartamento, você me pediu para tirar suas meias dos pés. Você nunca gostou de meias nos pés, sentia-se presa. E você não gostava de nada que lhe prendesse, porque muitas vezes se sentia aprisionada numa vida que não sonhou. Mas nos últimos tempos da doença, você sentia muito frio. Na cama do hospital, tirei suas meias e descobri que você estava morrendo com as unhas dos pés pintadas de cor de rosa. Dei um meio sorriso triste. Era tão você, morrer de unhas feitas. Quantas vezes me alertou que uma mulher só podia sair de casa bem vestida, maquiada, com brincos e de salto alto. Então, com os pequenos pés ao sol, você me olhou e disse: “Acho que a história que você está escrevendo sobre mim está chegando ao fim”.

Só naquele instante eu abarquei a grandeza do que você tinha me dado. Você permitiu que eu testemunhasse o fim da sua vida e contasse uma história que jamais leria. Você me deu a história de sua vida – e a de sua morte. Era minha a narrativa de sua existência, a marca escrita de sua passagem no mundo. Ninguém nunca havia confiado tanto em mim. “Eu vou escrever uma história linda sobre você”, eu disse. Foi nossa última conversa. Mais tarde, naquela mesma noite, você ainda acordou e perguntou se eu e o fotógrafo Marcelo Min havíamos comido. De novo, era tão você. Estar morrendo e preocupada se estávamos bem alimentados.

Era você a mulher que alimentava. A merendeira de escola que alimentou por décadas crianças famintas de comida e afeto nas escolas de periferia. O câncer – palavra que você nunca pronunciou – a impedia de comer, envenenava seu sangue. Então, você comia pela minha boca, me engordando com bolos e pães de queijo. E, dia após dia, enquanto lembrava dos cheiros da cozinha de sua mãe, no interior de Minas Gerais, me transmitia receitas, lambuzando-se de recordações. Naquelas conversas telefônicas de cada dia, você na sua casa, eu na revista, comíamos por lembranças. E, pelas suas memórias, minha vida povoou-se de sabores de um fogão de lenha desconhecido.

Na tarde de 18 de julho de 2008, seus olhos erraram pelo quadrilátero do quarto do hospital. Eram dois oceanos agitados de saudade salgada. Então a derradeira tempestade amainou e você fixou sua última cena.

No último sábado, completou-se um ano de sua morte. Eu comi uma feijoada por você. O arroz do restaurante estava como você gostava e, com paciência, me ensinou dezenas de vezes a preparar. A percepção de que a comida nos dá vida e metáforas foi algo que sempre nos uniu. Pela manhã, ao me vestir, eu hesitei diante de um par de tênis, tão mais confortável. Mas quando vi, estava enfiando nos pés um salto alto que você aprovaria. Por que você está tão arrumada?, amigos me perguntaram. Eu respondia com a metade de um sorriso secreto. Essa data era só nossa.

Ailce, aconteceu muito nesse ano. Um pouco mais até do que minha sanidade era capaz de suportar. Você sabe, a vida é sempre mais faminta do que supomos. Logo que a conheci, eu descobri que a narrativa da sua história seria a reportagem mais difícil da minha trajetória. Como fazer uma reportagem cujo fim era a sua morte? Só foi possível porque aprendemos a amar uma a outra. Você, a personagem de uma vida. Eu, a narradora de uma morte. Você morreu e eu contei a sua história. Apalpei cada palavra na busca daquelas que dessem a dimensão real de sua passagem pelo mundo. Como contadora de histórias reais, sempre que escrevo meu maior medo é reduzir a vida de alguém. Com você, essa preocupação pesava ainda mais sobre meus ombros doloridos, já que você nunca leria a escritura de sua vida. Eu precisava merecer em cada linha o poder amoroso que você tinha me dado.

Você acreditava em Deus, embora tenha brigado com ele em alguns momentos. Brigava porque acreditava. E porque não entendia como ele fora capaz de deixá-la morrer quando você finalmente planejara viver. Quando você havia jogado o relógio fora e dançava e viajava, os olhos bem abertos para não perder nada, devorando o ar em grandes bocados como se ele fosse acabar de repente. Espero que você esteja no lugar para onde acreditava ir. Eu, que sou bem mais cética, de algum jeito armei dentro de mim a convicção de que você leu meu texto e se reconheceu. Não há como saber se é uma fantasia que precisei criar. Só por essa vez, abracei o mistério sem questionar.

O que eu não adivinhava, Ailce, era que o luto por você seria tão prolongado. Eu sempre soube que não entramos na vida do outro impunemente. Sempre acreditei que uma reportagem só acontece, de verdade, quando transforma a vida do personagem e do narrador. Eu compreendia que ao entrar na sua vida você faria parte da minha para sempre. Ao contar sua história você estaria na minha. Mas eu não adivinhava que doeria tanto – e por tanto tempo.

Depois que você morreu, um caminhão atingiu o carro em que eu viajava, em seguida sofri um assalto com tiros e duas pessoas queridas receberam o diagnóstico de câncer. Em janeiro, perdi alguém que também amava, pela mesma doença. Em seguida, alguém que amo precisou me deixar. Seis meses depois de você morrer, eu não conseguia mais comer nem dormir. Perdi oito quilos. Eu estava encharcada de morte. Do fundo da minha fragilidade exposta, eu buscava sinais de que a vida persistia em algum canto. Mas era afogada pela névoa espessa dos tantos fins e quase-fins.

Em abril, retalhos de sol começaram a aparecer aqui e ali. E eu voltei a dormir uma noite inteira sem remédios. Eu havia entendido a grande lição que sua vida tinha me dado. Tinha compreendido o que sempre soube em teoria. Meses antes de conhecer você eu tive uma profunda experiência de meditação, em outra reportagem. A partir dela, comecei a viver a experiência, ao mesmo tempo brutal e libertadora, de que na vida só há uma certeza: a de que não temos nenhum controle. Mas essa, me parece, é a lição mais difícil de aprender. Pode levar uma existência inteira para entendermos a que talvez seja a maior de todas as verdades humanas. Ou podemos morrer sem alcançar a essência da matéria de que somos feitos.

A morte é essa falta de controle levada à máxima radicalidade. Qualquer pretensão de controle é ilusão. A vida é risco. Não há nenhuma garantia, como você aprendeu de forma tão dura. Apavorada com a doença, o acidente, o assalto, o abandono, a morte de quem amava, me parecia impossível dormir. Se acordada, vigilante, tudo isso acontecia à minha revelia, como eu poderia dormir? Toda vez que saía de casa me sentia na iminência de uma catástrofe.

A partir da sua morte, em seis meses todos os pesadelos de quem vive se materializaram em mim como vida vivida. Tomada de desespero, eu me agarrava a uma das tantas imagens famosas de Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Em alguns momentos dessa queda brutal no precipício da verdade, acho que até a coragem me faltou. Mas um dia, depois de tantas ilusões arrancadas de minhas entranhas como pedaços de onde brotava sangue vivo, eu finalmente entendi. A falta de controle sobre o vivido não é uma maldição. Ao contrário, ela nos liberta. Se não ficamos perdendo tempo tentando antecipar e planejar cada passo, podemos nos dedicar apenas a viver. Sem postergar, sem adiar, sem deixar para depois. Se é impossível controlar, para que gastar tempo tentando? O mais sensato é enfiar o pé no mundo, sabendo que vamos nos lambuzar. É a incerteza do que nos espera na próxima esquina o encanto da vida.

Analisei então, Ailce, os grandes e pequenos momentos da minha trajetória e descobri que os melhores capítulos haviam sido os inesperados, não os planejados. A filha que nasceu aos 15 anos, numa gravidez adolescente que tantos viram como tragédia, o professor que me mostrou que ser repórter era a melhor profissão do mundo quando eu já tinha decidido seguir outra profissão, o grande amor que apareceu numa festa que eu pretendia não ir porque estava com sono. Minhas melhores reportagens aconteceram quando tudo parecia dar errado. As histórias mais fascinantes que contei foram aquelas em que ouvi algo totalmente diferente do previsto. Se nos fechamos para o imprevisível, como a vida poderia ser menos do que um tédio? É o que ainda não sabemos, o que está para acontecer, que contém o germe da vida.

Quantas vezes não percebemos, depois de algum tempo, que a suposta catástrofe se revelou o melhor que poderia ter nos acontecido? Como a demissão de um emprego que detestávamos, mas achávamos que era preciso manter porque nos garantia segurança. O casamento que nos aniquilava, mas que pensávamos ter de segurar porque era garantido. A viagem de férias para o mesmo lugar para não nos arriscar nem mesmo à possibilidade de algo novo acontecer. Todas aquelas coisas que soam seguras, mas que matam nosso desejo.

O que aprendi com sua vida e sua morte, Ailce, é que a segurança não é uma bênção, é um perigo. Ter maturidade, tornar-se adulto, não é, como tantos dizem, acatar o manual, seguir o rebanho, fugir do risco. Ao contrário. A sabedoria é abraçar o risco, aceitar a impossibilidade de controlar a vida como possibilidade, compreender que só o inesperado pode nos levar a algum lugar. O planejado é o território do previsível, se já sabemos o que vai acontecer, qual é o sentido? O que ganhamos indo sempre ao mesmo lugar, do mesmo jeito, evitando qualquer surpresa? O melhor do humano é a capacidade de se espantar. É pelo espanto que tudo se inicia.

Na semana que passou, quando um tempo inconsciente assinalou dentro de mim o primeiro ano de sua morte, eu atendi ao chamado de uma reportagem daquelas impossíveis de prever o quanto vai exigir de mim. Bati na porta de uma vida e entrei num mundo que vai me revirar pelo avesso. Desde que vivi com você a sua morte, minha alma em carne viva tocava a dor do outro e recuava. Dava os primeiros passos e voltava para trás. Dentro de mim, as cicatrizes ainda eram frágeis e se abriam ao primeiro toque. No primeiro sinal de sangue, eu corria.

Precisei de muito mais tempo do que imaginava para viver meu luto por você, para aceitar a sua morte e todo o imponderável da minha vida que ela continha. Para entender, de verdade, a frase que você me disse no nosso primeiro encontro: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”.

Algo se libertou nessa semana dentro de mim. Você é parte da minha história, vive dentro de mim como de todas as pessoas que a amaram, nas células de todas as crianças que salvou da desnutrição. Mas agora vou me deixar viver – e deixar você partir. Parto também eu para todas as vidas possíveis que me esperam. De salto alto e batom vermelho, torcendo pelo desconhecido que me aguarda na virada de cada uma das esquinas do mundo.

Obrigada. Adeus.

(Publicado na Revista Época em 20/07/2009)

Quem quer uma vida de “e se”?

A felicidade não é eterna, mas a desistência pode ser para sempre

Quase todos nós temos algo que gostaríamos de ter feito. E não fizemos. Um plano mirabolante que tinha tudo para dar certo, mas que nunca tentamos. Aquelas ideias que parecem ótimas na mesa de bar e, como os vampiros clássicos, escondem-se nos nossos porões na primeira luz do sol. Tenho amigos que querem ter um café, outros uma livraria, há os que querem ter uma livraria com café ou um café com livraria. Antes havia os que queriam ser repórteres da National Geographic, os que queriam filmar com Fellini e até os que queriam ter uma família de dez filhos. Conheço um monte de gente que desejava ter feito mais do que ousou fazer. Mas, em algum momento, deixou passar a chance de recosturar seus sonhos com o fio do possível. Preferiu se deixar convencer que ser adulto era assumir uma ideia de responsabilidade que excluía a possibilidade de se reinventar a qualquer momento. E isso é certo: pode não existir amor para sempre, nem vida para sempre, mas descobri que existe desistência para sempre.

Suzi e Marcelus são meus amigos de adolescência. E eles estão nessa história porque tiveram a ousadia de reinventar a vida. Não aos 20, mas aos 40. Eles rejeitaram aquilo que eu chamo de “vida de… e se?”. E se eu tivesse feito isso e não aquilo? E se eu tivesse tido coragem? E se eu tivesse me divertido? E se eu tivesse sido mais corajoso? E se eu tivesse amado mais? E se? E se? E se? Não há nada mais triste do que uma vida de “e se?”.

Suzi e Marcelus Vieira vivem em Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul. Ijuí é uma cidade de uns 70 e poucos mil habitantes, coberta de uma poeira tão vermelha e persistente que gruda na alma da gente. Quem mora lá nunca terá a chance de pisar no mundo com um tênis branco. Mas quem quer um tênis branco? A cidade vai bem quando chove e faz sol na medida certa para o soja ser lucrativo. Ou seja, depende do imponderável e do Banco do Brasil. Apesar de ter deixado Ijuí há mais de 20 anos, volta e meia me pego no meio do trânsito de São Paulo pensando: “mas e como será que anda o soja nesse ano, hein?”

Comer bem, para a maioria dos ijuienses, é lotar o prato num dos muitos restaurantes a quilo. Ijuí se orgulha de ser a capital brasileira das etnias e isso significa que ela é povoada por descendentes de alemães, italianos, letos, austríacos, poloneses, russos e várias outras nacionalidades que não estou lembrando agora. Em comum, eles têm essa certeza de que nada pode ser melhor do que pagar nem mais nem menos, mas exatamente o que se come. Por isso, os quilos se tornaram um estrondoso sucesso por lá. Chefes de família que nunca admitiram comer fora de casa encontraram uma boa razão para experimentar a modernidade de comer em restaurante. E muitas mulheres só conheceram a delícia da vida social a partir do advento dos quilos. Há toda uma antropologia dos quilos que, infelizmente, a academia deixou passar.

Com isso, não estou criticando nem os quilos nem a comida de Ijuí. Longe disso. Foi lá, comendo a comida da minha mãe, que eu descobri que comer é uma fonte inesgotável de prazer. Apenas quero situar o contexto gastronômico onde Suzi e Marcelus começaram a salpicar os primeiros ingredientes de sua utopia.

Tirar férias, em Ijuí, é passar uma temporada numa das praias do Rio Grande do Sul. Eu sei que tem gente que não acredita que o Rio Grande do Sul tenha praias que não fiquem em Santa Catarina, mas eu garanto que tem. Os ijuienses preferem as mais movimentadas. E, de preferência, em apartamentos. Se quem mora em cidade grande busca sossego, quem mora em cidade pequena quer “ver gente”. Não é uma regra absoluta, mas quase. Para que tentar algum lugar novo se Tramandaí, Atlântida ou Capão da Canoa são garantia certa de diversão? E, ainda por cima, com um guarda-sol ao lado do outro?

De novo, não estou criticando as férias de ninguém. Longe disso. Apenas situando a cultura turística do lugar onde Suzie e Marcelus começaram a esboçar a nova receita de suas vidas.

Quem nasce numa cidade do interior, um dia quer sair. Ou finge que quer. Quem pode usa o pretexto de fazer universidade para se transferir para Porto Alegre ou outra cidade um pouco maior. Mas tive amigos mais radicais, que sem arranjar desculpa melhor, foram tentar achar ouro em Serra Pelada. Deixar a cidade pequena em algum momento é uma espécie de jornada do herói. Não sei qual é a estatística, mas a maioria acaba voltando.

Suzi e Marcelus apaixonaram-se ainda na adolescência. Ensaiaram faculdade em Porto Alegre quando chegou a hora, depois separaram-se por uns tempos. Marcelus se aventurou em Londres, Suzi quase casou com outro. Um dia fiquei sabendo que os dois tinham se casado e moravam em Ijuí. Compraram um apartamento, decidiram não ter filhos e cuidavam juntos da loja de moda jovem mais bacana da cidade.

Encontrava-os quando ia à Ijuí visitar meus pais e me parecia que viviam bem. Nesse período, eu tinha muitos amigos olhando desconsolados para as ruínas de seus sonhos de juventude. Mas Suzi e Marcelus não estavam entre eles. O deles parecia ser um destino resolvido.

Dois anos atrás eles me ligaram. Excitadíssimos. Tinham alugado uma casa de campo na Toscana, daquelas de cinema, e estavam levando para lá um grupo de 10 pessoas. Marcelus conciliara a administração da loja com cursos de culinária, nos anos anteriores, e tinha virado um chef. Suzi dedicara-se a estudar o mercado do luxo com o mesmo talento comercial que ela sempre tivera para vender roupas de grife numa cidade que nem sempre tem dinheiro. Os dois se associaram a Adriana e Celso Vedolin, ele radiologista, ela dentista, que também acharam que estava na hora de redescobrir a vida lá fora. E em vez de ficar só sonhando, como a maioria de nós, fizeram.

O projeto deles era alugar uma casa maravilhosa em algum lugar interessante do mundo e levar para lá um grupo de pessoas para comer e beber por uma semana. Ao longo do dia, quem quisesse poderia ir às feiras e vinícolas escolher verduras, legumes, temperos, trufas, pães, queijos, cogumelos porccini, presuntos e vinhos com Marcelus. Mas o único compromisso do grupo seria se reunir na cozinha no final do dia para aprender com ele a fazer um prato da gastronomia local. E depois degustá-lo com o melhor vinho. Simples assim.

E tão sofisticado. Partiram, num dia de setembro de 2007, para uma vila em Peccioli, cidadezinha entre Florença e Pisa, para fazer uma bella vita misturando os ingredientes mais frescos da sua feira pessoal de desejos: viajar, comer e beber. E, contra todas as probabilidades, deu tudo certo. Os hóspedes também se sentiram como se estivessem num filme que podia se chamar Sob o sol da Toscana. Seus anfitriões desdobravam-se no café da manhã, servido a qualquer hora, para que cada um se sentisse realmente em casa, e nas pequenas delicadezas. Como as flores que Suzi colhia a cada manhã para aninhar sobre a cama de cada um, e o pão que desembarcava quente e crocante da padaria de um vilarejo que poderia ser o Cinema Paradiso. E, à noite, na cozinha, Marcelus fazia arte. Como o linguini com trufas brancas que era servido com um Chianti ou um Tignanello, seguido por um Tiramisu.

Suzi e Marcelus tinham acabado de inventar um filme para botar dentro da sua vida. Não ficaram só falando ou lamentando uma existência que se estreitava. Alargaram seu mundo com as mãos e a força de um desejo que não deixaram morrer. Sempre fico imaginando como deve ter sido cada noite em Ijuí, quando tudo ainda podia dar errado. O que ia pela cabeça enquanto vendiam calças, camisas, casacos, vestidos. Quando faziam contas. Quanto medo eles não tiveram. Nem mesmo a casa eles tinham visto de perto, já que não havia dinheiro para esse investimento. Iam selecionando as opções pela internet e um amigo que morava na Itália viajava até lá para conferir. E se não entendessem o italiano? E se as pessoas não gostassem da comida? E se tivesse um chato que azedasse um grupo tão pequeno? Tudo podia acontecer. Até mesmo dar certo.

E deu. Quem comprou a ideia também queria essa semana de filme. Um grupo de amigos numa cozinha de vários séculos, tão cheia de aromas quanto de histórias. As conversas entre cachos de uva, tomates espoucantes, ramos de alecrim e garrafas de vinho. E a luz dourada do fim do dia atravessando o vidro da janela para pousar sem pressa na tampa das panelas. Cada hóspede se tornou melhor nessa semana em que a vida finalmente cumpria a si mesma.

No ano passado eles acolheram seus hóspedes em uma mansão de pedra do século XVII no vilarejo de Cabrières d’Avignon, a 33 quilômetros da cidade de Avignon, na Provence. Nenhum dos dois fala francês. Mas estavam inebriados por filmes como A Glória de Meu Pai e O Castelo de Minha Mãe. Estudaram a culinária local, pesquisaram os ingredientes da estação, experimentaram o perfume de cada vinho. E de novo inventaram sua nouvelle vie. Nesse ano, alugaram uma casa na Itália e outra na França. Levarão um grupo para a Toscana e outro para a Provence. No ano que vem querem instalar-se em alguma cozinha cheirosa de uma ilha grega. Al Mondo  é o nome do melhor de todos os seus sonhos, porque é um sonho que deixou de ser. Não por desistência, a causa mortis mais frequente dos sonhos, mas por coragem.

Depois que tudo dá certo, parece fácil. Mas a vida de cada um de nós se decide é muitos meses e até anos antes, quando a gente não sabe se vai dar certo. E mesmo assim percebe que a coisa mais inteligente a fazer é tirar a cabeça do lugar antes que seja tarde. Eu mesma me arrependo de várias coisas, mas nunca de ter tirado a cabeça do lugar. Toda vez que o senso comum achou que eu estava destrambelhando fui parar num ponto interessante da vida.

Suzi e Marcelus não sabiam se daria certo, mas tinham certeza que fizeram tudo para que desse certo. Marcelus sempre foi um pouco como o ratinho do Ratatouille, sentindo aromas pelas cozinhas. Quando se aventurou em Londres, trabalhou nas cozinhas de pubs e restaurantes, como tantos imigrantes. Mas, diferente da maioria, aproveitou para observar e aprender. Em Porto Alegre, passou anos fazendo as compras de uma cooperativa ecológica, saía com a caminhonete por estradinhas de terra pelo interior do Rio Grande trocando ideias junto ao fogão a lenha dos produtores. Quando se estabeleceu na loja, começou a viajar para fazer cursos de culinária.

Suzi e sua irmã, Sandra, são as melhores vendedoras que eu conheço. Já andei muito por aí, mas nunca vi nada igual. Filhas de alfaiate, elas conhecem os tecidos, os cortes, as texturas. São talentosas no gosto, sabem comprar as peças certas e, principalmente, sabem vender. São boas de conta, não lembro de tê-las visto perdendo dinheiro. Suzi é uma mulher que sonha com os dois pés metidos em sapatos interessantes, mas com os saltos bem fincados no chão.

Foi com tudo o que são que Suzi e Marcelus mudaram o cardápio de sua vida. Eles seguem morando em Ijuí, a loja acaba de se mudar para uma casa grande, com uma cozinha profissional no piso superior, onde Marcelus dá cursos à noite e prepara jantares por encomenda. Suzi e Marcelus têm família e amigos na cidade, acham que Ijuí garante uma qualidade de vida que não teriam em outro lugar. Passam o ano dando duro na loja, experimentando receitas, degustando vinhos, assistindo filmes, estudando livros, selecionando músicas. Quando chega a primavera, fazem as malas e acordam numa casa com vista para o mundo.

Na despedida do último hóspede, antes de voltar para Ijuí, eles viajam uma derradeira vez. Vão em busca do pedaço do planeta onde acordarão na primavera seguinte.

(Publicado na Revista Época em 13/07/2009)

Sou uma mulher sortuda

Conheci não um, mas três homens incríveis nos últimos dias

“Mal chegou, o primeiro me perguntou. “Você é cristã?”. Vestia um turbante e uma túnica branca. “Não”, eu respondi. “Qual é a sua religião?”, ele continuou. “Eu não tenho fé”, disse eu. “Mas você não acredita em Deus?”, o homem insistiu. “Vivo com o mistério”. Achei que a sinceridade acabara de me custar a entrevista. Esperei que ele se levantasse e virasse as costas. O homem diante de mim era um imã, líder espiritual muçulmano. Seu nome é Muhammad Ashafa e ele é protagonista de uma das histórias mais extraordinárias que eu jamais ouvira. Ao lado dele, estava o outro personagem dessa história, o pastor cristão James Wuye. Ambos são líderes religiosos da Nigéria e o esperado era que estivessem naquele momento esfaqueando um ao outro com adagas afiadas. Mas, em vez disso, eles trocavam sorrisos cúmplices, só permitidos a velhos companheiros.

Cada um deles teve o leite materno adoçado com o ódio ao outro. A Nigéria, um país criado em gabinete pelos colonizadores, é ocupada ao sul por maioria cristã, ao norte por maioria muçulmana. Milhares vêm morrendo pelas mãos de um e de outro nas últimas décadas. Quando estendo a mão para cumprimentar o pastor James Wuye, ele se adianta e intercepta minha mão com a sua esquerda. Metade de seu braço direito foi decepado por um muçulmano, e ele prefere que eu não toque a dureza da prótese. Mesmo assim, esses dois homens têm andado pelo mundo defendendo que a ONU crie um “Dia do Perdão”. Caminham lado a lado, carregando suas mutilações, as visíveis e as invisíveis, encarnando a possibilidade do impossível.

Conto a extraordinária história desses dois homens na atual edição de Época, com o título de Amando o inimigo. Aqui, quero falar de apenas um deles. Do imã Muhammad Ashafa. Não sou nem religiosa, nem mística. Sou curiosa. E, como tal, perambulo por aí aberta para o espanto. E fico toda feliz quando sou pega de surpresa, porque posso, então, aprender algo novo. Há algo diferente em Mister Ashafa. Percebi no momento em que ele juntou as mãos, como uma prece, para me cumprimentar. A muçulmanos não é permitido tocar mulheres que não as suas. Ainda em silêncio, sua presença é poderosa, intensa. Pensei: ainda bem que esse homem escolheu a paz. Porque alguém com esse carisma poderia ter uma enorme capacidade de destruição.

Ao falar, Mister Ashafa transforma imagens em palavras. Traz no ritmo de sua narrativa uma vida lendo e ouvindo os versos do Alcorão. Sua voz é profunda, cheia. A musicalidade de suas palavras ressoa dentro de seus interlocutores. Mas, em vez de pregar o sectarismo religioso, como tantos líderes messiânicos, ele defende não apenas a tolerância, mas algo um pouco maior. “Não devemos apenas tolerar aqueles que são diferentes de nós, mas aceitá-los. Aceitar é um pouco mais”.

Mister Ashafa não teme o diferente. Ele acredita que a diversidade não é uma ameaça, mas nossa força. Aprendeu com seu mentor, um velho sábio sufi, que é preciso nos colocar no lugar de todos os seres. “Era isso que meu mestre ensinava, que a gente nunca deixasse de se enxergar em todos os outros seres, de sentir empatia por todos os outros seres. Devemos nos colocar no lugar das outras pessoas antes de julgá-las, condená-las ou castigá-las. Não podemos demonizar o outro, porque essa demonização só serve para arrancar do outro a sua humanidade. Deixamos de ver o outro como alguém que tem questões muito parecidas com as nossas. Então, podemos matá-lo. Quando um muçulmano mata, ele não é mais muçulmano. Quando um cristão mata, ele não é mais cristão. O centro de qualquer religião é a compaixão. E este tem de ser o novo espírito do Islã. Se ver espelhado.” O imã conclui, com seus negros olhos febris: “Hoje eu não tenho inimigos, mas um amigo que ainda me falta conhecer”.

Não são palavras fáceis. Para pronunciar cada uma delas, Mister Ashafa teve de viver uma transcendência que quase lhe revira as entranhas pelo avesso. O mestre sufi a que ele se refere foi jogado num poço pela milícia comandada pelo pastor James. Em seguida, coberto de pedras. Seu discípulo só encontrou o corpo três dias depois. Mister Ashafa compreendeu então que só havia um modo de o mestre continuar vivo. Era preciso fazer com que suas palavras vivessem. Elas vivem nele desde então.

Mister Ashafa tem uma resposta para o nosso medo. Ele diz: “Nossa segurança não está baseada nas armas, mas no quanto respeitamos o nosso próximo. Quando meu vizinho está com fome, eu vivo com medo. Se meu filho vai para a escola e o filho do meu vizinho não vai, a segurança do meu filho está em risco. Então devo investir na educação para que o filho do meu vizinho também tenha acesso a uma boa escola, para que ele não vire um marginal, forme uma gangue e queira ferir o meu filho. Devo fazer isso e não me armar e erguer muros entre mim e meu vizinho. Isso vale para as comunidades, para os governos, para cada um de nós. Quando você consegue fazer isso, você consegue dormir em paz. Porque seu vizinho tem condições de se reerguer por conta própria. Enquanto não fizermos isso, o mundo não será um lugar seguro para ninguém”.

Achei curioso que um líder muçulmano de um país africano devastado por conflitos étnicos, econômicos e religiosos pudesse dizer algo tão perto da nossa realidade. Parecia que ele vivia logo aqui, em meio a casas gradeadas como prisões. Quando a escola pública perdeu qualidade, a classe média tratou não de brigar pela recuperação da educação, mas deu um jeito de botar seus filhos nos colégios privados. Quando aumentaram as filas do sistema público de saúde, tratamos de fazer crescer e multiplicar os planos privados de saúde. Quando os ônibus do sistema público de transporte transformaram-se numa máquina de esmagar pessoas, tratamos de aumentar o número de carros e as vagas na garagem. Quando as ruas ficaram perigosas, instalamos grades, alarmes, aumentamos a altura dos muros e o número de cães e de seguranças.

Como isso poderia resultar em algo que não fosse violência? E por que temos a ousadia de acreditar que não temos nenhuma responsabilidade pelo nosso medo que não para de crescer? O que mais falta fazer para se proteger de gente igual a nós, mas que não tem nem escola, nem saúde, nem casa, nem sistema de esgoto? Talvez olhar para ver. Não como um demônio pronto a nos fazer mal, mas para alguém que também tem medo. E pouco mais além disso.

Há sempre algo que cada um de nós pode fazer, a partir daquilo que já fazemos. Há sempre algo que podemos mudar nos pequenos vícios cotidianos. Há sempre uma janela que podemos abrir em vez de se render ao hábito de fechar. É um risco, sempre é. Mas todos sabemos que não há vida sem risco. No caso de Ashafa, o que ele fez foi dar um passo para dentro do território inimigo. Achou que estava indo espionar, armazenar informações para o próximo ataque. Mas descobriu que o pastor James Wuye tinha tanto em comum com ele, apesar das tantas e necessárias diferenças, que já não pôde matá-lo.
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Logo ao chegar, o segundo homem poderia ter me perguntado: “Você é atéia?” Dias depois de conversar com Mister Ashafa, tive a chance de ouvir Richard Dawkins, um britânico nascido no Quênia. Ele é o ateu mais famoso do mundo. Entre outros livros polêmicos, o biólogo escreveu Deus, um delírio (Companhia das Letras, 2007). Escutar Mister Dawkins é também uma experiência de transcendência, mas por outro caminho. Acompanhar a evolução de seu raciocínio límpido, elegante, é uma vivência da beleza. Tenho esse êxtase quando ouço alguém genuinamente brilhante, de o quanto a mente humana pode criar beleza pela harmonia de formas do próprio pensamento. Dawkins é assim, um poema científico.

O que ele tem a ver com Mister Ashafa? Ou melhor, o que ele está fazendo nesse texto? A certa altura de sua fala, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Mister Dawkins falou algo sobre o imenso valor da vida. Se, na sua concepção, não há deuses, nenhum deles, muito menos uma vida depois da morte ou um corpo para reencarnar, o que faz desta vida algo que vale a pena? Nesta hora, lembrei de Mister Ashafa, que faz de sua inscrição no mundo um libelo pela vida. Não a dos muçulmanos, mas todas as vidas, na beleza infinita de sua diversidade.

É de diversidade que Mister Dawkins fala, ao evocar Charles Darwin. E é pelo acaso que ele nos mostra nossa imensa sorte de estar aqui. Sempre fico aterrorizada pensando que se minha mãe não tivesse decidido casar com o meu pai quando ele nem mesmo sabia disso, se três irmãos não tivessem nascido antes, se tantos milhões de acasos não acontecessem, de forma a não alterar um único milésimo de segundo, se aquele exato espermatozóide não tivesse fecundado o óvulo, eu não estaria aqui. Mas se você pensar que não é apenas esse momento determinado da soma de todos os acasos que resultou na combinação genética única que nos constitui, mas precisou de todos esses milhões de ocorrências comezinhas também para que nossos avós se conhecessem e gerassem um pai e uma mãe como os nossos, e assim também com nossos bisavós, tataravôs, até chegar a um ancestral em cuja forma não mais nos reconhecemos.

Um único acaso diverso nesses zilhões de pequenos acontecimentos e seria um outro – e não nós – que estaria aqui nesse exato momento, lendo esse texto. Um cigarro ou um café que nosso pai ou mãe resolvesse tomar antes de transar, um zíper do vestido que emperrasse ou não emperrasse, um acesso de tosse e – zum – já não seríamos nós. Não é assustador? Mas somos nós que estamos aqui, contra todas as probabilidades. Então, como não fazer desta vida algo que vale a pena? E como não olhar para a vida do outro com a dimensão dessa grandeza?
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O terceiro homem da minha vida nesses últimos dias nada me perguntaria. Eu já sabia seu nome, António Lobo Antunes. Português, é considerado por alguns críticos o maior escritor lusitano depois de Eça de Queirós. Com ele, tive uma experiência amorosa. Não o escutei impávida, toda atenta e cerebral. Fui relaxando, deslizando na cadeira, toda entregue a uma voz que me trazia o que para mim é uma combinação irresistível, a da sabedoria com simplicidade. Eu não era mais uma pessoa, era um ouvido. Meus braços escutavam, a gola da minha camisa branca escutava, todas as minhas sardas escutavam, até minhas mechas loiras escutavam. Tive uma epifania. Saí da tenda da Flip em estado de felicidade absoluta.

Deixo para vocês uma imagem composta por Lobo Antunes, que tem tudo a ver com esse texto: “Não existe profundidade, apenas uma sequência infinita de superfícies”.

(Publicado na Revista Época em 06/07/2009)