Barbie

No passado ela havia sido morena de olhos castanhos, rechonchuda e sem peitos. Ainda antes do passado, sua primeira lembrança era um não-ser. Nem mesmo parecia que tinha um corpo. Acreditava-se feita apenas do material etéreo das almas.

Olhava-se no espelho e o que via lá lhe era estranho. Quando comia, não era seu nem o estômago nem as papilas gustativas que habitavam uma língua estrangeira. Absorvia-se na contemplação do xixi como se fosse o terceiro segredo de Fátima. E o prazer era como um filme que se passava numa tela que não era ela.

Acabara de completar sete anos quando a professora da primeira série, uma freira de ímpetos progressistas, reuniu os alunos ao final da aula para a brincadeira da fita. Eles eram amarrados pelos pulsos uns nos outros, num laço intrincado, e precisavam encontrar um meio de se desamarrar.

Ela não queria se desatar. Ficou lá, assistindo a outra criança debater-se na ânsia de libertar-se de um pulso que diziam ser o dela. Perderam o jogo, e o sino do colégio tocou anunciando a hora de partir.

A freira pegou uma tesoura e a aproximou para libertar as alunas que transformara em gêmeas siamesas. Ela viu as lâminas apertarem um pedaço gordo da carne do seu pulso e nada disse ou fez, hipnotizada pelo que ia acontecer. Assistiu-as cortarem a carne, e o sangue jorrar, e as crianças gritarem, e a freira berrar.

E ela apenas ali, observando, até que uma dor aguda lentamente alcançou seu cérebro. Ela havia sido cortada. O cordão havia sido cortado. Ela existia.

A partir daquele dia, toda noite, depois que os pais e os irmãos se recolhiam, fazia pequenos furos na carne. Começava pelo pescoço e ia descendo até a cavidade entre os dedos dos pés. Pressionava até a gota de sangue emergir. Cortada, sentia-se íntegra pela primeira vez. Finalmente, ela tinha um corpo. A imagem do espelho reunia-se a ela.

Encarnara-se.

Quando chamaram a mãe à escola, foi para elogiar que da noite para o dia suas notas melhoraram. Tornara-se uma aluna participativa. Tinha até se oferecido para ser a árvore da Amazônia de uma peça ecológica. Papel triste, que ninguém queria, porque ao final a árvore era abatida por um machado.
•••

Por algum tempo ela pacificou-se naquele ritual secreto que a tornava dela mesma. Até que em uma noite particularmente quente, o irmão invadiu o banheiro com a playboy na mão e a viu se furando diante do espelho. As lâmpadas se acenderam no quarto dos pais, a cena que até então pertencia apenas a ela foi iluminada com luzes que a ofuscavam. No dia seguinte foi submetida a uma longa série de médicos, especialistas. Seu ritual agora tinha o nome de uma psicopatologia e páginas e mais páginas de interpretações elaboradas.

As tesouras, facas e objetos cortantes foram banidos da casa, para desespero da empregada, que era obrigada a picar maminha com uma adaga de plástico. À noite agora ela tomava meia dúzia de remédios de cores diversas, antes de cair num sono em que não tinha nem corpo nem alma. Voltou a desencarnar-se, fechada no silêncio ao qual são condenadas as testemunhas de um corpo alheio. Ninguém estranhava porque já estava tudo explicado pela medicina.

Quando se tornou adulta, descobriu que poderia pagar uma cirurgia plástica em parcelas de até dez vezes sem juros. Sua estréia foi uma rinoplastia, seguida logo depois por uma blefaroplastia, intercalada por uma abdominoplastia. Seguiu pagando uma mentoplastia com cartão de crédito, até que na 13ª intervenção se casou com o cirurgião plástico.

Desde então, ele determina as mudanças que deseja no corpo dela como um deus, cortando-a à imagem e semelhança de seus desejos. Como uma Eva de bisturi, ela está para sempre aquém e além do paraíso. Não só não foi feita de uma costela do homem, mas até mesmo duas de suas próprias costelas foram arrancadas para definir melhor o abdômen. Contemplada em seu mais poderoso desejo pelo homem que escolheu, ela é feliz.

Ainda que se encontrem mais na mesa cirúrgica que na cama, o deles é um casamento bem-sucedido como poucos. Quem os conhece sabe que vivem em serena rotina. Se existem almas gêmeas, eles as têm. Ao completar bodas de prata, o marido a presenteou com a quinquagésima operação. Desde então, os olhos com que se reconhece no espelho são orientais.

Ao que tudo indica, ela para sempre deixou de ser pária. Está perfeitamente integrada não só ao corpo mutante, mas ao seu tempo. Os pais e irmãos mal podem acreditar que aquela menina demente, que se autoflagelava no banheiro, transformou-se na mulher bem casada e eternamente jovem que os recebe com uma boca sorridente e cada vez mais carnuda em jantares sofisticados.

Mesmo quando a encontram estampada nas páginas de Caras, cada vez mais semelhante a uma das Demoiselles D’Avignon de Pablo Picasso, não passaria pela cabeça de ninguém considerá-la estranha. Não é a única a ter um olho escorrendo pela bochecha e o outro beirando a testa.

Até hoje, ninguém compreendeu que Barbie não dá a mínima para a estética. O que deseja são as cicatrizes.

Dólar na fralda

Quando se vive desejando. Até o fim

Aconteceu na semana passada. Ele tem 84 anos e está morrendo de câncer. A auxiliar de enfermagem do serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo, entrou no quarto para trocar sua fralda. Ele não permitiu. Ela insistiu. Precisava trocar a fralda, dar banho, fazer a higiene. De onde ele tirava forças para reagir com tanta veemência?

O dele era um não profundo.

Quando ela tentou mais uma vez, quase bateu nela. Ninguém tocaria nas suas fraldas.

Foi uma confusão. Até que a verdade se revelou.

Na fralda, ele guardava os mil reais da aposentadoria. Doze andares abaixo, no saguão, uma moça de 25 anos tentava subir para uma visita especial. Há algum tempo ela o ajudava com os afazeres domésticos, por assim dizer, duas vezes por semana.

Nunca antes na história do Brasil alguém escondeu dinheiro nas partes íntimas por uma causa legal. E tão inspiradora.

________________________________________

Esta história real não é só curiosa. Ou divertida. É profunda. A enfermaria de cuidados paliativos trabalha com a ideia de que é possível viver intensamente até o fim. Da forma que é possível para cada um, com aquilo que é importante para cada um, no respeito à singularidade de cada um. Lá, não se morre sedado ou amarrado a tubos e fios, como acontece em tantos hospitais, em que os pacientes são alienados do fim da sua vida e nem mesmo conseguem se despedir de quem amam.

A equipe atua para deixar o doente sem dor, numa arquitetura delicada em que a medicação atenua os sintomas sem alijar a consciência. Cada decisão é tomada levando em consideração não apenas os aspectos médicos, mas a história de vida, sempre única e intransferível. Levando em consideração aquilo que é o que faz viver e tem sido tão esquecido pela prática médica tradicional: o desejo.

Não estamos vivos porque respiramos. Estamos vivos porque desejamos. E estaremos vivos enquanto desejarmos. Um pão de queijo, o calor do sol sobre o rosto, a voz de um filho, o amor de uma moça bonita.

Por isso essa história é tão excepcional. Seu simbolismo é explícito, uma literalidade. O homem que está morrendo – e que por toda vida desejou moças bonitas – deseja encerrar sua vida desejando.

Sobre uma cama de hospital, ele guarda o dinheiro na fralda. Fragilizado, ele ainda mantém o poder e a autonomia escondidos no que lhe restou de privacidade. O dinheiro que vai pagar a moça que lhe faz feliz aninhado junto à parte do corpo que lhe faz feliz.

Não havia mesmo como trocar aquela fralda, onde estava guardado o que sempre deu sentido à vida que se encerra. E que dará sentido, até o fim.

Quando chegar a minha vez de morrer, também espero estar conciliada com meu desejo – e com sua expressão mais profunda. Seja ela qual for.

________________________________________

Nesta terça-feira, 15 de dezembro, faço minha estreia na TV. Depois de mais de 20 anos como repórter-canetinha, como são chamados os jornalistas dos meios impressos, sempre empunhando um bloquinho e uma caneta, peguei num microfone pela primeira vez. Fazia tempo que não me dava tanto frio na barriga, o que é sempre ótimo.

Fui convidada pela equipe do Profissão Repórter, da TV Globo, a voltar à enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual para contar a história – e as histórias – desse lugar extraordinário. Eu não poderia começar em melhor companhia: Caco Barcellos, um dos maiores repórteres do Brasil e uma das pessoas mais generosas que já conheci, dispensa apresentações; Thais Itaqui, uma jovem jornalista extremamente sensível e talentosa; e Mikael Fox, que além de ótimo repórter cinematográfico é um grande companheiro de trabalho. Ao contar essa história por imagens, não só ri e chorei, como às vezes ri e chorei ao mesmo tempo.

No ano passado, eu passei quase quatro meses no 12º andar do hospital, acompanhando a rotina da equipe de cuidados paliativos para uma reportagem de Época. Esta história pode ser lida nos seguintes links: A enfermaria entre a vida e a morte, A mulher que alimentava e Minha vida com Ailce. Agora, é a primeira vez que uma equipe de TV entra na enfermaria chefiada por Maria Goretti Maciel – uma médica que, tenho certeza, todos nós gostaríamos de ter por perto –, para acompanhar os surpreendentes enredos que se desenrolam naquele corredor.

Vivemos tempos estranhos. Basta ligar a TV ou acessar a internet para assistirmos a uma sequência sem fim de mortes violentas no noticiário, muitas vezes com detalhes escabrosos, sangue e vísceras. Mas a morte por doença ou velhice, a morte que a maioria de nós terá, esta se tornou um tabu. Para muitos, deve permanecer escondida, de preferência no ambiente asséptico dos hospitais.

Não é preciso ser Freud para perceber que as pessoas que não conseguem entrar em contato com o tema da morte são aquelas menos resolvidas com a vida. Agarram-se à ilusão de que se não enxergarem, se ficar bem escondido, pode ser que não aconteça.

O temor da morte é uma realidade atávica para uma espécie que tem consciência do fim. Mas a forma como encaramos o morrer é determinada pela cultura. Desde o século XX a morte foi se tornando cada vez mais oculta no Ocidente, como se fosse possível esconder que a vida termina.

As conseqüências desse silêncio que grita ecoam – mal – na vida social – e na de cada um de nós. Não só nos tantos exageros com que as pessoas tentam espichar a juventude a preços que seguidamente acabam custando muito caro, às vezes a própria vida, como na impossibilidade de cuidar de quem está doente e pode morrer. Para cuidar, é preciso primeiro enxergar.

É também esse medo que faz com que vivamos sem valorizar cada segundo, desatentos aos detalhes que tecem uma existência. Quando se faz de conta que a vida dura para sempre, esquecemos de prestar atenção na delicadeza que habita cada momento, na possibilidade irrepetível contida em cada segundo. Quando deixamos de olhar para a morte, deixamos de olhar para a vida. Parece-me que é um preço alto demais. Devemos aceitar nosso medo. Mas não podemos permitir que ele nos paralise, porque isso nos mataria antes do tempo.

A proposta da enfermaria de cuidados paliativos é poder olhar para o encerramento da vida como parte da própria vida. Natural e não necessariamente doloroso. Os enredos que se desenrolam naquele corredor comprido do 12º andar mostram que o fim também contém possibilidades se for vivido com verdade. Muito vale o perdão, as palavras finalmente pronunciadas, a reconciliação com os erros e acertos que existem em toda vida, um abraço apertado. Ou mesmo aquele prazer inesperado numa xícara de café.

A imprensa tem sido ágil ao mostrar a morte violenta. Às vezes com bastante propriedade, porque é preciso denunciar as muitas guerras não declaradas que vitimam especialmente os brasileiros mais pobres. Mas a imprensa tem se omitido ao tratar da morte mais prosaica, a morte da maioria, que não vai ter sua vida encerrada por tiro ou acidente.

Ao propor um programa sobre a morte em uma TV aberta, o diretor do Profissão Repórter, Marcel Souto Maior, foi corajoso. E eu me sinto honrada por participar deste momento. Quem assistir vai ter a oportunidade de aprender alguma coisa. E, melhor que isso, refletir para viver melhor.

Não existe bom jornalismo sem ousadia. Embora seja sustentada por anunciantes, a imprensa só sobrevive e conquista credibilidade se for além das imposições de audiência, no caso da TV e da internet, do número de leitores, no caso dos jornais e revistas. Do contrário, deixa-se reduzir a pão e circo.

Contar a história cotidiana da nossa época significa ter a coragem de tocar nos temas difíceis – aqueles que são difíceis exatamente por serem os mais importantes. Para um jornalista, ser corajoso não é uma escolha, mas uma responsabilidade. Com o público, com os leitores.

O ocultamento da morte, em nosso tempo, é um tema que repercute em todas as esferas não só da vida privada, mas também da pública, da política ao meio ambiente. Parece-me, por exemplo, que se conseguíssemos olhar com mais naturalidade para nossa morte, não teríamos consumido o planeta com a voracidade de quem precisa acreditar que a vida – a nossa e a da Terra – dura para sempre.

Também nós, jornalistas, não estamos vivos enquanto respiramos. Mas enquanto ousamos. Deixar de ousar, acomodar-se aos temas mais fáceis e palatáveis ao público, é a morte simbólica de um repórter, de uma publicação, de um programa de TV.

Para nós, fazer um programa sobre a morte foi um ato de vida. Em todos os sentidos.

Ninguém precisa se lembrar de respirar ao acordar. Mas é preciso lembrar, a cada manhã, de desejar. Este é o ato que nos humaniza. E que nos manterá vivos, até o fim.

(Publicado na Revista Época em 14/12/2009)

A Coveira

Quando o sexto bebê apodreceu dentro dela, desistiu. Era isso o que seu útero era, uma tumba. Gerava para matar. Era como se dentro dela se engendrasse um plano macabro. Seu óvulo capturava o espermatozóide saltitante do homem, todo veloz e todo potente, saído de um pinto duro. E pronto, estava feito.

Ela o observava olhando aquele pinto no espelho. De frente, de lado. Medindo a mais, duvidando do tamanho, se convencendo, a convencendo, horas e horas de vida gastas dia após dia na utopia de ter o maior pau do mundo. E então a penetrava com aquele pinto que continha todas as grandes esperanças dele. Sem saber que nos confins da mulher que amava, enquanto ela o olhava com olhos de bambi, o mal espreitava.

Seu óvulo acolhia o campeão deles todos, daqueles microscópicos homenzinhos atletas e, quando ele ainda estava no alto do pódio recebendo a medalha de ouro da fecundação, a vida dentro dela iniciava seu plano de morte. Como um pequeno girino humano numa banheira de carne, seu filho começava a existir. Ossos, pulmões, rins, fígado, coração.

Riam quando ela dizia que sentia o pequeno coração dentro dela. Cento e vinte a cento e sessenta batidas por minuto. De repente ela ficava ali, imóvel, o gesto paralisado no ar, tomada por aquela realidade irreal. Dentro dela batia um coração que não era o seu. Às vezes se encantava. Em outras, era só assustador.

Ele abria a porta da casa com aquele olhar inseguro de quem deveria ter todas as certezas, mas também tinha medo. E no sofá da sala faziam planos para um filho que, de um modo diferente para cada um, os assustava mais do que poderiam confessar. Era um mistério, ela sabia, a razão de desejar tanto algo tão aterrorizante. Mas desejavam, ela e ele, cada um do seu jeito secreto. E queriam muito amar aquele coração voraz dentro de apenas um deles.

Nestes momentos, quando olhava para seu homem se esforçando tanto, pensava que para ele deveria ser quase impossível olhar para uma mulher que o tinha dentro dela. Se era difícil ter dentro, como seria ter fora? Não entendia por que ele não saía correndo, como tantos. E a cada noite surpreendia-se com a volta dele pela porta da frente.

E então, numa manhã, o sangue na calcinha. E a dor. Ela fechava as pernas como se pudesse impedir que o assassinato fosse consumado. E na sexta vez fechou tanto e escondeu tanto por tantos dias que apodreceu. Ficou semanas no hospital sem saber se ia viver. Nem mesmo sabia se queria. Mas ele, aquele homem assustado, mas sempre presente, estava lá. E um dia ela levantou da cama e voltou para casa. E os dois entraram, cambaleando, pela porta da frente.

No início, pensava que seu útero era tão sombrio, tão árido, que seus bebês se suicidavam. Achou que eles podiam ouvir seus pensamentos confusos, aqueles que não conseguia impedir. Sentiam seu medo, não só da vida, mas seu medo deles. Escutavam seus temores e preferiam morrer a tê-la como mãe. Ela era tão inadequada que seus bebês preferiam suicidar-se.

Depois entendeu que estava se enganando, tentando encobrir seu crime. Era ela que os matava. Que cortava o fluxo do rio que os alimentava até que morressem de fome antes de existir. Que os deixava sem ar até a morte por asfixia. Era o mal que ela não conseguia controlar que assassinava seus bebês. Um após outro, seis. Era ela, sempre havia sido.

Não pôde mais olhar para ele, desde então. Sentia vergonha e uma culpa que escapava pelos seus poros. Quis confessar, mas temia tanto que ele a abandonasse que se acovardou na primeira sílaba. Depressão, o médico diagnosticou quando ele a carregou para o consultório, puxada pela mão como uma autômata. Ela era uma serial killer dos filhos dele, e ele ainda queria salvá-la.

Então engravidou pela sétima vez. E desta vez não traçaram planos. E desta vez nem sequer reparou no rosto assustado dele, nem se comoveu com todas as tentativas dele de disfarçar seu medo. Nem ligou para sofrimento dele com aquela mulher triste e muda que era ela. E a barriga cresceu como se nem mesmo fosse dela, como se fosse apenas uma parte acoplada nela. Que não lhe dizia respeito. Ela estava além da culpa, naquele lugar vazio uma curva à frente da dor.

Quando seu filho nasceu, algo brilhou nos olhos dela. Algo fugaz. Seu filho sobrevivera a ela, à maldade dentro dela. Afinal, ela era falível. Olhou temerosa para o rostinho amassado do seu bebê e para o rosto além da felicidade do seu homem, o pai dele. Quase sorriu enquanto assistia àquela pequena criatura sugando o leite de dentro dela, aspirando no branco do alimento a escuridão invisível do mal dela.

Entendeu o quadro todo pela primeira vez. Era essa a sina inescapável dela, a de todas as mães. Dar a vida para um ser que vai morrer. Inexoravelmente.

Ela não suportaria. Queria ser boa, não má. Amava aquele filho, contra todos os prognósticos de sua depressão pré e pós-parto, contra toda a lógica, contra mesmo o seu desejo.

Quando a cabeça do marido pendeu no sofá do quarto do hospital, exausto e finalmente feliz, ela beijou a cabecinha redonda do filho, aconchegou-o no peito e o manteve ali até certificar-se da batida de apenas um coração.

Medo de chester

Por que nos deixamos enlouquecer no fim do ano?

Não sei quando aconteceu. Eu era do tipo que ficava toda faceira quando via a cidade iluminada para o Natal. Achava tudo lindo. Agora, eu rosno para as luzinhas. Decorações natalinas de shoppings me irritam. Panetone, mesmo antes do episódio Arruda, me tiravam do sério. Ontem fui pegar o elevador do prédio em que moro e dei de cara com uma bota de Papai Noel pendurada na porta. Rosnei. A ideia de me reunir à manada que vai às compras gastar o 13º me arrepia. Aqui em casa, os enfeites natalinos e o pinheirinho não saem da caixa há anos. Me escondo dos amigos-secretos como posso, mas de um jeito ou outro eles me descobrem. Já são dois! Acho que virei o duende malvado do Natal. Não faço mal para ninguém nem quero estripar o Papai Noel. Mas rosno.

Rhhhhhuuuuuuuuum. Humpft. Grunft. Algo assim.

O caso é que cada vez eu fico mais louca no Natal. E vejo todo mundo ficando louco ao meu redor. Para mim, a instalação das luzinhas natalinas marca a abertura da temporada de suplício, uma versão pós-moderna da via-crúcis.

Percebo que não sou a única. Muitos sofrem pelas esquinas, querem que o ano acabe antes, prefeririam acordar no Carnaval.

Sei que há um monte de gente que adora esta época do ano. Tenho um grupo de amigas que se reuniram na casa de uma delas na semana passada para arrumar a árvore de Natal na maior empolgação. Minha mãe passa o ano guardando dinheiro para os presentes. E minha avó fazia isso antes dela. E eu preciso confessar que tenho meus momentos.

Mas uma parte da humanidade gostaria de pular esta época do ano. Tenho um amigo que, na impossibilidade de saltar as festas de fim de ano, tentou pular pela janela na véspera e passou o Natal internado numa ala psiquiátrica. Esta parte da humanidade, da qual ele e às vezes eu fazemos parte, não tem direito à voz. Somos discriminados, olhados como párias. Não possuir espírito natalino é considerado quase uma deficiência, um desvio de caráter. Além de não conseguirmos ficar felizes embaixo de um pinheiro, nós, os anti-natalinos, ainda nos sentimos culpados.

Depois que você se casa, piora. É imperativo fazer um curso intensivo de diplomacia para apaziguar as respectivas famílias. O “quem vai passar com quem” o Natal e o Réveillon vira uma obra de estrategista. Nós, os casados com famílias em diferentes cidades, não cometeríamos erros básicos como invadir a Rússia no inverno, por exemplo.

Temos visão de futuro e olhos de lince. Mas coração mole. Para agradar a todos, gastamos parte dos dias de folga peregrinando por aeroportos. Como as companhias aéreas não têm espírito natalino, deixamos uma parte do 13º salário, justo aquela que não gastamos com presentes, num daqueles aviões que nos tratam como se fôssemos chimpanzés de zoológico e só nos dão amendoins.

Quando chega a hora da ceia, estamos exaustos e famintos. Eu, por exemplo, como qualquer coisa. Já comi até larva na falta de coisa melhor numa de minhas incursões pela floresta amazônica. Mas tenho medo de chester. Medo não, pavor. Começou anos atrás. Havia congelado o chester que ganhei da firma e, num domingo de geladeira particularmente vazia, resolvi assá-lo.

Não conseguia desgrudar os olhos do vidro do forno. Era estranho demais um bicho quase só coxa e peito. Como ele não me parecia deste mundo, também não me parecia que morria. Fui buscar instruções, uma bula. Estava escrito: “ave”. Como assim, ave?

Assei, assei, assei… e o chester continuava lá, morto-vivo. Ave. Não consegui. Não sou nem vegetariana nem cristã, mas me pareceu pecado comer aquele ser inventado só para ser comido.

Depois desta tragédia anunciada, me perguntam: o que você vai fazer no réveillon? Nada. Se tudo der certo, vou estar dormindo. Sempre me dá sono um pouco antes da meia-noite. Adoro uma festa, mas nenhuma em que eu tenha de fazer balanço do ano ao mesmo tempo.
Pretendo estar ronronando no sofá azul lá de casa, depois de ver um filme, ler um livro ou divagar com o João. Mas, claro, meu projeto está ameaçado pelos milhares de fogos que vão espocar ao meu redor.

Rrrrrhhhhhhhhhhhmmmmm. Humpft. Grunft.

Por que não ir para algum paraíso tropical? Ou para o meio do mato? Porque não existe nenhuma destas modalidades nesta época do ano. Todos nós temos a mesma ideia. E, assim, todos “os lugares paradisíacos e distantes das grandes cidades” se transformam em sucursais do inferno com pernilongos sem grife e preços da Daslu. E para chegar lá você fica horas empatado no trânsito ou no saguão do aeroporto. E se você ligar o rádio do carro ou a TV para matar o tempo enquanto espera vai ouvir mensagens. Ou a voz do Roberto Carlos. Eu gosto do Roberto em todas as épocas do ano, menos nesta.

Caso pense em se distrair comprando uma revista, vai ser intimado a ticar todas as resoluções que não cumpriu no ano que passou e fazer uma nova lista de tarefas. Ou vai precisar encarar páginas e mais páginas com receitas de como mudar de vida e ser mais leve no ano que se inicia. As festas de fim de ano marcam também a época de reprodução dos especialistas em felicidade alheia. Nós deveríamos sair em bloco, empunhando bombas de inseticida, para impedir que isso acontecesse, mas estamos presos em alguma confraternização.

E tudo isso ainda pode piorar muito se, como acontece em 99% das famílias, alguém encher a cara ou surtar e acabar tudo em mágoa, com todos os nossos esforços escoando pelo ralo junto com o espumante.

Quando tudo isso acaba, o ano recém começou. Você está endividado. Exausto. Diante de você há uma lista de resoluções e uma agenda em branco. Você acabou de vencer a maior tarefa do ano e já tem diante de si uma lista delas.

Sei que é difícil compreender, em meio a tantas luzes. Mas, como no genial Bartleby, o escriturário, de Herman Melville (sempre um ótimo presente de Natal, aliás), há quem diga, diante das promessas de Ano-Novo: “Prefiro não”.

Nós respeitamos quem prefere sim. E genuinamente aprecia. Mas não discriminem quem prefere cuspir nas luzinhas de Natal. Não olhem para nós como se fôssemos primos daquela bactéria descoberta em Marte. Nós, os anti-natalinos, também temos sentimentos. E o chester é nosso amigo.

(Publicado na Revista Época em 07/12/2009)

A vagina dentada

Um dia escondeu-se no banheiro e acocorou-se sobre um espelho para enxergá-los. Viu apenas carne vermelha e pensou que eram restos humanos triturados por eles. Horrorizou-se. Passou um bom tempo tentando ignorar que algo perigoso morava entre suas coxas. Na escola, fechava tanto as pernas para que seus dentes não avançassem em alguém que sofreu uma assadura séria.

Com o tempo, os dentes começaram a coçar entre seus lábios. Será que lá também ela tinha dentes de leite que agora eram trocados por outros, maiores e definitivos? Rastreava seu xixi e só dava a descarga depois de ter certeza que não havia nada no vaso. O que será que a Fada dos Dentes deixaria em troca daqueles, tão mais perigosos e atraentes?

Neste tempo começou a ter pesadelos. Eram dentes de animal selvagem aqueles que a habitavam. Em seus sonhos eles a devoravam toda. Era aterrorizante, mas ao mesmo tempo havia algo na sensação de ser devorada que ela gostava. Quando acordava, estava molhada entre as pernas. Concluiu que seus dentes babavam.

Teve certeza quando os pêlos nasceram. Havia uma loba dentro dela. Foi tanta a vergonha da descoberta que não contou a ninguém. E quando sangrou, desmaiou de pavor porque sabia que algo vivo havia sido despedaçado ali. Ao despertar, o estômago embrulhado e a cabeça tonta, apalpou-se em busca do que dela havia desaparecido naquela boca de fera. Nada achou.

Soube então que de tempos em tempos a boca avançava pelo mundo fazendo cadáveres que sangravam pelas suas pernas. Ao descobrir, a mãe reforçou a vigilância e o olhar ofendido. A mãe sabia que ela não era boa. Ela sabia que não era boa. E quanto mais chorava, mais faminta se sentia. Quanto mais queria fechar as pernas, mais desejava abri-las.

Na noite em que no escuro do cinema um homem desconhecido acomodou a mão ali, fugiu esbaforida porque agora também queimava. Por toda aquela semana andou pelas ruas esquadrinhando os cantos com o canto dos olhos na tentativa de descobrir um homem maneta. Quando sangrou, acreditou que botava para fora as cartilagens, as unhas dele. E gostou.

Era hora, soube então.

Ao anunciar que havia se matriculado em um curso de corte e costura, a mãe deu a ela algo próximo a um sorriso de aprovação. Será que a mãe adivinhou? Ela achava que sim.

Foi uma aluna aplicada. Já na primeira aula aprendeu a dar pontos firmes e uniformes. As colegas não entendiam quando lágrimas grossas encharcavam a trama de seu bordado. Brincavam que ela sofria de amor não correspondido. Quem poderia saber o nome do que havia dentro dela?

Naquela noite deu um beijo na mãe. Que retribuiu com sua boca seca. Sempre havia sido assim a boca da mãe, sugada de tudo, e também de amor, como uma uva passa.

No dia seguinte a encontraram no chão do quarto. Vestida sobre uma poça de sangue, entre agulhas e carretéis de linha preta. As pernas tão fortemente alinhavadas que o moço da funerária não foi capaz de romper os pontos. Foi preciso quebrar-lhe os ossos.

Ela nunca soube que sua vagina era banguela.

Página 2 de 1112345...10...Última »