A mulher erectus

Ela tinha uma espinha que não se dobrava. Era uma herança genética predominante na família. Nem que quisesse, ela nem mesmo vergava. Aquela espinha era como uma haste de adamantium enfiada em seu corpo. Determinada pela espinha, a vida para ela era vista numa perspectiva da honra. Em tempos relativistas, ela mantinha um arcabouço de valores inarredáveis. Se algum pensamento menos elevado por ventura cruzasse seu cérebro, ainda que numa trajetória fugaz, a espinha funcionava como um escudo. A mulher preferia quebrar a dobrar. Não se curvava. Nem aos ventos que varriam a praia onde vivia. Nem a um homem.

Sentia-se segura na tesa altura onde vivia. Ela sempre sabia. Isso é honrado, aquilo não é. Fulano não tem caráter, sicrano tem. O céu é azul, pássaros voam, homens têm pênis. Era moralmente confortável olhar o mundo da extremidade superior de sua coluna vertebral. Mas, ainda que não ousasse confessar, começara a sentir certo desconforto na região das costas.

Era difícil, por exemplo, executar gestos simples como recolher algo caído no chão por distração sem dobrar a espinha. Num dia em que tentara descobrir se sua bunda ainda era firme acabou tendo torcicolo. E quando os ventos açoitaram a praia onde fazia sua caminhada matinal, para não vergar acabou caindo de costas e esmagando uma família de siris.

Mas o que a chateava era não poder dançar. Só mesmo trancada em casa, sozinha, a coreografia bizarra executada pelo seu corpo era remotamente aceitável. Ela era o que era, entretanto. Era, principalmente, o que devia ser. Nesse sentido, não poder dançar era um preço baixo em troca de atravessar uma existência inteira sem ser assaltada uma única vez por uma dúvida, nem mesmo uma das bem pequenas. Sua espinha era feita do material irredutível das certezas.

Um dia passou pelo estrangeiro no seu andar marcial e o ouviu chamá-la de gostosa. Uma frente fria atravessou suas vértebras vinda do sul, como se nevasse em sua medula. Como ele ousava? Ela era distinta, digna, virtuosa, clássica. Gostosa, jamais. Mas a cada dia, quando ela passava, ele repetia. E ela era reta demais para mudar de caminho.

Numa manhã, em vez de frio ela começou a sentir um calor irradiando-se pela espinha. Tropeçou, até. Ele a convidara para ir ao cinema. Nenhum homem, até então, havia tido a coragem. Os princípios dela eram superiores demais para que algum alcançasse a estatura de seus ouvidos. Com o canto do olho, ela o espiou encostado na esquina, despreocupado de tudo, olhando para ela como se ela fosse só uma mulher.

Dentro dela, pela primeira vez, se insinuou uma dúvida que pinçou o nervo e provocou uma hérnia de disco. Ela não era uma mulher como as outras. Por que, então, desejava que ele a olhasse de novo como se fosse? Sua coluna travou. Precisou pedir licença do trabalho, justo ela, que nunca adoecia, nunca faltava, nunca tinha TPM nem cólica nem enxaqueca.

Quando conseguiu ficar em pé, tentou retomar a reta pavimentada que até então havia sido a sua vida. Mas algo na sua espinha havia se estragado. Sentia, mais do que ouvia, o ruído quase imperceptível do desgaste ao andar. E quando a colega de trabalho perguntou se deveria imprimir o texto em folhas A4 ou A3, ela não soube o que responder. Naquele fim de tarde, quando deixou a firma, ele a esperava. Ela não foi capaz de dizer não, atordoada com a dor de uma crise do ciático. Entrou no cinema com ele, manquejando um pouco.

Achou que o mundo acabaria para além das imagens apocalípticas da tela. Em vez disso, começou a sentir uma náusea tomar conta de suas entranhas. Logo se contorcia na poltrona do cinema. Ele desgrudou os olhos do filme quando a Casa Branca era implodida por um exército de aliens para perguntar se ela queria que buscasse água. Num esgar, ela esboçou um não com os lábios descorados.

Então começou. Sentiu-se arrebentada de dentro para fora. Ela nunca teve sexo, quanto mais filhos, mas aquele parecia um parto. A coisa, porém, lhe subia pela boca. E, numa contração arrasadora, assomou entre seus caninos. Não distinguiu a princípio o que era aquela coisa branca, com pedaços gelatinosos entre as porções duras que haviam aberto fístulas em seu esôfago. Começou a puxar e quanto mais puxava a coisa seguia emergindo como uma enguia com carapaça. Finalmente percebeu.

O que puxava de dentro dela era sua espinha. Agora aos pedaços. Na poltrona do cinema, enquanto na tela as explosões abafavam o ruído de seu interior partido, ela era uma mulher tirando a espinha pela boca.

Quando acabou, chutou a sujeira de ossos e medula para baixo do banco. Finalmente, toda mole, derramou-se feliz entre os braços do homem. Que a aninhou e ofereceu a ela um pouco de pipoca.

A era dos adultos infantilizados

Se não conseguimos crescer, como será possível educar os filhos?

Na semana passada, um amigo me enviou um email com o anúncio de um personal organizer. Ele sugeria que eu contratasse um desses “profissionais” para arrumar a minha mesa. Era uma sacanagem, claro. Eu detenho o título de autora da mesa mais bagunçada da Época desde que entrei na equipe da revista, em janeiro de 2000. Nesse quesito, sou imbatível. Na minha mesa, é possível encontrar, convivendo ecumenicamente lado a lado (ou um em cima do outro), um saco de salgadinhos, uma imagem de São Francisco de Assis, uma lagosta de borracha e um dicionário de sinônimos. Isso em apenas um cantinho. Às vezes preciso escrever com os cotovelos grudados no corpo, porque não tenho outro lugar para apoiá-los. Embora venha cogitando ter uma mesa organizada há umas duas décadas, na minha bagunça pessoal eu acho tudo e não perco nada – ou quase nada. É o meu jeito.

Mas há algo bem interessante na brincadeira do meu amigo. A multiplicação de termos como personal e coach diz muito sobre a época em que vivemos. E sobre os adultos que nos tornamos.

O conceito de infância, como o conhecemos, se consolidou no Ocidente a partir do século XVIII. Até o século XVI, pelo menos, assim que fossem desmamadas e conseguissem se virar sem as mães ou as amas, as crianças eram integradas ao mundo dos adultos. E, como tal, eram responsáveis pelas consequências de seus atos. A infância, como idade da brincadeira e da formação escolar, ao mesmo tempo com direito à proteção dos pais e depois à do Estado, é algo relativamente novo.

Nem sempre as crianças significaram a promessa para o futuro tanto de uma família como de uma nação. A infância não é um conceito natural ou determinado apenas pela biologia. Como tudo, é também ou principalmente uma invenção cultural, um fenômeno histórico implicado nas transformações econômicas e sociais do mundo dos humanos, em permanente mudança e construção.

Me parece que hoje há algo novo nesse cenário. A partir do século XXI, vivemos a era dos adultos infantilizados. Uma espécie de infância permanente do indivíduo. Não é por acaso que os coaches proliferam. Coach, em inglês, significa treinador. Originalmente, treinador de times e de esportistas. Mas que foi ampliada para treinador de tudo, inclusive de como viver: os life coaches. Personal trainers têm função semelhante. Treinar alguém para se exercitar, comer, se vestir, namorar, conseguir amigos e emprego, lidar com conflitos matrimoniais e profissionais, arrumar as finanças e também organizar os armários e a mesa de trabalho, como na sugestão do meu amigo.

Nesses conceitos importados dos Estados Unidos, o país que transformou a infância numa bilionária indústria cultural e de consumo, a ideia é a de que, embora estejamos no que se convencionou chamar de idade adulta, não sabemos lidar com nenhum aspecto da vida sozinhos. Coaches e personal trainers podem ser eufemismos para uma função muito parecida com a da babá. Crescemos, terminamos a escola, constituímos família ou não, vamos para o mercado de trabalho, mas precisamos de alguém que arrume nossa mesa e nossa casa, nos ensine a comer direito, nos diga como namorar e conseguir amigos, nos treine para impressionar o chefe e conquistar uma promoção. Nos ensine, em programas diários, semanais, mensais e anuais, como num planejamento das metas de uma empresa, a viver, como no caso dos life coaches.

Ao nos reduzirmos a adultos que precisam de babás por total incapacidade de lidar com qualquer aspecto da vida, do sentimental ao profissional, a que renunciamos? A muito. Mas o principal é que renunciamos à responsabilidade. A construção contemporânea de infância está fundamentada no conceito de que, tanto no estatuto social quanto no jurídico, crianças são seres com direito à proteção e à educação – mas sem responsabilidade pelos seus atos. Crescer, tornar-se adulto, é justamente passar a responsabilizar-se pelos seus atos. Mas, no caso das novas gerações de 20, 30, 40 anos, se isso ainda vale para o estatuto jurídico, parece perder força no estatuto social.

Os adultos desse início de milênio parecem prolongar a infância no sentido da não-responsabilização. São sinais, aqui e ali, de uma transformação na forma de ver a si mesmo – e de ser visto. É corriqueiro testemunhar, seja no bar ou na empresa, gente que fica muito surpresa porque seus atos motivaram uma reação indesejável, uma conseqüência pela qual precisam responder. Nesse momento, vemos adultos com cara de surpresa, olhos arregalados como os de uma criança. Parecem pensar: “Mas por que eu, que sou tão bacana, tão inteligente, tão cool?”. Quando podem, chamam os pais, os advogados…. os coaches para salvá-los. A expectativa, como um direito adquirido, é a de que sempre serão “perdoados”.

Da mesma maneira, encarnam a geração do “eu mereço”. Se não há responsabilidade pelos seus atos, também não há responsabilidade pelas suas conquistas. Está cada vez mais diluída a ideia de trabalhar por aquilo que se quer com a consciência de que custa tempo, esforço, dedicação. Escolhas e também perdas, frustrações. Alcançar sonhos, ideais ou mesmo objetivos parece ser compreendido como uma consequência natural do próprio existir, de preferência imediata. É uma espécie de visão contemporânea da ideia mística de destino, de predestinação. Ou apenas uma questão de usar a estratégia certa. E, para nos ensinar a traçá-la, buscamos um business coach.

O “eu mereço” vem a priori. “Eu mereço porque eu sou eu”. Ou: “Eu existo, logo mereço”. O fazer por merecer foi eliminado da equação. Quando essa crença, tão fundamentalista quanto os preceitos de algumas religiões, fracassa, aí é hora de buscar o happiness coach (treinador de felicidade), o dating coach (treinador de relacionamentos amorosos), ohealth coach (treinador de saúde), o conflict coach (treinador de conflitos matrimoniais e profissionais), o diet coach(treinador de alimentação saudável). O life coach. É estarrecedor verificar como as gerações que estão aí – e as que estão vindo – parecem não perceber que a vida é dura e dá trabalho conquistar o que se deseja. E, mesmo que se esforcem muito, haverá sempre o que não foi possível alcançar.

Muito se tem falado e escrito sobre a falta de limites das crianças de hoje. E aqui o “de hoje” faz realmente sentido. A partir da constatação de que as crianças não param quietas um minuto, em lugar nenhum, a psiquiatria criou síndromes no mínimo curiosas. A indústria dos medicamentos estimulou a disseminação de drogas no mínimo questionáveis. Foram tecidas teses de todo o tipo, algumas delas bem estapafúrdias. Ou no mínimo curiosas.

Afinal, os professores choram em sala de aula pela prepotência dos alunos. E ninguém mais aguenta crianças berrando nos restaurantes, falando nos cinemas, atropelando nos corredores. Eu, que sou bem pouco tolerante não só com crianças mal-educadas, mas com gente mal-educada, em geral reclamo. Os pequenos e rosados pimpolhos costumam me olhar com os olhos estalados: “Mas eu sou tão fofo! Por que você não gosta de mim?”. E as mães, indignadas por eu não me render ao encanto de seus rebentos, também me olham ofendidas: “Mas ele é tão fofo! Todo mundo gosta dele. Você deve ter algum problema!”. E lá vem a ofensa predileta para atingir uma mulher: “Sua mal-amada!”.

Para além das boas hipóteses das muitas teses e debates sobre o fenômeno da infância insuportável, me parece que vale a pena pensar sobre quem são os pais dessas crianças. Se os pais são adultos infantilizados, que não conseguem se responsabilizar pelas suas vidas – e muitos nem acham que precisam… –, como esperar que suas crianças se responsabilizem? Como esperar que os pais sejam pais se continuam sendo filhos?

Esses pais continuam sendo filhos ao não responsabilizarem-se pelas suas vidas. Ao permitir que seus filhos façam o que bem entendem, não só dentro de casa, mas no espaço público, estão escolhendo o que dá menos trabalho. Sim, porque educar, botar limites, se importar, dá muito trabalho. E exige tempo, gasto de energia, esforço. Amor. O mais fácil é deixar para lá. Ou bater a porta da rua e deixar que a babá – a de seus filhos – se vire. Mas há algo mais.

Me parece que a permissividade com os filhos é uma permissividade consigo mesmo. Se os filhos encarnam o ideal dos pais, se neles estão colocados os desejos e as melhores esperanças dos pais, não seria de esperar que o ideal de pais infantilizados seja o de que os filhos possam tudo? Bem ou mal, ainda que andem pelo mundo como se não tivessem responsabilidade nem por si mesmos nem pelos destinos do planeta, em alguma medida esses adultos precisam lidar com as consequências de seus atos – ou não-atos.

É de se esperar que, para os filhos, desejem, consciente ou inconscientemente, que possam fazer tudo sem nenhuma espécie de retaliação. Aos filhos, tudo deve ser permitido. Algo como: “se para mim não está sendo assim, que pelo menos seja para os meus filhos”. Um ideal tão óbvio como é o desejo que os filhos se formem na universidade para os pais que não puderam estudar ou que o filho tenha casa própria para os pais que viveram a vida inteira de aluguel.

Desde que a infância se tornou um depositário do futuro, os pais desejam que os filhos realizem aquilo que não puderam realizar. Não seria lógico que os pais que se tornaram adultos sem se responsabilizar pela vida – sem sair da infância, portanto – desejem que os filhos possam fazer tudo? Nesse sentido, é ainda mais grave do que parece: ao permitir tudo, esses pais estão fazendo o melhor que podem para o cumprimento de suas mais caras esperanças.

Há muito para pensar. E, por enquanto – ufa! – ainda não inventaram um think coach.

(Publicado na Revista Época em 16/11/2009)

O coração selvagem

Você sabe onde está o seu?

Dias atrás tive minha própria versão das madeleines de Marcel Proust. No primeiro volume de Em busca do Tempo Perdido, o personagem principal embarca em uma viagem pelas suas memórias ao morder um desses bolinhos franceses. Só vai acabar milhares de páginas depois, ao final de uma das obras-primas da literatura. No meu caso, começou com uma frase da minha professora de pilates.

No final de cada aula, durante o relaxamento, ela costuma pedir ajuda à nossa imaginação. Sempre acho um tanto estranhas essas evocações, do tipo “imagine uma luz amarela envolvendo o seu fígado”…. Até eu conseguir localizar meu fígado já acabou a aula. Naquele dia, porém, ela disse: “imaginem uma flor bem perfumada”.

De imediato, senti o perfume da primavera. Para nós, do interior do Rio Grande do Sul, primavera é uma árvore baixinha, de copa carregada, que floresce apenas nesta estação do ano. Cobre-se de minúsculas flores roxas e brancas. Não tem nenhum parentesco com a árvore de mesmo nome que existe em São Paulo. A minha primavera tem um perfume extraordinário e tão poderoso que toma conta de um quarteirão inteiro. Debaixo dela, eu me sentia uma ninfa dos bosques e vivia mitologias só minhas.

A primavera da minha infância habitava o jardim da minha tia. Essa tia havia sido uma das moças mais belas de Ijuí, com olhos verdes de gata, pele de leite e um cabelo bem preto, herdados da família da minha avó materna, uma ascendência povoada de fantasmas, tesouros e piratas. Ela parecia a Ava Gardner, ouvi infindáveis vezes dos mais velhos, num tom de admiração e lamento, porque ninguém com aquela aparência merecia sofrer tanto quanto ela.

Minha tia cuidava de uma filha que não caminhava, não falava, mas percebia a vida ao redor. Foi seu segundo parto e, naquele tempo, não ocorreu ao médico que minha tia tinha Rh negativo e uma primeira criança com Rh positivo, o que poderia causar eritroblastose fetal. Um erro tão prosaico para a medicina e tantas vidas assinaladas.

Esse nascimento trágico transformou minha tia numa administradora de dias determinados por horários, doenças e gemidos. De sósia de Ava Gardner, ela se transformou, no tempo de um parto, na “pobre” mãe de uma filha excepcional. Numa cidade pequena, os papéis atribuídos a cada um têm peso de concreto. Ou você arranca essa máscara impingida ao seu rosto com os dentes ou está condenado.

Imagino que minha tia não tenha vislumbrado escolha. Quando eu nasci, esse lugar cimentado já era dela. Eu sempre a amei e amo até hoje por ter me dado algo que só percebi agora, a mil quilômetros e décadas de distância, numa aula de pilates em São Paulo, pelo cheiro das flores da primavera do seu jardim que me alcançaram num assalto da memória.

Minha tia me deu um jardim. E eu não sei o que teria sido da minha infância sem ele. Não era um jardim qualquer. Se na vida ela teve de se resignar aos canteiros ordenados da aparência, às cores discretas e às combinações comportadas, seu jardim era uma subversão da ordem. Em um enorme quintal ela havia plantado de tudo. E tudo misturado. E deixava essa babel vegetal crescer segundo os humores de cada espécie.

Havia flores comestíveis, frutas exóticas, regiões com plantas tão fechadas que aranhas e insetos desconhecidos se multiplicavam em cenas de sexo violento e explícito assistidas por mim e pela minha prima com olhos estalados. Nessa geografia desvairada, como uma criança sem tempo, eu comia flores, mastigava formigas e via os louva-a-deus perderem literalmente a cabeça durante a cópula. Não era um jardim, era uma selva. Charles Darwin poderia ter construído pelo menos uma parte de sua teoria sem sair do jardim da minha tia.

Eu dormia em casa, mas vivia ali. Era naquele jardim que “as estações se sucediam produzindo nada além de si mesmas”. Para mim, a crueldade humana da ordenação da vida no lado de fora dos muros do quintal só era suportável porque eu podia me entregar ao caos da vegetação indomável daquele jardim. Eu não era capaz de racionalizar, mas sentia com minhas vísceras que apenas o caos fazia sentido. A vida estava na falta de controle, não nas regras que regiam uma cidade que, naquele tempo, era para mim o mundo inteiro. De algum modo, o jardim manteve a minha sanidade.

Ao crescer, perdi o jardim. Ele continuava lá, mas eu já não era capaz de enxergá-lo. Minha tia continuou plantando. E à medida que as pessoas foram morrendo ou partindo ao redor dela, mais e mais voraz e fechado o jardim se tornava. Já era difícil vislumbrar a casa em algum lugar daquele mato. Minha tia lá ficou, sozinha no seu jardim com uma casa no meio, por muitas estações. Há poucos anos, teve de vender a casa, o jardim, o terreno, para que lá construíssem um prédio. Em troca, lhe deram um apartamento.

Para todos parecia que era uma ótima ideia se livrar de uma casa velha e de um matagal. Menos para minha tia. Nunca perguntei a ela como se sentiu ao assistir a seu jardim ser esmagado pelo concreto de mais um prédio impessoal. No início desse ano fui visitá-la e ela me apresentou seu apartamento. Fiquei aliviada ao perceber que as plantas já começavam a subverter os cômodos de classe média. Minha tia estava salva.

Foi só ao final da aula de pilates, ao ser tomada pelo cheiro das flores da primavera do jardim da minha tia, que compreendi algo que esteve sempre ali. Tão óbvio, talvez óbvio demais para ver. O jardim era o coração selvagem da minha tia. Na violência daquelas plantas entrelaçadas, crescendo sem poda e sem propósito, ela protegia o melhor dela. Impedia que a tragédia da vida não como ela é, mas como nos obrigam a acreditar que ela seja, esmagasse o melhor dela.

Era ali, naqueles cantos úmidos e sombrios, que o coração da minha tia batia com fúria, enquanto entre as paredes da casa ela encarcerava suas grandes esperanças numa máscara de resignação. Deitada na mesa de pilates, de manhã cedo e com apenas um yogurte de cenoura e laranja no estômago, eu vi os braços e pernas da minha tia se enraizando e virando seiva e tronco na selvageria da vegetação semeada por ela à revelia de todos. Naquele jardim onde ela guardou a melhor porção de si mesma, para sempre ela seria, como Jean Cocteau disse de Ava Gardner, “o mais belo animal do mundo”.

———————————————————————————–

Como é possível compreender algo tanto tempo depois e em contexto tão fora de propósito?

Parti em busca de meu próprio coração selvagem. Descobri ali, em um minuto de assalto da memória provocado por um cheiro de flor, que é preciso ter um para viver.

Pela vida a gente vai perdendo as unhas, deixando fragmentos de dentes aqui e ali. Às vezes se convencendo de que é preciso se resignar a uma lógica que nos garantem ser maior que a gente. Aceitação é uma palavra generosa, prenhe de possibilidades. Resignação é a pior palavra da língua portuguesa. É um esmagamento. Sempre fui capaz de compreender a selvageria, jamais a resignação.

Não penso que nascemos para nos resignarmos a esta ou àquela vida. Nascemos para viver. Nesse embate com as tantas paredes cotidianas, é preciso manter nosso coração selvagem batendo. Cravar flores na terra úmida de nossa alma em vez de semear pedras que erguem muros.

Se ainda não desistimos, é porque nosso coração selvagem está em algum lugar, mesmo que não o percebamos. Pode estar num jardim, como o de minha tia, num sonho resistente, entre as páginas de um livro por escrever, em alguma mania, numa obsessão. É nesse segredo só nosso que mora nossa vontade de viver, contra tudo e contra todos os aniquilamentos, para além das máscaras com que cobrimos a estranheza de nossa face. É preciso encontrá-lo para colocá-lo de volta em nosso peito.
_______________________________________________

P.S. – Meu coração selvagem, acho eu, se expressa na minha necessidade visceral de escrever. Eu já escrevia na minha cabeça antes de aprender a transformar pensamentos em letras. Desde a semana passada, escrevo também em um site literário – www.vidabreve.com. Somos sete cronistas, um para cada dia da semana: além de mim, Ana Paula Maia, Fabricio Carpinejar, Humberto Werneck, Luís Henrique Pellanda, Rogério Pereira, Tatiana Salem Levy. E sete ilustradores, também um para cada dia: Felipe Rodrigues, Marco Jacobsen, Osvalter, Ricardo Humberto, Simon Ducroquet, Tereza Yamashita.

Eu sou a mulher das terças-feiras. Lá faço ficção da crônica cotidiana, ilustrada por Ramon Muniz. É um outro caminho na busca de meu coração selvagem. De um outro jeito, exercendo uma outra voz. Quem quiser, pode passar por lá para dar uma espiada e ver se gosta dessa parte diferente de mim mesma.

(Publicado na Revista Época em 09/11/2009)

A mulher impenetrável

Quando a conheceu, ela avisou. Sou impenetrável. Ele achou que era uma declaração de mulher metida. Estava encantado demais pelos olhos amarelos dela para se decepcionar com frases de efeito. Com o tempo, a frescura passa. Coisa de mulher que vai para o divã de psicanalista lacaniano. Ela tinha seios sempre com frio e bunda de trópico. Andava como se tivesse acabado de ser comida, mas parecia não prestar atenção nos homens que a seguiam meio sem jeito. Ela deixava os homens sem jeito. Ele, inclusive, tanto que tropeçou nela. E nem assim ela o olhou.

Foi só quando ele sentou ao seu lado, sem se deixar abater pelos olhos no além dela, e começou a contar uma história de fadas, que ela o olhou. Nem sabe de onde tirou essa ideia de contar uma história para ela. Que sorriu. Então ele disse que queria ser Jack London, mas tinha preguiça de sair do sofá azul da sala.

Os olhos aquosos dela mostraram interesse. Ele continuou. Exibiu a cicatriz que traçava um nada entre sua orelha direita e o queixo que ele gostaria que fosse quadrado. Uma piscada sutil de atenção. Me atraquei no porto com um marinheiro gay que queria me enrabar, ele disse. Silêncio. Meu cachorro me mordeu.

Conseguiu arrastá-la para um filme de Tarantino. Tinha menos medo dela quando ela comia pipoca com manteiga. Ela parecia olhar para ele com um misto de condescendência e algo que poderia ser um início de amor. Ele não sabia. Se a beijava ou engatava outro assunto. Ela não temia o silêncio. Não fazia nenhum esforço. Ficava lá, em si mesma. Mas aceitou o convite para ouvir jazz na noite seguinte.

E foi no escuro do bar cabeça, enquanto uma branca com voz de negra cantava Strange Fruit, que ele pediu ajuda a ela. Ajuda para beijá-la. Ou para ir embora. Ela disse: sou uma mulher impenetrável. E ele baixou a guarda. Ela era só humana. E ele até esperava uma frase melhor da inteligência dela. E a teria achado ridícula, se não estivesse de quatro.

Foram para a cama. E ele a apalpou e sugou e gemeu. E ela o olhava com aqueles olhos de rio poluído. Ele a apalpava, sugava e gemia, mas não conseguia entrar nela. Ela gozava. Mas ele não achava a entrada dela. Ele gozava, mas sem achar a porta para dentro dela. E ela se enrolava nele. E ele não se desenrolava mais do lado de fora dela. Ela era intensa, densa, mas externa.

Um dia, quando acordou, ela estava com os olhos amarelos abertos no teto. Só então percebeu que estava casado com uma mulher que não tinha lado de dentro. Ele jamais poderia penetrar sua mulher impenetrável.

Nesse dia ele não foi bom. Gritou, esmurrou as paredes, disse coisas ruins. E chorou. Implorou que ela se abrisse para ele. Mas os olhos escurecidos dela já tinham atravessado o teto para fixar-se no tapete do apartamento de cima. Ela tinha avisado. Sempre do lado avesso, ela era uma literalidade. Por que ele não podia apenas amá-la como ela era? Por que ele precisava entrar onde não havia dentro? Era ela que chorava agora todo o amarelo dos seus olhos, sujando o lençol da cama.

Ele adormeceu de exaustão. No meio da noite, quando acordou, os olhos fixos no teto dela estavam fechados. Ele se virou para olhar para ela. Então viu a grande mancha vermelho-escura que um dia havia sido o ventre dela. A carne plana dela. Só então percebeu que ela o amava. Com a faca de churrasco ela tentara abrir uma porta para dentro dela. Abrira-se para ele.

Comprei meu túmulo

Cuidar da minha morte deixou minha vida mais leve

O ano de 2008 ficará marcado na minha vida como o ano em que confrontei a morte. Como a maioria, eu tinha muito medo dela. Quando minha mãe falava em morrer, eu ficava brava. Ao receber o papel do auxílio-funeral da empresa, rasgava e botava no lixo. Sentia vontade de bater nos vendedores de seguro de vida. Se algum incauto começasse a falar em morte, eu já cortava: “Eu não vou morrer”. Quando pequena, nas orações noturnas, nunca pedi a Deus que me enviasse um anjo-da-guarda. Implorava por um vampiro que mordesse meu pescoço e me garantisse a vida eterna. Era uma fé meio heterodoxa a minha, mas era isso o que eu pedia, além de acordar com olhos azuis.

No ano passado, a morte foi a maior presença na minha vida. Não havia como escapar dela. Ela me cercava por todos os lados, na doença de pessoas queridas. Decidi fazer uma reportagem sobre o fim da vida. Escrever é minha principal estratégia para lidar com os monstros que me assombram. Passei 115 dias acompanhando diariamente uma mulher com um câncer além da possibilidade de cura. Além disso, todas as manhãs de sexta-feira, durante quase quatro meses, testemunhei o trabalho da equipe da Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, um lugar onde o tempo de morrer é respeitado: nem abreviado, nem prolongado. Quem se interessar, pode ler a reportagem nos seguintes links:

Eu queria compreender a morte. Foi um mergulho tão profundo que perdi alguns pedaços pelo caminho. E ainda sangro um pouco em alguns dias. Algumas vezes acho que cheguei perto demais dos meus demônios todos, sem estar preparada para vê-los de tão perto. Depois percebo que valeu a pena. E continua valendo. A experiência me deu algo muito libertador e muito raro: perdi o medo de morrer. Quero viver o máximo que puder, mas não tenho medo de morrer. Demorou, custou, mas compreendi que a morte é parte da vida. Compreendi não apenas com meu cérebro, mas também com meu fígado, meu estômago, meu coração, minha alma. Com toda a inteireza do que sou.

Para isso, tive de lidar com questões sempre adiadas. Aprendi a aceitar limites, compreendi que qualquer ideia de controle é ilusória, percebi a importância de se reconciliar com a vida. É a vida, afinal, que faz diferença no fim. Ao acompanhar tantas pessoas morrendo e ouvir tantas histórias, percebi que morre em paz quem está em paz com sua vida, quem foi capaz de olhar com generosidade para suas memórias – e ressignificá-las. Vi gente rica e intelectualizada morrer agoniada e gente pobre e com pouco estudo encerrar a sua vida serenamente. Passarinhando, como se diz na enfermaria dos que vão se apagando lentamente, sem alarde. E vice-versa. Saber morrer, assim como saber viver, é uma sabedoria que não depende nem de escolaridade nem de conta bancária. Mas é uma sabedoria. Uma das grandes.

Talvez eu descubra, no parapeito da morte, que ainda tenho muito medo. É possível. Como se vive só se sabe vivendo. Como se morre, também. Aprendi a abrir mão da soberba e não julgar a dor do outro. Da dor, só sabe quem sente. Mas não tenho dúvida de que hoje estou mais preparada para morrer do que estava antes. E estou mais preparada para cuidar de quem está morrendo. Porque hoje estou mais preparada para viver. E mais preparada para cuidar de quem vive.

Depois de encerrar a reportagem, decidi comprar meu túmulo. Em diferentes momentos, testemunhei muita confusão nessa hora em que o sofrimento é explorado de todos os modos por quem vive deste comércio. Ninguém consegue tomar decisões acertadas no meio de uma dor tão dilacerante como a da perda de quem ama. Queremos chorar e viver nosso luto, mas temos de enfrentar a foice da burocracia que nos exige papéis. Nesta hora, não é fácil negociar com agentes funerários e nem mesmo com vendedores de flores. Nos sentimos mal de discutir o preço de um caixão, mesmo sabendo que estão nos roubando. Vi algumas cenas que ficariam perfeitas em romances de Gabriel García Márquez, mas que me fizeram mal na vida real.

Decidi cuidar da minha morte. Percebi que era um jeito de cuidar da minha vida. Não sei se vou morrer de enfarte, de acidente, de câncer, de tiro ou de velhice. Mas sei que vou morrer um dia, seja daqui a pouco, quando terminar essa coluna e atravessar a rua, ou daqui a uns 50 anos, como gostaria. Não posso controlar o quando nem o como. Mas posso decidir como e onde serei enterrada. Sim, porque espero ser enterrada e não cremada. Gosto da ideia de me misturar à terra depois de morta. E, ao contrário da maioria das pessoas, a ideia de que virarei comida de vermes me parece interessante, porque me manterá viva de alguma maneira, nessa eterna transformação da matéria que faz nosso universo tão fascinante.

Escolher as circunstâncias do ritual de minha morte me levou a uma profunda reflexão sobre a história da minha vida. Onde eu queria ser enterrada? Percorri meus inícios para descobrir. Não gosto do cemitério da minha cidade porque éramos levados lá todos os anos para chorar diante do túmulo da minha irmã, morta por meningite aos cinco meses. Eu sabia que todo dia de finados seria obrigada a ir ao cemitério, levar flores e entristecer. Nunca precisei fingir melancolia. Nenhum filho consegue escapar da tristeza ao ver sua mãe vivendo uma dor que estará sempre longe do seu alcance aplacar.

Esta era a parte tenebrosa do feriado de finados. Em seguida, vinha a redenção. Depois de passar pelo cemitério de Ijuí para prantear nossa irmã, nós íamos ao Barreiro, o lugarejo rural onde meu pai nasceu, onde ainda viviam seus tios e seus irmãos, onde brincavam nossos primos. Lá o dia de finados era uma festa. Minha tia Nair, uma agricultora com duas mãos grandes povoadas de calos, as mais generosas que eu conheci, torcia o pescoço de meia dúzia de galinhas e abria a casa para os parentes que vinham dos arredores e também de longe para homenagear os finados. O dia dos mortos era uma data para celebrar o reencontro dos vivos e relembrar as velhas histórias que nos constituía a todos.

Quando eu chegava, minha tia já me carregava para dentro do bolicho (armazém). Para mim, era como entrar na caverna de Ali Babá. Mentalmente, eu pronunciava um Abre-te Sésamo. Com um sorriso de orelha a orelha, minha tia enfiava suas duas mãos mágicas no baleiro de onde saíam doces de formatos e cores variadas que só existiam ali. No balcão escuro e ensebado do bolicho, com cheiro de fumo e salame, eu revivia minhas esperanças. E de novo era feliz.

Então, seguia meu pai ao cemitério no alto da lomba, onde deveriam estar todos os cemitérios, e íamos parando de túmulo em túmulo. Meu pai relembrava histórias, sempre as mesmas, que todo ano eu pedia que repetisse. Fazíamos uma visita guiada por um passado onde não estive, mas que habitava minhas células. Visitávamos os mortos para festejar suas vidas. Meus avós que haviam morrido quando meu pai era pequeno, minha tia fulminada por um raio, quando dormia numa cama de ferro entre duas irmãs, a outra tia que morrera criança quando uma vizinha lhe dera uma colher de querosene para melhorar de uma dor de estômago. E assim até chegar ao meu túmulo-história preferido.

O de Luzia de Figueiredo Neves, a primeira professora do meu pai. Nunca se passou um dia de finados sem que meu pai, filho de analfabetos, levasse flores ao túmulo dela. Aprendi ali, que fora aquela mulher solitária, filha do amor ilícito de uma escrava com o filho do dono da fazenda, que abrira para todos nós o mundo das letras. Diante do túmulo dela, as lágrimas que eu me recusara a derramar e que de mim eram esperadas no outro cemitério, enchiam meus olhos e rolavam alegremente pelas minhas sardas. Eu amava Luzia, essa mulher com nome de destino, que dera luz ao meu pai, aos seus filhos, aos netos que ele ainda teria. E até hoje visito o túmulo da professora Luzia sempre que passo por lá. Tenho lá minhas conversas com ela. E minhas gratidões.

Não foi difícil concluir onde eu queria ser enterrada. E assim despachei meu pai para o Barreiro, com a missão especial de negociar meu lugar no cemitério. Por telefone, ele me anunciou que havia vagas, mas que o preço tinha dobrado: de R$ 5 para R$ 10 por ano. Fechei logo o negócio. Como manda a etiqueta, em novembro comprei uma vaca por R$ 600 e doei à festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Em troca de uma vaca que virou churrasco, já tenho onde cair morta.

No início de fevereiro, tirei uns dias de férias para acertar os últimos detalhes da minha morte. Fui ao cemitério escolher minha cova. Meu primo Gilberto havia oferecido alguns lugares mais nobres, bem no centro, perto do portão de entrada. Recusei. Sempre fui uma mulher dos cantos. Havia outra vaga bacana, mas era perto de uma tia muito fofoqueira. Sou cética, em geral, mas achei que não custava me precaver e evitar uma condenação à falação eterna. Acabei escolhendo uma cova entre a cerca e a lavoura de soja, embaixo de uma árvore, com vizinhos desconhecidos, mas que pareciam boa gente.

Por parte de mãe, venho de uma família de mortos que andam. Quando a gente menos esperava, minha tia Emi gritava para o nada: “Graúna (nome do meu tio-avô e de um passarinho preto)! Vai-te embora daí! Sempre te disse que não te queria andando ao meu redor depois de morto! Chispa!”. Falecido, e ela ainda mandava nele. As histórias de nossos mortos, contadas pela minha avó Terezinha, me deram a esperança de que ainda vou sair do meu túmulo para, finalmente, fazer umas visitas sem pressa. Quando me cansar do silêncio do cemitério de lomba do Barreiro, um lugarejo cada vez mais abandonado e sem gente, pretendo assombrar meus futuros netos com passos furtivos por suas casas. Espero que vivam em lugares interessantes.

Deixei instruções precisas, por escrito. Quero que sobre mim plantem flores que se regenerem, espero ter raízes se alimentando de meu corpo. E, se não for permitido me enterrar diretamente sobre a terra, quero um caixão de madeira que apodreça depressa. E nenhum material sintético. Desejo morrer ecológica, com as minhocas abrindo viadutos pelo meu corpo. Já disse a todos que amo que, se morrer a qualquer momento, podem chorar de saudade, mas não sintam pena de mim. Vivi intensamente o que me foi possível viver. Que sigam suas vidas, sem olhar para trás. Ou olhando só às vezes, para recosturar as histórias.

Sei que para muitos leitores meus planos de morte soarão como coisa de gente louca. Quando falo nisso, até amigos queridos mudam de assunto. E conhecidos me olham como se houvesse algo errado comigo. A morte é um tabu numa sociedade que a esconde no ambiente asséptico do hospital, esperançosa de um dia conquistar não só a vida, mas a juventude eterna. Mas eu escolhi a morte ensolarada de um cemitério de lomba na zona rural das minhas raízes, na esperança de que alguém mate uma galinha para alimentar meus descendentes no dia de finados. Sei que é pedir demais, mas eu ficaria feliz de saber que no meu velório fizeram uma festa, com muito chimarrão, muita pinga e muita comida gorda, como eu gosto, e contassem histórias sobre a minha vida. Espero morrer bem velha, povoada por rugas que traçam a geografia de minhas aventuras. Uma uva passa, consumida por uma existência vivida com verdade.

Alguns acham que sou mórbida. Estão enganados. Encarar a morte com naturalidade é o mais longe da morbidez que se pode estar. Só espero ter sabedoria para viver minha vida com intensidade até o último suspiro. E sabedoria para morrer, sem tentar espichar a vida nem abreviá-la. Não gostaria de morrer de repente, como tantos desejam. A curiosidade sempre moveu meus passos. Quando a morte chegar, não quero perder a única chance de olhar no seu olho. Quero saber o que é morrer. Quero me lambuzar de morte como me lambuzei de vida. Quero viver. Até o fim.

(Publicado na Revista Época em 02/11/2009)

Página 4 de 11« Primeira...23456...10...Última »