A felicidade não é eterna, mas a desistência pode ser para sempre
Quase todos nós temos algo que gostaríamos de ter feito. E não fizemos. Um plano mirabolante que tinha tudo para dar certo, mas que nunca tentamos. Aquelas ideias que parecem ótimas na mesa de bar e, como os vampiros clássicos, escondem-se nos nossos porões na primeira luz do sol. Tenho amigos que querem ter um café, outros uma livraria, há os que querem ter uma livraria com café ou um café com livraria. Antes havia os que queriam ser repórteres da National Geographic, os que queriam filmar com Fellini e até os que queriam ter uma família de dez filhos. Conheço um monte de gente que desejava ter feito mais do que ousou fazer. Mas, em algum momento, deixou passar a chance de recosturar seus sonhos com o fio do possível. Preferiu se deixar convencer que ser adulto era assumir uma ideia de responsabilidade que excluía a possibilidade de se reinventar a qualquer momento. E isso é certo: pode não existir amor para sempre, nem vida para sempre, mas descobri que existe desistência para sempre.
Suzi e Marcelus são meus amigos de adolescência. E eles estão nessa história porque tiveram a ousadia de reinventar a vida. Não aos 20, mas aos 40. Eles rejeitaram aquilo que eu chamo de “vida de… e se?”. E se eu tivesse feito isso e não aquilo? E se eu tivesse tido coragem? E se eu tivesse me divertido? E se eu tivesse sido mais corajoso? E se eu tivesse amado mais? E se? E se? E se? Não há nada mais triste do que uma vida de “e se?”.
Suzi e Marcelus Vieira vivem em Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul. Ijuí é uma cidade de uns 70 e poucos mil habitantes, coberta de uma poeira tão vermelha e persistente que gruda na alma da gente. Quem mora lá nunca terá a chance de pisar no mundo com um tênis branco. Mas quem quer um tênis branco? A cidade vai bem quando chove e faz sol na medida certa para o soja ser lucrativo. Ou seja, depende do imponderável e do Banco do Brasil. Apesar de ter deixado Ijuí há mais de 20 anos, volta e meia me pego no meio do trânsito de São Paulo pensando: “mas e como será que anda o soja nesse ano, hein?”
Comer bem, para a maioria dos ijuienses, é lotar o prato num dos muitos restaurantes a quilo. Ijuí se orgulha de ser a capital brasileira das etnias e isso significa que ela é povoada por descendentes de alemães, italianos, letos, austríacos, poloneses, russos e várias outras nacionalidades que não estou lembrando agora. Em comum, eles têm essa certeza de que nada pode ser melhor do que pagar nem mais nem menos, mas exatamente o que se come. Por isso, os quilos se tornaram um estrondoso sucesso por lá. Chefes de família que nunca admitiram comer fora de casa encontraram uma boa razão para experimentar a modernidade de comer em restaurante. E muitas mulheres só conheceram a delícia da vida social a partir do advento dos quilos. Há toda uma antropologia dos quilos que, infelizmente, a academia deixou passar.
Com isso, não estou criticando nem os quilos nem a comida de Ijuí. Longe disso. Foi lá, comendo a comida da minha mãe, que eu descobri que comer é uma fonte inesgotável de prazer. Apenas quero situar o contexto gastronômico onde Suzi e Marcelus começaram a salpicar os primeiros ingredientes de sua utopia.
Tirar férias, em Ijuí, é passar uma temporada numa das praias do Rio Grande do Sul. Eu sei que tem gente que não acredita que o Rio Grande do Sul tenha praias que não fiquem em Santa Catarina, mas eu garanto que tem. Os ijuienses preferem as mais movimentadas. E, de preferência, em apartamentos. Se quem mora em cidade grande busca sossego, quem mora em cidade pequena quer “ver gente”. Não é uma regra absoluta, mas quase. Para que tentar algum lugar novo se Tramandaí, Atlântida ou Capão da Canoa são garantia certa de diversão? E, ainda por cima, com um guarda-sol ao lado do outro?
De novo, não estou criticando as férias de ninguém. Longe disso. Apenas situando a cultura turística do lugar onde Suzie e Marcelus começaram a esboçar a nova receita de suas vidas.
Quem nasce numa cidade do interior, um dia quer sair. Ou finge que quer. Quem pode usa o pretexto de fazer universidade para se transferir para Porto Alegre ou outra cidade um pouco maior. Mas tive amigos mais radicais, que sem arranjar desculpa melhor, foram tentar achar ouro em Serra Pelada. Deixar a cidade pequena em algum momento é uma espécie de jornada do herói. Não sei qual é a estatística, mas a maioria acaba voltando.
Suzi e Marcelus apaixonaram-se ainda na adolescência. Ensaiaram faculdade em Porto Alegre quando chegou a hora, depois separaram-se por uns tempos. Marcelus se aventurou em Londres, Suzi quase casou com outro. Um dia fiquei sabendo que os dois tinham se casado e moravam em Ijuí. Compraram um apartamento, decidiram não ter filhos e cuidavam juntos da loja de moda jovem mais bacana da cidade.
Encontrava-os quando ia à Ijuí visitar meus pais e me parecia que viviam bem. Nesse período, eu tinha muitos amigos olhando desconsolados para as ruínas de seus sonhos de juventude. Mas Suzi e Marcelus não estavam entre eles. O deles parecia ser um destino resolvido.
Dois anos atrás eles me ligaram. Excitadíssimos. Tinham alugado uma casa de campo na Toscana, daquelas de cinema, e estavam levando para lá um grupo de 10 pessoas. Marcelus conciliara a administração da loja com cursos de culinária, nos anos anteriores, e tinha virado um chef. Suzi dedicara-se a estudar o mercado do luxo com o mesmo talento comercial que ela sempre tivera para vender roupas de grife numa cidade que nem sempre tem dinheiro. Os dois se associaram a Adriana e Celso Vedolin, ele radiologista, ela dentista, que também acharam que estava na hora de redescobrir a vida lá fora. E em vez de ficar só sonhando, como a maioria de nós, fizeram.
O projeto deles era alugar uma casa maravilhosa em algum lugar interessante do mundo e levar para lá um grupo de pessoas para comer e beber por uma semana. Ao longo do dia, quem quisesse poderia ir às feiras e vinícolas escolher verduras, legumes, temperos, trufas, pães, queijos, cogumelos porccini, presuntos e vinhos com Marcelus. Mas o único compromisso do grupo seria se reunir na cozinha no final do dia para aprender com ele a fazer um prato da gastronomia local. E depois degustá-lo com o melhor vinho. Simples assim.
E tão sofisticado. Partiram, num dia de setembro de 2007, para uma vila em Peccioli, cidadezinha entre Florença e Pisa, para fazer uma bella vita misturando os ingredientes mais frescos da sua feira pessoal de desejos: viajar, comer e beber. E, contra todas as probabilidades, deu tudo certo. Os hóspedes também se sentiram como se estivessem num filme que podia se chamar Sob o sol da Toscana. Seus anfitriões desdobravam-se no café da manhã, servido a qualquer hora, para que cada um se sentisse realmente em casa, e nas pequenas delicadezas. Como as flores que Suzi colhia a cada manhã para aninhar sobre a cama de cada um, e o pão que desembarcava quente e crocante da padaria de um vilarejo que poderia ser o Cinema Paradiso. E, à noite, na cozinha, Marcelus fazia arte. Como o linguini com trufas brancas que era servido com um Chianti ou um Tignanello, seguido por um Tiramisu.
Suzi e Marcelus tinham acabado de inventar um filme para botar dentro da sua vida. Não ficaram só falando ou lamentando uma existência que se estreitava. Alargaram seu mundo com as mãos e a força de um desejo que não deixaram morrer. Sempre fico imaginando como deve ter sido cada noite em Ijuí, quando tudo ainda podia dar errado. O que ia pela cabeça enquanto vendiam calças, camisas, casacos, vestidos. Quando faziam contas. Quanto medo eles não tiveram. Nem mesmo a casa eles tinham visto de perto, já que não havia dinheiro para esse investimento. Iam selecionando as opções pela internet e um amigo que morava na Itália viajava até lá para conferir. E se não entendessem o italiano? E se as pessoas não gostassem da comida? E se tivesse um chato que azedasse um grupo tão pequeno? Tudo podia acontecer. Até mesmo dar certo.
E deu. Quem comprou a ideia também queria essa semana de filme. Um grupo de amigos numa cozinha de vários séculos, tão cheia de aromas quanto de histórias. As conversas entre cachos de uva, tomates espoucantes, ramos de alecrim e garrafas de vinho. E a luz dourada do fim do dia atravessando o vidro da janela para pousar sem pressa na tampa das panelas. Cada hóspede se tornou melhor nessa semana em que a vida finalmente cumpria a si mesma.
No ano passado eles acolheram seus hóspedes em uma mansão de pedra do século XVII no vilarejo de Cabrières d’Avignon, a 33 quilômetros da cidade de Avignon, na Provence. Nenhum dos dois fala francês. Mas estavam inebriados por filmes como A Glória de Meu Pai e O Castelo de Minha Mãe. Estudaram a culinária local, pesquisaram os ingredientes da estação, experimentaram o perfume de cada vinho. E de novo inventaram sua nouvelle vie. Nesse ano, alugaram uma casa na Itália e outra na França. Levarão um grupo para a Toscana e outro para a Provence. No ano que vem querem instalar-se em alguma cozinha cheirosa de uma ilha grega. Al Mondo é o nome do melhor de todos os seus sonhos, porque é um sonho que deixou de ser. Não por desistência, a causa mortis mais frequente dos sonhos, mas por coragem.
Depois que tudo dá certo, parece fácil. Mas a vida de cada um de nós se decide é muitos meses e até anos antes, quando a gente não sabe se vai dar certo. E mesmo assim percebe que a coisa mais inteligente a fazer é tirar a cabeça do lugar antes que seja tarde. Eu mesma me arrependo de várias coisas, mas nunca de ter tirado a cabeça do lugar. Toda vez que o senso comum achou que eu estava destrambelhando fui parar num ponto interessante da vida.
Suzi e Marcelus não sabiam se daria certo, mas tinham certeza que fizeram tudo para que desse certo. Marcelus sempre foi um pouco como o ratinho do Ratatouille, sentindo aromas pelas cozinhas. Quando se aventurou em Londres, trabalhou nas cozinhas de pubs e restaurantes, como tantos imigrantes. Mas, diferente da maioria, aproveitou para observar e aprender. Em Porto Alegre, passou anos fazendo as compras de uma cooperativa ecológica, saía com a caminhonete por estradinhas de terra pelo interior do Rio Grande trocando ideias junto ao fogão a lenha dos produtores. Quando se estabeleceu na loja, começou a viajar para fazer cursos de culinária.
Suzi e sua irmã, Sandra, são as melhores vendedoras que eu conheço. Já andei muito por aí, mas nunca vi nada igual. Filhas de alfaiate, elas conhecem os tecidos, os cortes, as texturas. São talentosas no gosto, sabem comprar as peças certas e, principalmente, sabem vender. São boas de conta, não lembro de tê-las visto perdendo dinheiro. Suzi é uma mulher que sonha com os dois pés metidos em sapatos interessantes, mas com os saltos bem fincados no chão.
Foi com tudo o que são que Suzi e Marcelus mudaram o cardápio de sua vida. Eles seguem morando em Ijuí, a loja acaba de se mudar para uma casa grande, com uma cozinha profissional no piso superior, onde Marcelus dá cursos à noite e prepara jantares por encomenda. Suzi e Marcelus têm família e amigos na cidade, acham que Ijuí garante uma qualidade de vida que não teriam em outro lugar. Passam o ano dando duro na loja, experimentando receitas, degustando vinhos, assistindo filmes, estudando livros, selecionando músicas. Quando chega a primavera, fazem as malas e acordam numa casa com vista para o mundo.
Na despedida do último hóspede, antes de voltar para Ijuí, eles viajam uma derradeira vez. Vão em busca do pedaço do planeta onde acordarão na primavera seguinte.
(Publicado na Revista Época em 13/07/2009)