Eliane Brum conta como acompanhou a família Costa Pereira ao longo de todo o governo Lula
Quando propus a ÉPOCA contar a trajetória da família Costa Pereira, do final do governo Fernando Henrique Cardoso ao final do governo Lula, algumas pessoas da redação ficaram intrigadas com este testemunho de nove anos. Apresentei duas vezes, oralmente, a história desta família no exterior, em eventos sobre o Brasil em Ferrara (Itália) e em Madri (Espanha), e a curiosidade se repetiu. Jornalistas estrangeiros me perguntavam se eu continuaria acompanhando os Costas Pereiras no governo de Dilma Rousseff. Sim, claro que sim, eu respondia. Mas não exatamente pelas razões que eles supunham. Penso que preciso explicar como esta reportagem aconteceu – a história dentro da história.
Na virada de 2001 para 2002, eu fui incumbida de encontrar um brasileiro da Grande São Paulo que desse carne às estatísticas de um momento difícil para o Brasil. Buscava um chefe de família que, como tantos naquele contexto, tivesse perdido o emprego há tempo suficiente para compreender que seria muito difícil conseguir outro. Eu buscava um homem no instante da queda para contar um momento histórico específico do Brasil.
Tentei vários caminhos, como as listas dos cadastros de benefícios da prefeitura e do Estado de São Paulo. Consumi alguns dias perambulando pelas periferias sem encontrar o que procurava. Desempregados e pobres havia muitos. Mas eu buscava um momento muito específico, entre o final do seguro-desemprego e o início da percepção de que o controle da vida escapava pelo vão dos dedos. E buscava um homem capaz de dimensionar sua perda. Depois de alguns dias atravessando a Grande São Paulo de várias maneiras, num carro sem ar-condicionado e no auge do verão paulistano, o motorista perguntou: “Afinal, o que exatamente você procura?”. Eu esmiucei em detalhes. “Ah!”, disse ele. “Você procura o meu vizinho!”
E ele tinha toda razão. Como em geral têm os bons motoristas de imprensa – hoje infelizmente quase extintos, com a terceirização do serviço. No momento em que fui apresentada a Hustene Alves Pereira, no Jardim Veloso, na periferia de Osasco, eu soube de imediato que era ele. Seus olhos queimavam no quarto mês de desemprego. Ele era um homem vivo – com medo de ser esmagado pelo Brasil e pelo discurso da exclusão.
Nos reconhecemos ali. Tenho convicção de que toda reportagem é um encontro entre personagem e jornalista. Só acontece quando este encontro é de verdade. Para isso, é preciso existir um movimento de entrega de ambas as partes: eu me abro para ouvir a sua história sem preconceitos e você se abre para contá-la com tudo o que ela é, o feio e o bonito. Com Hustene e sua família foi assim.
Passamos dias juntos, Hustene e eu, vencendo quilômetros em busca de emprego, a pé porque ele não tinha dinheiro para o ônibus. Nestas longas caminhadas Hustene me contava da angústia do seu presente, dos sonhos de seu passado e do futuro que não mais enxergava. Testemunhei do meu canto a delicadeza com que sua mulher, Estela Costa, tecia com o que lhe restava de linha não só tapetes para vender, mas uma rede para que sua família não se afogasse. Seus quatro filhos, alguns com mais intimidade do que outros, me falavam de seus anseios. E às vezes eu apenas ficava ali, observando sem nada dizer.
Repartiam comigo também o seu feijão com arroz. Algumas pessoas, ao saber que eu comia em sua mesa, ficavam indignadas porque o que eles tinham já era tão escasso. Este é um tipo de conclusão de quem pouco entende de gente e pouco pisou em favelas e periferias. Nada seria mais ofensivo para Hustene e Estela do que minha recusa em compartilhar o que tinham – mesmo que fosse quase nada. E eu nem cogitei tal desfeita.
A reportagem, com o título de “O Homem-Estatística”, foi publicada em fevereiro de 2002, no último ano do governo FHC e também no ano em que Lula, depois de três tentativas, finalmente venceria a quarta eleição. É neste momento que começa o capítulo mais surpreendente da história dentro da história.
Há uma pergunta recorrente que estudantes de jornalismo costumam fazer quando dou palestras em universidades: “Você se envolve com as fontes?”. Minha resposta é sempre a mesma: “É claro que sim!”. Se não me envolvesse, para que viveria? Deixando sempre bem claro que este envolvimento inclui um profundo respeito pela história que conto e que pertence ao outro – e isto significa escutar sem julgar e interferir o mínimo possível.
Hustene e eu criamos um vínculo. E um que hoje, quando olho para trás, penso que era muito mais claro para ele do que para mim. Eu era a contadora de sua história. E foi assim que Hustene continuou narrando fatos e sentimentos mesmo depois da reportagem publicada. Ele, por sua vez, passou a acompanhar a minha vida de repórter. Assim que a situação financeira melhorou um pouco, em meados da primeira década deste século XXI, Hustene assinou a ÉPOCA para poder ler e recortar minhas reportagens. Meus livros também estão na prateleira do seu novo escritório, figuras humildes entre vistosos best-sellers.
Seguidamente sou mencionada em seus diários – ele não esquece jamais nem o dia do jornalista nem o dia do escritor. E há uma foto minha perto de Nossa Senhora de Fátima para me proteger do risco de algumas reportagens. Especialmente se viajo a trabalho de avião, uma criatura alada da qual Hustene tem pavor. Cada vez que descobre que vou embarcar em algum, ele reza.
Segui acompanhando os principais acontecimentos da vida da família, às vezes mais de perto, em outras mais de longe. As contas de luz e água cortadas, os empregos e desempregos dos filhos, os Natais tristes, a volta da carteira assinada depois de Hustene amargar três anos e sete meses sem trabalho, a felicidade de ser o “Porteiro Pereira”, a doença de Hustene, o péssimo atendimento do SUS, a decepção com a educação pública e, finalmente, a vida melhorando e as portas do consumo se abrindo. Perpassando tudo isso, a profunda identificação com Lula, primeiro como decepção, depois com orgulho. E uma visão de mundo muito particular.
Hustene e sua família seguiram fazendo a narrativa da sua vida. E eu segui escutando com atenção e cuidado. Primeiro por telefone, depois por email. Hustene escreve muito – e escreve com verdade. Sobre fatos, sobre sentimentos, sobre sua percepção do país. Tenho uma coleção de emails de uma riqueza extraordinária sobre sua visão do governo Lula e do Brasil – e de sua família no governo Lula e no Brasil. Hustene organiza a sua existência tantas vezes por um fio escrevendo diários a Nossa Senhora e, antes, também escrevia a Che Guevara. A mim concede o privilégio de escrever sobre a trajetória de sua família e sobre sua própria escritura. Sou o olhar externo – de dentro.
Sempre tive clareza do meu lugar na casa da família Costa Pereira. E tento estar à altura do meu posto de “escutadeira” de uma história de vida. Mas este também é um lugar amoroso. E foi muito difícil vê-los passar Natais de penúria, como aquele em que Estela serviu apenas farinha com cebola, sem interferir. Foi Hustene, mais do que eu, que teve a sabedoria de riscar os limites e assim manter o mais importante a salvo. Como quando fiquei – e fico – muito angustiada com a deterioração de sua visão por uma doença degenerativa causada pela diabetes. Ele não recebeu até hoje nenhum tratamento. A (des)assistência do SUS é desesperadora. Me ofereci para pagar um tratamento privado. Não consigo imaginá-lo cego – não por falta de assistência. Ele recusou na hora, enfaticamente. Entre nós, não pode existir dinheiro nem favores.
O que eu mais gosto na vida é escutar, ler e escrever. Acompanhei a história da família Costa Pereira sem nenhum propósito de publicá-la. Mas sempre guardei tudo o que Hustene me enviou por escrito por aquele amor que a gente tem pelo testemunho histórico. E, no meu caso, porque tenho especial apreço pela grandeza das vidas supostamente – e só supostamente – comuns. Fiz apenas mais uma pequena reportagem sobre a interpretação de Hustene do primeiro ano do governo Lula, já que ele gravara todas as promessas de campanha e escrevera uma carta “ao amigo presidente”, e contei seu sofrimento em minha coluna no site da revista quando os peritos do INSS fizeram greve e ele ficou sem benefício, como milhares de brasileiros.
Só em 2010 percebi que tinha algo precioso e inédito nas mãos: a trajetória de uma família no governo Lula, a ascensão da pobreza à “nova classe média” contada pelo particular, um retrato íntimo e privado dos personagens mais importantes deste momento histórico. Pedi então licença para contar sua história e fiz várias entrevistas com todos os membros da família. Posso afirmar que só compreendi grande parte do significado, das nuances e das contradições do governo Lula quando pude enxergá-lo pelos olhos da família Costa Pereira. Espero que tenha conseguido transmitir este olhar aos leitores na reportagem publicada nesta primeira edição de 2011, logo após a posse de Dilma Rousseff – e da despedida (oficial) de Lula.
Como foi possível testemunhar a história da família Costa Pereira nos últimos nove anos? Porque Hustene Alves Pereira é um personagem que escolheu seu autor. E, para minha sorte, este autor sou eu.
(Publicado na Revista Época em 29/12/2010)