O vazamento

O barulho entrou no sonho, cravou-se no cérebro e a acordou. Irritada. Quem era o imbecil que tocava o interfone às 9 horas de um sábado?

Arrastou-se descalça até a cozinha. “Bom-dia”, disse o zelador. “Desculpa incomodar, mas a moradora do apartamento abaixo do seu avisou que está com um vazamento no banheiro da suíte. Daria para a senhora dar uma olhada? Se não puder hoje, ela disse que não tem problema algum. Pode ser na próxima semana.”

Ah, não. Vazamento não. Só podia ser na banheira. Tomara que não seja na banheira. Eu não vivo sem minha banheira. Vou agora, avisou. Como continuar dormindo se sua casa pingava na vizinha de baixo?

Lavou o rosto, enfiou uma bermuda e uma camiseta e desceu de havaianas. Odiava vizinhos. Não conhecia nenhum deles além dos cumprimentos emburrados no elevador. O inferno eram os vizinhos. Pensar que algo seu, ainda que fosse água suja, tivesse qualquer contato com os vizinhos, a enlouquecia. Ela não queria nenhuma conexão de condomínio.

Quando algo na casa se estragava, ela sentia se desestruturar por dentro. Como se houvessem fios soltos na sua caixa torácica, rachaduras na carne. Sua alma combalida por infiltrações escorria pelas paredes. Sentia-se acuada. Queria que alguém consertasse por ela. Precisava que outro fizesse reparações. Não suportava.
Você é uma mulher adulta, disse para si mesma. Tenha compostura.

Apertou a campainha. A porta se abriu imediatamente. Uma mulher de 50 e poucos anos, sorriso de orelha a orelha debaixo de um penteado antiquado, um vestido que parecia novo, muito bem passado, cumprimentou-a como se fosse uma visita muito esperada. Sobre o vestido, um avental inteiro, bordado a mão em pontos miúdos. Limpo, limpíssimo. Logo atrás dela, um homem de uns 70 e poucos anos, calça de tergal com friso, camisa por dentro da calça, sapatos engraxados. Eles a esperavam.

“Desculpa incomodar”, a mulher disse. “A gente não gosta de incomodar, ainda mais no sábado. Não tinha esta pressa toda.” Ela vestiu seu melhor papel de vizinha civilizada, mas distante. Não é incômodo algum, imagina. Pelo contrário, incômodo é o que estou causando a vocês, ainda que involuntário.

“Olha, peço desculpas, a casa está uma bagunça. Ainda não tive tempo de arrumar”, disse a mulher. “Estou fazendo um camarão, sabe como é”, acrescentou, cúmplice. Ela disfarçou e olhou ao redor. A casa estava impecavelmente limpa e arrumada. A sua nunca esteve nem tão limpa nem tão arrumada. Nem depois de a faxineira passar.

Notou também os móveis pesados e tristes. Os vazios preenchidos de uma vida metódica. Lá estava ela, devaneando na casa dos outros. Marchou pelo corredor até a suíte. Com licença. E entrou.
O teto estava podre. O gesso era uma massa limosa de verde com manchas escuras onde deviam coexistir constelações de fungos e bactérias variadas. Nossa, ela disse. Este vazamento deve acontecer há anos.

A vizinha torceu as mãos. Atrás dela, seu pai olhou para a ponta dos sapatos pretos. “É que a gente não gosta de incomodar os outros, sabe. Só falamos agora porque está pingando muito.” O pai estendeu a ela um olhar reprovador. Ela se recompôs. “Não estou falando como queixa, claro. Imagina, não se preocupe, podemos aguentar bastante tempo ainda. Temos o outro banheiro.”

Acho que hoje não consigo um encanador, mas na segunda, sem falta, ela disse. Estava consternada. Há anos, enquanto mergulhava feliz em sua banheira, a água de seu corpo nu pingava sobre eles. Abaixo de sua nudez, a água de seu banho corroia a casa deles. Era assustador. E eles não falavam nada. Não se queixavam. Deixaram Páscoas, Natais e aniversários passarem sem um murmúrio.

Quais são os melhores horários para vocês? “Nós não saímos”, disse a mulher. “Ficamos os dois em casa. Meu pai é doente. Eu nem poderia sair, mas, mesmo se pudesse, não gosto. Estamos sempre aqui. A qualquer hora. Como for melhor para você.” Certo, eu vou ligar para o encanador e aviso. Enquanto isso, vou interditar este banheiro, não se preocupem. “Não, imagina”, a vizinha disse. E o pai ecoou. “A gente não se importa. Tome seu banho de banheira sossegada. Se parar, como vamos saber se continua vazando?”.

Ela tentou sorrir. Estava prestes a cair no choro. Foi andando pelo corredor em direção à porta, seguida pelos dois, pai e filha. “Eu vejo você às vezes, indo para o trabalho, eu acho. Está sempre tão bonita, de salto alto”, a mulher disse. E imediatamente ruborizou. Deve me ver correndo pra lá e pra cá. É uma vida louca. E logo se arrependeu de sua pequena demonstração de mulher alfa, ainda que involuntária, como o vazamento da banheira.

Estava há dois passos da porta. “Olha”, a mulher disse. E ela olhou para trás, interrogativa. A vizinha tinha um ar encabulado. O pai lhe deu um empurrãozinho para frente, de estímulo. Estava todo animado. “Sim?”, ela disse. “Você não quer almoçar conosco?”, ela gaguejou. “Você gosta de camarão, não é? Não tem alergia, espero…”.

Por alguns minutos, ela ficou muda, sem saber o que dizer. A mulher a ajudou, forçando um sorriso no rosto. “Você deve ser muito ocupada, imagina. Assim, de surpresa, num sábado! Uma mulher como você…”. É, ela balbuciou, talvez uma outra vez. Para comemorar o fim do vazamento, tentou sorrir. Atrás da filha, o homem olhava para os sapatos pretos.

Ela desejou um bom dia e subiu quase correndo pelas escadas. Em casa, entrou na banheira seca e se enrolou em posição fetal.

Tão lindo, tão podre

A história do telefone poderia ter sido escrita por Shakespeare

Quando fui visitar a exposição “Tão longe, tão perto”, esperava uma obra técnica. Imaginava aprender alguma coisa e só. Afinal, se você convida alguém para ver uma exposição sobre a história das telecomunicações, não espera ouvir um: “uau!”. Não da maioria das pessoas, pelo menos. Entrei achando “hum, bonito” e, de repente, comecei a me sentir numa das tragédias de William Shakespeare. Fiquei completamente envolvida e quase perdi a hora do próximo compromisso.

A exposição, promovida pela Fundação Telefônica, conta nossa aventura em busca daquilo que nos constitui como humanos: a capacidade de nos comunicar. Percorremos uma linha do tempo que é de todos. Ao mesmo tempo, construímos nosso próprio percurso, a partir da memória dos sons da nossa vida. Temos poucas chances, em um mundo tão barulhento, de silenciar e ouvir os sons que ouvimos sempre – de um jeito que não ouvimos nunca. Com o sentido de que eles nos constituem tanto quanto nossas células e nem sempre estiveram aqui. Ou algum adolescente urbano acha que há vida possível sem o bip do MSN na tela? Tudo isso pode ter começado há 200 mil anos, quando uma mutação genética teria dado origem à voz humana. Mas, sem voz, haveria o humano?

Esta foi exatamente a parte que me capturou. O físico Peter Schulz, curador da exposição, teve a ousadia de contar uma história demasiado humana. É uma história de gente, do começo ao fim. Nela, conseguimos sentir a glória, mas também a dor e a miséria dos grandes homens. E a inveja, as trapaças, as vilanias. Sim, sim, há algo de podre no reino do telefone. William Shakespeare (1564-1616) poderia ter escrito mais uma de suas peças arquetípicas se houvesse conhecido o escocês Alexander Graham Bell (1847-1922).

Você acha que Bell inventou o telefone? Pois é, eu também achava. Passei a vida acreditando nisso e no monstro do lago Ness. Mas não, ele não inventou. Não sozinho – e talvez nem com a participação mais vistosa. A história do telefone, este aparelho que moldou a nossa cultura desde o fim do século XIX, é fascinante. Não pela grandeza de seus protagonistas, mas pela pequeneza dos grandes cientistas. Por ela, acompanhamos estes homens aspirando à divindade enquanto escorregam na mais tosca humanidade.

Poucas vezes se viu tantas trapaças ou acusações mútuas de trapaças como na invenção do telefone. Depois de Bell patentear como seu, no início de 1876, o invento levou mais de um ano para começar a ser comercializado. Mas apenas poucos meses para a primeira de dezenas de processos na Justiça. Algumas das controvérsias se arrastaram até a morte dos protagonistas e tiveram algum tipo de solução só agora, no início do século XXI. Como a de meu personagem favorito nesta tragédia, um italiano chamado Antonio Meucci.

Ele está para os italianos como Santos Dumont para nós, brasileiros. Enquanto nós brigamos para que o mundo reconheça a primazia de Santos Dumont na invenção do avião – e não os Irmãos Wright –, os italianos brigam para que o mundo admita que foi Antonio Meucci o inventor do telefone. E tem boas razões para isso – como também nós.

Meucci (1808-89) parece ter sido um daqueles sujeitos geniais que, enquanto inventavam geringonças que melhoravam o mundo, eram enganados por quase todos. Estou aqui, cheia de pruridos na ponta dos dedos para escrever sobre ele, porque há tanta paixão nesta história, não apenas nos protagonistas, mas naqueles que defendem um ou outro lado, que é difícil alcançar o homem.

O que parece claro é que Meucci era um sujeito de convicções – e pagou um preço alto por defendê-las. Boa parte da pesquisa para a invenção do telefone foi feita em seu exílio em Cuba, para onde fugiu com a mulher depois de ter sido preso duas vezes por participar do movimento de unificação italiana. Em 1849, quando Graham Bell tinha 2 anos de idade, ele já tinha desenvolvido em Havana um tratamento à base de choques elétricos para curar doenças como o reumatismo. Ao preparar-se para aplicá-lo, ouviu a voz do paciente, em outro quarto, através de uma peça de fio de cobre que os conectava. Percebeu que tinha ali algo mais importante que qualquer descoberta anterior e se mudou para Staten Island, nos Estados Unidos, na tentativa de desenvolver seu invento.

Na América, Meucci viveu cercado por refugiados italianos. Chegou a abrigar Giuseppe Garibaldi em sua casa. Não conseguia compreender a língua nem administrar bem seus recursos, naufragando em vários negócios. Foi ficando cada vez mais pobre. Ainda assim, seguia. Em 1856, montou um sistema telefônico para que, de seu laboratório, pudesse se comunicar com sua mulher, doente e paralisada numa cama. Em 1860, a descrição de uma demonstração pública de seu telefone foi publicada por um jornal de Nova York. Mas não parece ter sobrado nenhuma cópia.

Cada vez mais pobre, Meucci vendia os direitos de muitas de suas invenções para sobreviver. Nunca a que batizou de “telectrophone”. Um dia, o navio a vapor em que viajava explodiu. Ele sobreviveu, mas com queimaduras muito graves. Doente e desesperada, sua mulher vendeu os protótipos que encontrou a um comerciante de objetos usados. Entre eles, o do telefone. Tudo por 6 dólares. Quando Meucci deixou o hospital, talvez tenha pensado que seria melhor estar morto. Correu atrás dos compradores para recuperar o trabalho de uma vida. Foi informado que tudo fora revendido a “um jovem misterioso”.

Meucci atravessou noites de insônia e trabalho duro para reconstruir sua invenção. Conseguiu. Mas não a soma para reivindicar uma patente definitiva. Registrou uma espécie de patente provisória, em 1871. Conseguiu renová-la em 1872 e 1873. E não mais depois disso. Neste período, foi enganado outras vezes, teve documentos e modelos “perdidos” por empresários que prometiam ajudá-lo a realizar testes. As desventuras de Meucci parecem intermináveis.

Enquanto escrevo, fico imaginando aquele homem apaixonado, tropeçando na língua inglesa e na esperteza alheia, ansioso por reconhecimento em um terno puído pelas ruas da América. Em 1876, Bell registrou a patente definitiva do telefone. Meucci o processou, mas perdeu. Morreu pobre, amargurado e quase anônimo.

Somente mais de um século depois, em 11 de junho de 2002, o Congresso dos Estados Unidos reconheceu sua participação na invenção do telefone. Se Antonio Meucci tivesse 10 dólares para pagar a renovação do registro provisório, possivelmente nenhuma patente poderia ter sido registrada por Alexander Graham Bell. Dez dólares em troca de uma vida.

O italiano Antonio Meucci não foi o único personagem trágico deste drama real. O americano Elisha Gray (1835-1901) requereu a patente do telefone poucas horas depois de Bell, no mesmo dia. Mais uma longa batalha judicial. Outro cientista, o francês Charles Bourseul (1829-1912), pode ter sido o primeiro a sugerir que o som é transmitido pela eletricidade. O alemão Johann Philipp Reis (1834-74) inventou um aparelho que transmitia notas musicais e uma ou duas frases em 1860. A primeira delas: “Das Pferd frisst keinen Gurkensalat” – O cavalo não come salada de pepino.

Todos estes homens representavam as grandes mentes do seu tempo. E realizaram grandes obras. Mas incineraram-se na paixão de serem únicos. Perguntei ao curador da exposição, o físico Peter Schulz, da Unicamp, quem, afinal, havia inventado o telefone. Ele me deu uma bela resposta: “Grandes desenvolvimentos envolvem muita gente e dificilmente ocorrem a personagens únicos. No caso do telefone fica evidente uma coisa: eles (Bell, Meucci, Reis…) são inventores do aparelho de telefone, mas depois disso foi preciso uma série de desenvolvimentos para que existisse a telefonia. Como fazer uma rede de telefones? Como fazer o sinal passar por quilômetros e quilômetros sem perder intensidade? Muitos outros foram necessários para que a ‘prática cultural’ chamada telefonia existisse. Eu acredito muito nos desenvolvimentos como aventuras coletivas”.

Minha próxima pergunta a Peter foi: Por que homens tão grandes, capazes de criar algo tão belo e mudar o mundo, se revelaram capazes de tantas baixezas? Peter respondeu: “A pesquisa científica é uma atividade humana como outra qualquer, sujeita a vaidades, fraudes, disputas, etc. A ciência passa uma imagem de neutralidade e objetividade que é falsa. O fato de as leis da física, por exemplo, serem as mesmas aqui ou nos confins do universo, não garante a objetividade da atividade do cientista. Qual é a escolha do que se pesquisa? Depende de quem paga a pesquisa. A física está cheia de problemas que não são pesquisados mais, não porque foram encontradas as respostas, mas porque saíram de moda. Existem alguns mitos sobre a neutralidade e ‘pureza’ da ciência que deviam ser revistos. O sucesso da ciência levou à sua idealização tanto dentro quanto fora da atividade científica. Do ponto de vista psicológico, a comunidade científica está cheia de Adrianos e Ronaldos”.

Terminei nossa conversa perguntando se a necessidade de ser “o” herói ou “o” gênio ainda movia a pesquisa científica hoje. Peter afirmou: “A necessidade de um herói foge do âmbito exclusivo da ciência, que, quando considerada como uma atividade humana qualquer, faz com que a questão do herói seja a mesma que no esporte, política, artes… O cultivo da ideia do herói, gênio, etc continua. A valoração do prêmio Nobel, por exemplo, alimenta esta idolatria. A exposição dos excêntricos também. Um exemplo típico é o matemático russo, (Grigori) Perelman, que recusou importantes prêmios e vive recluso. Acho que é insanidade mesmo, mas o público gosta… Não é muito diferente do culto à reclusão do J. D. Salinger ou mesmo de Rubem Fonseca, Greta Garbo… O grosso da atividade científica é bastante rotineiro, mas a pressão pela primazia é grande. Primazia pode garantir financiamento e oportunidades de trabalho melhores. A ciência é algo fantástico…mas continua sendo feita por seres humanos”.

A dimensão shakespeariana da invenção do telefone nos leva para além dos aspectos curiosos. Se o telefone, como cultura, mudou e vem mudando toda a nossa relação com a vida e uns com os outros, assim como os conceitos de tempo e espaço, a forma como ela é apresentada também muda o que somos e como nos movemos pelo mundo.

Quando o professor ensina a uma criança que Alexander Graham Bell inventou o telefone, está dizendo muito mais que isso. 1) Que as invenções acontecem num lance de genialidade de poucos – e não num processo contínuo e cumulativo do trabalho de muitos. 2) Que tudo acontece de repente em uma determinada mente privilegiada – e não, como de fato é, com trabalho árduo e exaustivo, que muitas vezes dá em nada. 3) Que é possível e desejável fazer, seja lá o que for, sozinho, se quiser virar verbete de enciclopédia, estátua na praça ou nome de rua. Portanto, o trabalho coletivo e geralmente anônimo não teria valor aos olhos do mundo.

A forma como é contado o processo de descoberta também molda a nossa cultura. Quando aprendemos na escola que é Alexander Graham Bell o inventor do telefone – simples assim – estamos sendo deseducados. Ou formados para um mundo bem ruim. A história da invenção do telefone, como aprendemos na exposição, é muito mais rica, multidisciplinar, também para entender a matéria da qual somos feitos. E, talvez, para nos tornarmos melhores. Um bom professor faria, no mínimo, um belo debate sobre ética.

O conteúdo que comunicamos por meio destas maravilhosas invenções nos transforma. Fico pensando quem seríamos nós se pais e professores ensinassem que foi necessário não um cientista, mas muitos para construir uma obra em permanente construção. Que não são heróis, e sim homens, que mudam o mundo em que vivemos. Que a aventura – na ciência ou em qualquer âmbito do conhecimento – é sempre coletiva. E que dependemos uns dos outros neste esforço solidário. Se fosse este o conteúdo comunicado, o quanto seríamos diferentes? O quanto nosso mundo seria diferente?

Agora, se me convidarem para a exposição, eu posso dizer: “uau!”.

P.S. – Para quem se interessar: “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade” permanece no Museu de Arte Brasileira da FAAP (Rua Alagoas, 903, prédio 1 – Higienópolis), em São Paulo, até 23 de maio, de terça a sexta, das 10h às 20h, aos sábados, domingos e feriados, das 13h às 17h. A entrada é gratuita. Visitas orientadas para grupos, no programa educativo, podem ser agendadas pelo telefone: (11) 3662-7200. Mais informações pelo site www.taolongetaoperto.org.br .

(Publicado na Revista Época em 29/03/2010)

Lago interior

Você precisa conectar-se com seu lago interior, disse o mestre.

Ela fechou os olhos. Mas os pensamentos entravam e saíam pelas orelhas. Como era possível manter tanto lixo no cérebro? Tanto pensamento comezinho. Contas atrasadas, acontecimentos desinteressantes, irritações medíocres. Que vida era aquela em que a contemplação era obstruída por um esgoto cerebral no qual pensamentos imperfeitos boiavam como cocô?

Desde pequena ela ambicionava uma alma larga, um coração indomável. Queria dentro dela o Grand Canyon. Ou pelo menos o Itaimbezinho.

Contemple seu lago interior, disse o mestre. Respire. Ar que entra, ar que sai.

Ela respirava. E zum, por que o porteiro do prédio não a havia cumprimentado? Será que era porque pagava aluguel? Ar que entra, ar que sai. Quem o editor pensava que era para dizer que sua metáfora era lugar-comum? Ar que entra, ar que sai. Por que ele não tinha ligado? Ela servia para ser comida, mas não para namorar? Ar que entra, ar que sai. Será que tinha feito o pedido da Natura naquele mês? Ar que entra, ar que sai. O brócolis orgânico estava murcho, precisava reclamar com o fornecedor…

Você precisa silenciar a mente, disse o mestre. Concentre-se apenas no ínfimo pedaço de pele entre o seu nariz e a sua boca.

Ela tinha um lago interior, tinha certeza. Era a vida rotineira, a desgraça do cotidiano, que a apequenava. Tinha certeza de que emoções densas a habitavam, pensamentos complexos. Seu lago interior era profundo.

Desapegue-se, disse o mestre. Sem julgamentos. Sem aversão ou cobiça.

Ela respirava. Respirava. E respirava.

Lentamente, sentiu-se esvaziar. Quase flutuava. Uma mosca zumbia no seu nariz, mas ela permaneceu impávida. O cotidiano já não a alcançava.

Controlou a excitação para não perder o rumo, sempre para dentro.

Conectou-se.

Quando abriu os olhos, o mestre era uma meleca gigante de sangue, miolos e restos de ossos mastigados sobre o tatame.

No lago interior dela morava o monstro do Lago Ness.

“Porca gorda”

Por que as pessoas acima do peso nos incomodam tanto?

Assisti à “Gorda”, peça teatral em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. Ri muito. Em certo momento, meu riso ficou triste. Eu estava triste. Não pela gorda da peça, mas por me reconhecer no preconceito contra ela. No final, chorei.

Este é o enredo. Helena e Tony se conhecem num restaurante. Ela é gorda. Não gordinha. Gorda mesmo. Helena é vivida com muita competência pela atriz Fabiana Karla, de Zorra Total (TV Globo). Segundo a sinopse oficial, a personagem está 30 quilos acima do peso. Se compararmos com uma das modelos da moda, deve estar uns 50. Tony (o ótimo Michel Bercovitch) gosta dela. Ela é inteligente, divertida, sensual. Bonita. Helena gosta dele. Os dois se apaixonam. Mas, como um cara jovem, bem sucedido, MAGRO e disputado pelas mulheres MAGRAS pode escolher uma gorda, amar uma gorda, ser feliz com uma gorda?

A reação social diante da versão de amor impossível da nossa época é protagonizada por Caco (Mouhamed Harfouch), amigo e colega de trabalho de Tony, e por Joana (Flávia Rubim), sua ex gostosa, cujo maior temor da vida é engordar. São eles que representam, no enredo e no palco, pessoas como nós – sempre menos magras do que gostariam, magras o suficiente para não serem chamadas de gordas na rua.

O texto do americano Neil Labute é inteligente, rápido, fatal. Rimos muito. Primeiro, com ela. Helena é uma mulher bem-humorada. Como muitos gordos, defende-se fazendo piadas sobre seu tamanho. A velha regra: adiante-se, ria de si mesmo, antes que os outros o façam com a crueldade habitual. Se perder o timing, não acuse o golpe – ou nunca mais o deixarão em paz.

Aos poucos, começamos a rir muito dela (e não mais “com” ela), pelas piadas de Caco, ao descobrir que o amigo está namorando uma “porca gorda”. Fat Pig é o nome original da peça. Mas gostamos de Helena, testemunhamos o apaixonamento dos dois, sabemos que eles são felizes juntos. E passamos a nos sentir mal de rir, ainda que continuemos rindo. Não queremos ser como Caco – muito menos como Joana. Mas somos tão parecidos!

Nós – o senso-comum sentado na plateia – somos o mais próximo de um vilão que esta peça produz. O texto e os atores são competentes o suficiente para fazer com que a gente prefira não vencer. Torcemos para que Helena e Tony consigam ficar juntos, apesar de nós. Torcemos para que eles consigam vencer nosso preconceito e nos tornar melhores do que somos. Não sei se torceríamos assim num episódio da vida real. E esta é a questão que a peça também nos deixa.

O final é brilhante.

Acho que vale a pena pensar sobre as questões que esta peça provoca. Começando por: qual é o nosso problema com os gordos?

Sobre a transformação do padrão de beleza, das rechonchudas musas da Renascença às modelos esquálidas e/ou musculosas de hoje, já se escreveu bastante. A pergunta que me desperta maior interesse não se refere – apenas – ao fato de acharmos as gordas feias, de relacionarmos gordura com feiúra. A questão que mais me intriga é: por que muitos acham as gordas (e os gordos) repugnantes? Se você não disse ou pensou, já ouviu alguém dizer: “olha que gorda nojenta!”.

Horrível. Mas tão comum que nos obriga a ir em frente.

Com todas as diferenças que, para nossa sorte, garantem a diversidade do mundo, somos impelidos a ser politicamente corretos. Fazer piadas com aquelas que foram as vítimas de sempre até não muito tempo atrás, como negros, gays, deficientes etc, pega mal hoje em dia. Temos de ser politicamente corretos ou corremos o risco de ser processados – ou mesmo de acabar na cadeia. Por que o privilégio de não ser ridicularizado não foi estendido aos gordos? Sobre os gordos podem ser ditas as coisas mais cruéis. E ainda se manter do lado certo da força.

O que diz o senso comum sobre os gordos? Primeiro, que são feios. Em geral, o máximo de elogio que um gordo consegue arrancar é: “Que pena, tem um rosto tão bonito…”. Dizem que são preguiçosos. Se fizessem exercícios – e como ousar não se exercitar neste mundo? – perderiam aquela pança. Afirma-se também que são sem-vergonhas. Se tivessem vergonha na cara, respeito próprio, fechariam a boca e seriam magros. E, então, poderiam pertencer ao clube dos magros felizes (????!!!!).

Portanto, segundo o senso comum, além de feios e preguiçosos, gordos também teriam falhas de caráter. E, como tudo, para as mulheres acima do peso é ainda pior. Neste mundo em que se compram peitos, bocas e bundas no crediário, soa imperdoável não arrancar a gordura à faca. Já ouvi muitas vezes frases como estas, referindo-se a alguém com mais quilos do que o “permitido”: por que não faz logo uma cirurgia de redução de estômago? Seguida por uma cirurgia reparadora e uma lipoescultura? Simples assim.

Sobre o estado psíquico dos gordos, a percepção é confusa. Por um lado, persiste a ideia de que todo gordo é engraçado. É um pândego. Como bobo da corte ou comediante, ele pode ser aceito. Nós mesmos, só conhecíamos Fabiana Karla como atriz do Zorra Total. Ninguém imaginou que, ainda que fazendo o papel de “gorda”, ela pudesse ter outros recursos que não a graça. Que os gordos mostrem nuances que não virem piada nos surpreende. Que eles possam nos fazer pensar sobre outras dimensões da vida é inesperado. Que tenham questões existenciais que não girem em torno de uma balança é estarrecedor.

Por outro lado, o senso comum também diz que, se é gordo, só pode ser infeliz. A maioria de nós acredita e repete isso. Fulano come demais, é infeliz. Fulano não consegue fechar a boca, é infeliz. Fulano compensa a infelicidade comendo. Ora, desde quando magreza se tornou sinônimo de felicidade? Você, magro ou magra, é loucamente feliz? Está rolando de rir vida afora? Ops, magros não rolam.

O mais disfarçado dos preconceitos vem embalado pelo discurso da saúde. É verdade que a obesidade está crescendo no Brasil. E é verdade que isso é sério. E é legítimo e relevante pensar e discutir o fenômeno com responsabilidade.

Mas será que não há um exagero nisso? Ou pelo menos do uso preconceituoso que se faz de uma questão tão séria? Hoje, quando olham para um gordo, além de feio, preguiçoso e sem-vergonha, muitos enxergam também um doente. Gordura virou sinônimo de doença. E nossa sociedade, que morre de medo de morrer, foge da doença. E das pessoas doentes. Os gordos parecem ser os leprosos de nosso tempo. E esta seria minha primeira hipótese para a repugnância que as pessoas gordas parecem evocar.

Não se trata de afirmar que a gordura não está relacionada a doenças – ou que a obesidade não seja uma doença. A Organização Mundial da Saúde afirma que é, quem sou eu para discordar. Só tento mostrar que é preciso tomar cuidado para não cometermos as mesmas crueldades que nossos antepassados consumaram ao exorcizar epiléticos, isolar leprosos. Todas essas práticas sempre foram realizadas em nome do “bem”. Guardadas as proporções e o momento histórico, nossa sociedade pode estar transformando os gordos, com os instrumentos desta época, nos culpados pela nossa impotência diante da doença e da morte.

Hoje a vida tornou-se uma patologia. Difunde-se que muito do que sentimos não deveríamos sentir. O ideal seria só sentir alegria num corpo magro, musculoso e eterno. Para cada sentimento e estado que extrapole estes limites impossíveis há uma patologia e uma penca de remédios e procedimentos cirúrgicos para “curá-la”. Acredito que vale a pena ter um pouco de cautela, enfiar alguns pontos de interrogação na cabeça, antes de sairmos rotulando todos os gordos como doentes. E, pior, com uma doença que dependeria só de boa vontade individual para ser curada.

Eu sou mais ou menos magra. Longe, bem longe do peso de uma modelo, mas ninguém me chamaria de gorda na rua. A maior parte da minha família é magra. E todos nós temos doenças. Eu tenho quatro hérnias de disco. Meu pai, mesmo com um metabolismo fenomenal e índices de colesterol e triglicérides perfeitos, tem problemas cardíacos desde jovem. Meu irmão do meio não tem um grama de gordura a mais no corpo, come alimentos saudáveis e se exercita com método: a cada semana corre quatro dias, faz musculação e natação em outros dois. Ainda assim, é um pré-diabético.

Parece-me lógico que o envelhecimento traga doenças. A vida nos gasta. Nosso corpo também tem prazo de validade. Pela biologia, estamos prontos para morrer assim que alcançamos a idade reprodutiva, transmitimos nossos genes e criamos nossa prole. Conseguimos, à custa da Ciência (e ainda bem que conseguimos!) espichar nosso tempo de vida e até com qualidade crescente. Mas, infelizmente, não vamos nos livrar das doenças. Nem de morrer. É duro olhar para os limites. Mas não fazê-lo pode ser pior.

Os gordos podem ser vítimas de nosso medo de morrer. Pagam um preço alto pela nossa dificuldade de lidar com a desordem inerente à existência humana. Tornamos suas vidas insuportáveis – inclusive as lojas bacanas, que se recusam a oferecer números maiores que 42 – porque eles apontam em seus excessos aquilo que nos falta a todos: controle sobre a vida. Esta é uma hipótese, apenas. Acredito que existam muitas outras.
Acho importante tentar compreender porque insistimos em jogar os gordos na fogueira contemporânea. Por todas as razões que dizem respeito à vida de todos – e principalmente para não infligirmos sofrimento ao outro que nos ameaça com sua diferença. Só sei o óbvio: tanto medo, capaz de causar repugnância, revela mais sobre os magros do que sobre os gordos.

Talvez, num dia próximo, não seja preciso escrever em termos de “nós” – e “eles”. A vida é diversa. Sempre houve os magros, os gordos, os altos, os baixos, os de olhos azuis, os de pele escura. Esta riqueza é um patrimônio humano que fez muito bem à espécie. Ser capaz de reter gordura, aliás, garantiu nossa sobrevivência por milênios. Quando os gordos lutam para ser magros, estão brigando contra a biologia. Algo nada fácil de fazer. Muito menos de vencer.

Se engordamos – por herança genética ou outras razões –, não há um só caminho a seguir, uma única estrada para a luz. Pelo menos acredito que não. Emagrecer não é a única alternativa – seja para atender ao padrão de beleza vigente ou para responder ao modelo de saúde atual. A vida é um pouco mais complexa que isso. E há muitas maneiras de medir sua qualidade – assim como o significado de uma existência plena varia de uma pessoa para outra tanto quanto sua disposição genética para esta ou aquela doença.

Se um dia eu engordar muito e tiver problemas de saúde por causa do peso, possivelmente vou optar por continuar comendo minha feijoada semanal. Porque comer o que gosto é uma dimensão essencial da vida para mim – importante o suficiente para não abrir mão dela. Para outra pessoa, privar-se de seus pratos preferidos pode valer a pena em nome de uma vida mais longa ou de vestir um tamanho 38. Cada um tem suas prioridades. É bom lembrarmos que o pensamento dominante atual sobre a saúde não é apenas um produto do avanço da medicina, mas um produto da cultura. E do mercado.

A “gorda” da peça teatral não quer ser magra. Depois de um percurso sofrido na adolescência, ela gosta do que é. E nós, na plateia, também gostamos. Em determinado momento, percebemos que, se ela reduzir o estômago e fizer uma super dieta, algo essencial dela se perderá. Não é apenas uma questão de arrancar gordura do corpo. O que está em jogo é bem mais do que isso.

“Gorda” nos dá a oportunidade de enxergar mais que um acúmulo de células adiposas em outro ser humano. Ao olhar para Helena, a personagem da Fabiana Karla, nos deparamos também com o tamanho extra-large de nosso preconceito. Mesmo quando embalado em nossas melhores intenções.

(Publicado na Revista Época em 22/03/2010)

Fim dos tempos

Quase ronronava, tão bom era o sonho. Estava ele numa sarça ardente, temperatura batendo os 100 °C, único macho entre uma dúzia de demônias gostosas, os rabos nus e lindos, cascos bem torneados, chifres graciosos. Huuuuuuuummmmmmmmmm. A eternidade era boa.

Puf. A diabinha ruiva tinha acabado de se encaixar, cascos contra cascos, quando… desapareceu. E com ela todo o séquito de canhestras deliciosas. Fechou bem os olhos, tentando resgatar o sonho. Nada. Quem ousara interromper um devaneio tão literalmente caliente?

Caiu em si. O barulho fora daquela alma era ensurdecedor. Basicamente um pesadelo. Tinha escolhido aquele sujeito pacato, do tipo do trabalho para casa, festas só as da firma e acompanhado da patroa (que tinha um cabelo horroroso, aliás), finais de semana em parquinhos com os rebentos remelentos, exatamente por causa do sossego. O cara era sem imaginação, é verdade. E tinha péssimo gosto para mulheres e para gravatas. Mas é necessário fazer algumas concessões em nome da qualidade de vida.

Ele era um belzebu já passado dos 5 mil anos de batente, chegando perto da aposentadoria. Tinha batido o ponto em almas demais. Em sua folha corrida de serviços prestados havia alguns momentos áureos, como Átila, o baixinho invocado dos hunos, Calígula… sujeito muito imaginoso, suspirou. De uns 500 anos para cá deu para se entregar a nostalgias e perder o fio da meada. A velhice é uma merda.

De novo. Calígula… Ana Bolena, hum, superestimada. Maria Antonieta, sem cabeça para a vida prática, mas infelizmente não chegava a ser má pessoa. Jack, ah, Jack, que homem aquele! Um quebra-cabeça de muitas peças. Goebbels, este era bom, mas se tivesse vida mais longa teria sido tedioso. Trabalhava demais e tinha pinto pequeno. Por sorte, havia sido dispensado de ocupar por mais tempo o general aquele… Como era mesmo o nome daquele cara de fuinha? Sujeito enfadonho. Se fosse obrigado a mais uma perversão com cavalo, pediria demissão e mudaria de lado. Até um canarinho do coral do Padre Marcelo Rossi tinha mais joie de vivre.

Pronto, perdera-se de novo, enquanto lá fora o mundo desabava. O que estava acontecendo, meu Deus? Ops! Estava mesmo perturbado. Vade retro, demonho!!! Eu te venço, tesconjuro!! Sai já deste corpo que ele não te pertence, filho de uma égua!!! Ah, tenha paciência, o que você foi fazer, Lourival?

Detestava esta falta de sofisticação, esta decadência de costumes, esta falta de respeito com as velhas tradições. Cadê aqueles exorcistas católicos bacanas, eruditos, vestidos de preto, com crucifixos de prata de lei? A-do-ra-va aquele ritual em latim!! Do jeito que a coisa andava, em vez de falar sumério antigo, ele teria de se manifestar falando “as mina, os mano” para ser compreendido. Tenha dó.

Resolveu abrir a janela daquela alma medíocre e dar uma olhada. Pronto, era só o que lhe faltava. Já tinha ouvido falar, mas pensava que era boato. Então estavam tentando despejá-lo num estúdio de TV, com aquele homenzinho ridículo metido naquele terno cafona e gritando coisas sem sentido em péssimo português? Não, não. Um mundo como este, com almas que não se dão ao respeito, não merece demônios. Pelo menos não demônios da sua estirpe, formado na Academia Real do Inferno no curso master-plus-super de mil e duzentos anos.

E tudo porque na noite anterior Lourival havia mandado a vaca da mulher horrorosa dele e a vaca-mor da sua sogra pestilenta para o quinto dos infernos e saído batendo a porta para se encontrar com os colegas do boliche? Sim, boliche, senhoras e senhores. Nada de orgias com animais, nenhuma coprofiliazinha, muito menos um estuprinho seguido de assassinato. Nada. Boliche e cerveja quente. Por causa disso interrompiam um de seus melhores sonhos dos últimos tempos, numa idade em que ele sofria de insônia e tinha joanetes nos cascos?

Era o fim. Pediria as contas ao big boss em pessoa.

Fui.

Bateu o portão sem fazer alarde, com a leve impressão de que já ia tarde.

Página 1 de 212