O atum

Para João

Acordou decidido a cometer uma extravagância. Passara a vida com o dinheiro contado. Agora que estava aposentado, tinha de contar mais cada vez menos dinheiro. Mas desde que vira na revista uma receita de atum, não conseguiu tirar a imagem da cabeça. “A carne tenra e crocante desta iguaria provoca uma transcendência….” Não conseguia esquecer a frase do crítico de gastronomia. Ele não sabia o que era “transcendência”, mas queria ter uma. Intuía que era bom.
Transformara-se numa obsessão. O atum era a última imagem antes de pegar no sono, a primeira quando acordava. Logo não podia mais dormir. Queria experimentar a transcendência antes de morrer, a carne tenra e crocante do atum.

Naquele dia acordou obstinado. Ele havia sido sempre um homem reto, cumpridor dos seus deveres. Uma vez até havia sido elogiado pelo chefe da repartição por devolver uma nota de 100 reais que havia encontrado no banheiro. O chefe disse que era dele e a embolsou. Ele não tinha certeza de que era do chefe. Mas, como disse para a mulher, naquele tempo ainda ignorante do câncer que viria a matá-la, o que importava era que ele tinha feito a coisa certa.

Agora, gastaria a mesma quantia para comprar aquele atum. Nem que tivesse de atrasar a conta da água e da luz, comer sopa pelo resto do mês, adiar a aquisição de um cobertor mais grosso para o inverno que chegava. Ele queria aquela transcendência mais do qualquer coisa que tivesse desejado em toda a sua vida.

Vestiu seu melhor casaco, passou no caixa eletrônico do banco, raspou tudo o que ainda lhe restava na conta e entrou pela primeira vez na Casa Santa Luzia porque não queria porcaria. Queria aquele atum. Não o criado em cativeiro, entupido de hormônios para aumentar o peso. Mas o capturado em mar aberto por barcos equipados com a mais avançada tecnologia, o que o jornalista disse que provocava transcendência.

O atendente perguntou quem era seu patrão. Ele não entendeu. Depois, percebeu que havia ali muitos mordomos ou coisa parecida, como nas novelas. Homens como ele, mas mais bem vestidos que ele, que faziam compras toda semana ali, que comungavam de uma soberba que os irmanava. Disse com uma satisfação secreta: é para mim mesmo.

Caminhou cinco quarteirões para que não o vissem pegando o ônibus. Sentia-se diferente. Como se tivesse feito algo importante na vida. Sentia-se até mais alto. Mesmo a gastrite que o atormentava desde os 24 anos parecia ter sumido.

Em casa retirou com cuidados de pai a página da revista que havia guardado bem dobrada na gaveta da cozinha. Leu e releu a receita com os óculos de vista cansada comprados na farmácia. Ele sempre fora um bom cozinheiro. Tinha mais mão para a cozinha que a mulher, que sempre queimava o feijão. Talvez convidasse a filha que não o visitava havia meses, sempre com a desculpa de que o marido estava trabalhando aos domingos. Não, aquele atum era dele. Pela primeira vez na vida, ele teria algo só dele. Lavou bem as mãos, passou álcool-gel e abriu o pacote sobre a mesa. Sentou-se diante do atum. Ficou olhando para ele.

Sentiu um calafrio, como se tivesse estabelecido uma conexão com o peixe. Mas ele estava ali, bem morto. Aquele atum em cima da sua mesa de fórmica descascada pelos anos, pela miséria da sua vida de assalariado, atravessara oceanos e conhecera profundezas. Tinha sido capaz de vencer 170 quilômetros de mar aberto num só dia. Aquele atum havia comido mais peixes que ele em toda a sua existência. Experimentara uma vida selvagem. Aquele atum ali tinha sido livre. Que jornadas ele não empreendera, que maravilhas não vislumbrara no fundo do mar, que aventuras com certeza vivera.

Aquele atum ali tinha brigado pela sua vida e sido subjugado não por resignação ou por passividade ou porque não cogitara que havia outro jeito de existir que não a obediência. Aquele atum ali fora subjugado apenas pela força. E morrera lutando.

E agora estava ali, na mesa de fórmica descascada de sua cozinha, para ser comido por ele. Entre seus dentes gastos por carne de segunda e maltratados por dentistas de subúrbio. Para lhe dar transcendência. E ele nem sabia o que era transcendência.

Sentiu náuseas. A gastrite voltara. Ou era algo mais. Vomitou na pia da cozinha.

No dia seguinte, recolheu os últimos trocados e se enfiou num ônibus para o Guarujá. Trazia o atum nas mãos. As pessoas olhavam para ele, mas ele não as via. A mulher sentada ao seu lado no ônibus tentou puxar conversa, mas ele não a ouviu. Ela então reclamou do cheiro, mas ele parecia tão alienado de tudo que os passageiros concluíram que era retardado. E na segurança de suas certezas, o deixaram em paz.

Quando desembarcou na rodoviária, caminhou até a praia com seu atum. E foi entrando no mar com ele. Um homem vestido pobremente com um atum nos braços mar adentro. Naquele momento, se pudessem enxergar seu pensamento, descobririam que ele só tinha um lamento. O de não ter conhecido a transcendência.

Cartas de amor

Por que sempre adiamos o momento de dizer o que sentimos?

Meu pai fez 80 anos. Queríamos dar a ele um presente que fosse mais do que algo que ele pudesse usar. Um que não servisse para nada, a não ser para a vida. Decidimos fazer um livro com cartas de amor. Não as cartas do passado, trocadas entre ele e minha mãe, mas as cartas do presente, que todos escreveriam. Cartas de amor dos filhos, dos netos, da companheira de toda uma vida. Dos sobrinhos mais próximos, dos amigos mais queridos, dos alunos e companheiros de trabalho com quem compartilhou seus ideais mais caros. Cartas de amor, enfim, escritas por quem havia testemunhado sua vida – e se transformado pela sua vida. Só havia uma regra para as cartas de amor: elas tinham de ser ridículas.

Para que ninguém se sentisse desconfortável com o desafio de escrever cartas de amor ridículas, ficamos na companhia ilustre de Fernando Pessoa, com a poesia famosa de Álvaro de Campos: “Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Também escrevi em meu tempo cartas de amor./ Como as outras, ridículas. As cartas de amor, se há amor, têm de ser ridículas./ Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas (…)”.

Encomendar cartas de amor ridículas era um jeito de escapar das cartas laudatórias e de estimular os mais ariscos na demonstração de sentimentos a escrever com o coração ou mesmo com o fígado. Não era um campeonato de quem escrevia mais bonito, mas uma oportunidade imperdível de dizer para o meu pai o quanto cada um o amava, do jeito único que cada um podia dizer, numa história com o meu pai que era só sua.

As reações foram as mais diversas – e bem divertidas. Enquanto uns se desincumbiram bem rápido da missão, outros tinham certeza de que não conseguiriam até o último instante. Meu sobrinho, o mais jovem da família, achava que carta não era coisa da geração dele, para a qual até email já era ultrapassado. Acabou descobrindo que é do tempo das cartas e escrevendo uma bem bonita. Meu irmão do meio, que é físico, sofreu e sofreu e sofreu – e quase na prorrogação enviou uma criativa carta com duas vozes. Fez até desenhos! Finalmente a gente descobria que aqueles mais xucros, os que cumprimentam meu pai com um aperto de mão e uns tapas nas costas, porque homem que é homem só abraça mulher, deixariam Fernando Pessoa orgulhoso.

Conto essa história para que, quem sabe, mais gente se decida a escrever cartas de amor ridículas. Acho que a maioria de nós tem muito a dizer para as pessoas da sua vida, mas adia para algum momento que talvez nunca chegue. Cumprimos horários para tudo, inclusive para o que é bem supérfluo, mas parece que sempre podemos deixar para amanhã dizer às pessoas importantes que, sim, elas são importantes para nós, que trazemos um pouco delas em nossos gestos, nas nossas escolhas, na porção imaterial de nossas células. Só que é arriscado adiar, porque o amanhã é incerteza, só o que temos é o hoje.

Dá para deixar para amanhã a academia, a manicure, a balada com os amigos, a compra de um jeans, um sapato, um computador ou um carro novo. Dá para deixar quase tudo para amanhã, menos dizer a quem amamos – que amamos. Não apenas no caso do amor romântico, mas em todo tipo de amor. Se pararmos para pensar, muito do que achamos inadiável é passível de prorrogação ou até mesmo desnecessário. Já o essencial, tanto protelamos, perdidos nos muitos supérfluos, que um dia pode ser tarde.

Tenho feito o exercício de reconhecer no traçado da minha vida as pessoas que me tornaram o que sou. Não apenas meus pais, mas gente que nem imaginava que tinha sido tão substantiva para mim, como a moça da livraria de Ijuí, para quem escrevi uma de minhas primeiras colunas – A história de Lili Lohmann.

Não somos em si. Somos para o outro. Só sabemos quem somos porque alguém nos reconhece. Quando olham para nós, mas não nos enxergam, é destruidor. Este olhar é violento porque nos atravessa. Já o olhar que nos reconhece faz com que nos tornemos melhores do que somos, para estar à altura de quem já nos vê melhores. Quando dizemos a alguém que é importante, que nossa vida é mais viva porque esta pessoa existe, ela também se redescobre pelo nosso olhar amoroso. E estas redescobertas de si mesmo são transformadoras – para quem vê e para quem é visto. Acho que vale a pena identificar quem são as verdadeiras celebridades da nossa vida – aquelas que podem ser anônimas para o mundo inteiro, mas não para nós.

Esta é uma época em que se fala muito. Quase todos falam o tempo todo. É difícil encontrar alguém para entabular uma conversa de silêncios. Muitas vezes as pessoas falam e falam, mas não é um diálogo. Não há uma troca, um dizer para o outro, para depois escutar o que o outro tem a dizer. Ao contrário, parece uma fala sem endereço. Mais um ato desesperado de manter-se falando para ter certeza de que existe. Acho que falamos tanto, nisto que a psicanálise chama de “fala vazia”, por falta de olhar que nos reconheça na singularidade do que somos. Algo como: já que ninguém diz que sou importante, então fico repetindo ao infinito que sou importante, para todos e para ninguém. Quando mais duvido, mais preciso falar.

Mesmo hoje, quando tantos escrevem na internet, em blogs e outras ferramentas, ainda que se fale por meio de símbolos gráficos, é uma fala – não uma escrita. Em muitos casos, a mesma verborragia para ninguém. Por isso acho importante que reabilitemos as cartas. Escrever é um exercício profundo de elaboração dos sentimentos e das ideias. Quando começamos, nunca sabemos para onde a escrita vai nos levar. Vamos nos descobrindo em letras, nos constituindo em palavras. E sempre, sempre mesmo, nos surpreendemos com o que escrevemos.

As cartas são sempre para alguém. Para existir uma carta é preciso que haja um endereçamento, é necessário nomear aquele para quem escrevemos. Ainda que em certo sentido sempre escrevamos para nós mesmos, a carta é obrigatoriamente para um outro. Pressupõe um diálogo. E é um diálogo de reconhecimentos mútuos.

Outra qualidade das cartas é que são para todos. Podemos não saber escrever um livro, um artigo, uma tese de doutorado, uma reportagem, poesia. Mas quem se alfabetizou sabe escrever uma carta. Porque na carta, mais importante que a habilidade com as palavras, é a capacidade de ser verdadeiro. A carta que nos emociona não é aquela que tem o melhor estilo, mas aquela que expressou com mais sinceridade os sentimentos de quem escreveu. É aquela que nos faz identificar o cheiro, os gestos, a voz e também as palavras de seu autor. A melhor carta é a encarnada. Para isso, não é preciso tornar-se um mestre das palavras, mas talvez algo tão ou mais difícil, mas que depende apenas de uma decisão interna: é preciso ter a coragem de ser.

É curioso como há livros de cartas para todos os gostos. Trocas de cartas entre intelectuais, antologias de cartas de amor de todos os tempos, cartas de fulano para beltrano, até no primeiro filme baseado no seriado americano Sex in the city, as cartas de amor faziam parte do enredo. Se há tantos livros é porque as pessoas gostam de cartas. Então por que não as escrevemos? Será que preferimos continuar falando sozinhos?

O computador e a internet estão aí para tornar ainda mais fácil a operação mecânica do processo. Não a efêmera e loquaz troca de emails, mas aquilo que faz de uma carta uma carta: a disposição de se abrir para o outro. Não qualquer outro, mas aquele que escolhemos como alguém importante o suficiente para dizermos algo a ele. Não o supérfluo, mas o essencial. É possível escrever uma carta por email, como é possível escrever uma carta por qualquer meio. Mas, em geral, usamos o email para falar tudo e qualquer coisa. Nas cartas, só escrevemos aquilo que precisa ser dito. Enviamos emails para qualquer um – cartas só escrevemos para os inscritos na nossa vida.

Eu mesma, que ganho a vida escrevendo, me surpreendi com minha carta de amor para meu pai. Penso sobre a relação com ele desde que me entendo por gente. E estou sempre me questionando sobre tudo. Descobri, porém, que “desconhecia” vários de meus sentimentos – e havia me “esquecido” de histórias capitais. Elas estavam em algum lugar de mim, mas até então eu não havia tido oportunidade de trazê-las à superfície e torná-las verbo.

Escrever ao meu pai foi um reconhecimento de sua importância na minha vida. Não no sentido laudatório, mas em tudo o que há dele em mim. Inclusive naquilo que preferia não carregar, até mesmo naquilo em que quero ser diferente dele. Afinal, todos sabemos – ou deveríamos saber – que só nos tornamos adultos quando superamos nossos pais para nos tornarmos nós mesmos.

Nascemos pelo desejo de nossos pais – e crescemos para buscar nosso próprio desejo. Ou, dito de outra forma, existimos por causa do desejo dos pais, mas só alcançamos uma existência autônoma quando assumimos o risco de nossa própria busca. Estes são os bons filhos. E os bons pais são os que esperam ser superados – e não apenas imitados. Superados não no sentido de que os filhos tenham de ser mais bem sucedidos nisso ou naquilo, mas no sentido de que os filhos descubram e construam seu próprio caminho no mundo.

Em minha carta ao meu pai, reconheço tudo o que há dele em mim, a extraordinária importância dele em mim. Mas, ao mesmo tempo em que foi um exercício de reconhecimento, também foi um exercício de diferenciação. Este é você e amo o que você é, até mesmo seus defeitos. Esta sou eu, grata por tudo o que há de você no meu percurso, mas autônoma na medida em que criei outras possibilidades a partir do que aprendi com você. Só podemos ser diferentes – algo muito valorizado em nosso tempo – quando assumimos que viemos de um determinado lugar. Para sermos diferentes temos de admitir a referência, já que só é possível ser diferente em comparação a um outro. Quando identificamos a originalidade do que somos podemos identificar com mais serenidade e justiça a herança de nossos pais. E brigamos muito menos com eles.

Cartas de amor existem para isso. Para reconhecer o outro, elaborar nossos sentimentos pelo outro, dizer aquilo que é importante o suficiente para ser dito. Mas, como todo diálogo verdadeiro, é uma troca. Quando conseguimos dizer ao outro de sua importância numa carta, damos muito – mas também ganhamos muito. Ser capaz de amar melhor tem um efeito fabuloso sobre a vida.

Quando começamos a pensar numa festa para comemorar seus 80 anos, meu pai não estava certo de querer celebrar. Disse isso em uma frase profunda: “Quando eu olho para trás, fico feliz com o que vejo. Mas, para frente, é incerteza”. Ele tem razão. Amanhã é incerteza. Para todos, mais ainda para quem completa 80. Na verdade, acho que, no caso de todos, e também no de meu pai, o que dá medo não é a incerteza – mas a certeza. É por causa da certeza da morte que tecemos a teia de sentidos da nossa vida. É por causa da delicadeza com que teceu sua vida que meu pai vai para o amanhã com a certeza de que amou bem – e é amado com o melhor do que somos.

Encerrei minha carta de amor ridícula ao meu pai na esperança de que ele compreenda que todo ponto final é chegada, mas também é partida: “Use este livro como ponto de chegada, um itinerário amoroso de sua vida pelos olhos nossos. Mas, depois, esqueça-o numa gaveta. E, como Fernando Pessoa, nasça mais uma vez para a eterna novidade do mundo”.

(Publicado na Revista Época em 28/06/2010)

Estranho

O primeiro sinal foi a barra da calça jeans. Sua calça preferida, de grife. Ela costumava usar com salto alto. Quando comprou, usando uma boa parte do décimo terceiro do último Natal, pedira para a costureira deixar a barra um pouco comprida. Mas naquele dia a calça arrastava no chão apesar do salto de 12 centímetros. Que estranho, pensou. Já estamos no meio do ano e ela parecia estar no comprimento certo. Não deu mais atenção. No dia seguinte deixou a calça novamente na costureira, implorando que aprontasse na sexta-feira, para usar numa festa no sábado.

O segundo sinal se revelou três dias depois. A temperatura havia baixado brutalmente por conta de uma frente fria vinda da Argentina, e ela precisou tirar o edredom da parte de cima do armário. Sempre havia feito isso sem necessidade de subir num banco ou na escada. Mas naquele dia as pontas de seus dedos mal alcançaram a parte superior do guarda-roupa. Sentiu uma garra lhe apertando o estômago, a garra da infância, a mesma que sentiu quando o pai lhe pediu que sentasse em seu colo e não a soltou por tempo demais. Será que estava encolhendo? As pessoas encolhiam com a idade, mas ela só tinha 34 anos. Se matricularia na aula de alongamento da academia.

Dois dias depois foi pegar um pacote de coxas de galinha desossadas no freezer para preparar seu famoso risoto de frango com funghi. Não alcançou. Neste terceiro sinal, desmaiou. Como no dia em que o pai foi embora, e a mãe fechou a cara para ela. Até morrer num asilo, pouco antes do Natal e da compra da sua calça de grife.

Não podia mais ignorar. Algo de muito estranho estava acontecendo. Ligou para o clínico geral que havia cuidado dela quando a gripe suína quase a matara no inverno passado. “Estou encolhendo”, ela disse. Silêncio. É verdade. Você vai achar que eu sou maluca, mas eu estou encolhendo. Tenho um intervalo hoje à tarde, às 16h30, ele finalmente disse. Venha ao consultório para conversarmos. Ela desligou. Ele não acreditava nela.

Experimentou várias roupas diante do espelho. Nada havia mudado na sua largura, apenas no comprimento. Ela era a mesma, apenas uns 15 centímetros mais baixa. Com uma saia que antes mal batia nos joelhos e agora caía até os tornozelos, os pés enfiados num sapato de festa com salto de 15 centímetros, pegou um táxi para levá-la ao consultório. Queria andar na rua o mínimo possível. Você está um pouco diferente, disse o motorista. Cortou o cabelo? Não, acho que emagreci um pouco. Está sem salto, ele disse. Ela não respondeu. Saiu do carro tropeçando.

Doutor, eu sei que parece loucura, mas estou encolhendo. O médico perguntou como andava a sua vida, se tinha dormido bem nos últimos dias, se sentia falta de um namorado. Não tem nada de errado comigo, doutor, eu não estou louca. Mas a cada dia estou menor. Tanto insistiu, que ele a mediu. A altura não batia com a da ficha. Acho que cometi um erro aqui no preenchimento do seu cadastro, ele disse. Não, ela quase gritou. Está tudo certo. Sou eu que encolhi! O senhor não está ouvindo? Ele estava, mas não escutava. Ela começou a chorar um pranto convulso. Saiu de lá com um antidepressivo pesado e um ansiolítico leve.

Antes de chegar em casa, comprou duas caixas de seu bombom preferido e uma lata de sorvete. Passou a noite encolhendo e comendo doces, diante de uma sequência de comédias românticas. Adormeceu no sofá azul. Quando acordou, o dia amanhecendo e entrando em rasgos pelas cortinas, levantou-se para ir ao banheiro e estatelou-se no chão. O sofá era alto demais para o seu tamanho. Assim como todo o resto. Fez xixi na caixa de areia do gato. Que a olhava com um olhar estranho, um olhar que a estranhava.

Duas semanas depois os bombeiros arrombaram a porta a pedido do síndico, que por sua vez havia sido pressionado pela vizinha do lado, que sempre espionara a vida dela. Ela não aparece há dias, já veio aqui um colega de trabalho dizendo que ela sumiu do emprego. Tocamos a campainha muitas vezes, mas ela não atende, dizia a mulher, com os olhos de fuinha que ela não viu. Escutei uns miados estranhos do gato, agregou o faxineiro.

A porta foi abaixo, apesar das duas fechaduras tetra. Não a encontraram. Estavam lá as roupas empilhadas sobre a cama, os CDs, a coleção de DVDs do cinema americano das décadas de 50 e 60 que ela adorava, o lap top ainda conectado em sua página do facebook, os pratos sujos na pia, até um vibrador verde. De 30 centímetros, cochichou o zelador.

E o gato, que se enrolou nas pernas da vizinha do lado, ronronando.

Dois andares abaixo do meu

Ela vivia lá e eu desconhecia, ela morria lá e eu não sabia

Eu nunca tinha ouvido falar dela. Vivo neste edifício de 70 apartamentos há alguns anos. A maioria dos moradores só encontro na reunião de condomínio. Há o velho que toma sol pela manhã e que me cumprimenta sorridente porque lá em casa a gente se dá tchau na janela quando alguém sai. Ele acha curiosíssimo e acompanha o ritual enternecido. Há as mulheres que passeiam com os cachorros, e as que fiscalizam o crescimento das roseiras do jardim. Existe a vizinha que sempre tenta me vender produtos de beleza. E o Pedrão, um aumentativo irônico para um cachorro tão pequeno, tão desmilinguido e cego pela idade, que sobe e desce o elevador comigo, protegendo com olhos erráticos um dono que é quase um gigante. Há o vizinho de passo marcial que não cumprimenta ninguém. E ela, que morava lá havia uma eternidade, mas a quem eu nunca vira.

Numa tarde vêm o chaveiro, os bombeiros e a polícia. Arrombam a porta do apartamento. E somos todos lançados para dentro de uma paisagem muito semelhante à nossa, mas que era dela. As histórias de sua vida me alcançam aos farrapos. Aos 82 anos ela vivia só. Tinha sido médica, com consultório no centro de São Paulo. Era uma mulher independente, que veio do interior para vencer na cidade grande quando as mulheres de sua geração apenas recolhiam os passos até a casa do marido. Viajou o mundo, falava várias línguas, expressas nos livros espalhados pela casa. Não sei de seus amores, ninguém ali sabe. De repente, ela descobriu-se só. Não queria morrer, só não sabia como seguir vivendo. Resistiu viva – morrendo.

Há dois anos ela estacionou sua Brasília vermelha meticulosamente limpa e bem conservada numa vaga tamanho G. E nunca mais a tirou de lá. Poderia ter sido um sinal, mas um sinal só se torna um sinal se for decodificado. Este gerou apenas uma multa do condomínio. O carro deveria estar numa vaga M. Talvez P. Há pouco mais de um ano ela deixou de pagar a conta do condomínio. O acúmulo da dívida virou um processo judicial e uma primeira audiência a qual ela não compareceu. Outra pista não decifrada.

A vizinha do lado percebeu que ela não mais saía de casa. Insistiu com o síndico, com o zelador, algo estava errado. Ela nem atendia mais a porta, e um cheiro novo se impregnava no corredor. Mas a lei não escrita da cidade grande determina não perturbar a privacidade de ninguém. Cada um é uma ilha – ou um apartamento. Proprietário-indivíduo de seu número de metros quadrados aéreos no mundo. Os funcionários do condomínio devem avisar pelo interfone quando vão entregar uma correspondência que precisa ser assinada porque, do contrário, muitos moradores sequer abrem a porta. E ela era conhecida como “a doutora”, o título um abismo que ela e tantos se esforçam para cavar. Ninguém ousou perguntar se algo diferente, algo pior, estava acontecendo com ela.

Naquela tarde a conhecida de uma associação onde ela trabalhava como voluntária veio procurá-la, preocupada com seu sumiço. Ela então conseguiu se arrastar e sussurrar que não tinha forças para abrir a porta. Quando a porta caiu, e os fossos foram transpostos, descobriu-se que havia dois meses ela vivia no escuro, à luz de velas primeiro, nada depois. A energia elétrica tinha sido cortada por falta de pagamento. Há semanas ela não comia. Já não podia andar. A doutora estava morrendo de fome em meio a centenas de pessoas na cidade de milhões. Em sua própria sujeira.

Num prédio de classe média de São Paulo, ela estava mais isolada que qualquer ribeirinho dos confins da Amazônia. Não queria que descobrissem que havia perdido o controle da sua vida. E quando quis pedir ajuda, já não teve forças. Imagino quanto desespero sentia para conseguir romper as amarras de toda uma existência, se arrastar até a porta e admitir que não era mais capaz de abrir. Foi levada ao hospital, onde agora briga para viver.

Ela morava dois andares abaixo do meu. Quando eu soube, fiquei rememorando os últimos meses. Enquanto eu trabalhava, cozinhava, bebia vinho, tomava chimarrão, gargalhava, assistia a filmes, me emocionava com livros, me indignava com acontecimentos, conversava, namorava, sonhava, fazia planos, escrevia esta coluna e às vezes chorava, dois andares abaixo do meu, num espaço igual ao meu, uma mulher de 82 anos morria de fome nas trevas, em abissal solidão.

Enquanto eu ria, ela morria. Enquanto eu comia, ela morria. Enquanto eu sonhava, ela morria. No escuro, ela morria no escuro enquanto eu abanava da janela, o velho sorria ao sol, uma vizinha tentava me vender um novo creme antirrugas e Pedrão rosnava cegamente no elevador sob o olhar terno de seu gigante.

Não consegui dormir por algumas noites porque me via arremessada ao outro lado da rua, tentando imaginar os enredos que se passavam atrás das cortinas daqueles outros 69 apartamentos. Que vidas são aquelas, que dores se escondem, quais são os dramas que sou impotente para estancar? Anos atrás, antes de eu morar no prédio, um homem se lançou pela janela e morreu estatelado na laje. Como tantos o tempo todo. Um soluço apavorante na rotina e depois o esquecimento. Como agora, nesse morrer sem sangue e sem alarde.

Numa fissura do tempo algo que não pode mais ser oculto se revela – revelando também o nosso medo. Portas são derrubadas, cortinas rasgadas por um corpo que se lança para o nada, para nós. E, talvez pior, por um corpo que se esconde até ser exposto pelo cheiro da decomposição ainda antes da morte, corroendo os muros de nossa privacidade protegida com tanto empenho. Como a dela.

Depois precisamos esquecer para seguir vivendo. Mas não consigo esquecer. O que aconteceu com ela está acordado dentro de mim como um bicho. Dentro de nós também há um condomínio onde portas se fecham, chaves se perdem e o suicida que nos habita se lança no vazio enquanto outros em nós se decompõem em vida pela morte dos dias que não acontecem. Mergulho então, além dos dois que nos separavam, vários andares em mim. E lembro-me de Mário Sá-Carneiro, escritor português: “Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”.

Acredito que todos no prédio ficaram chocados, cada um à sua maneira. Porque ninguém percebeu a tempestade logo ali. Porque tudo se passou enquanto no avesso de cada janela tentávamos viver. Mas também – e talvez principalmente por isso – porque a tragédia se desenrolou no mesmo cenário onde tecemos o enredo de nossos dias.

O apartamento dela é igual ao nosso. Esta semelhança de condições e de arquitetura, de portas e de janelas, nos provoca um incômodo difícil de dissipar. Poderia ser nós a morrer de fome no escuro. Mesmo com uma história diversa, lá no fundo cada um de nós sabe que a solidão nos espreita. Que não estamos tão protegidos como gostaríamos. Seria mais fácil afastar nosso horror se fosse um assassino, uma morte por ciúme, uma violência cometida por um psicopata. Isto está sempre mais longe. Mas não. A doutora morria logo ali por solidão. E isto está bem perto.

Ela não viveu uma vida à toa. Ou uma vida egoísta. Ela apenas viveu mais tempo do que a maioria de seus amigos, que deve ter sepultado um a um. Mais tempo que os pacientes que tantas vezes salvou, e então o consultório ficou vazio. Ela tinha bens que poderia ter vendido quando ficou restrita a uma renda que não lhe permitia manter o padrão. Mas não tinha mais saúde para fazer o que era preciso. Com o tempo, não conseguia mais nem caminhar até o banco para buscar o dinheiro da aposentadoria ou pagar a conta de luz ou qualquer outra. Lentamente os fios de sua vida foram lhe escapando das mãos. E, no fim, quando percebeu que precisava romper o pudor cimentado nela e pedir ajuda, já não era capaz de andar pela casa para abrir a porta da rua e escancarar sua miséria. A doutora não queria morrer, só não tinha forças para viver neste mundo.

Por um tempo fiquei acordada pelas madrugadas, dormindo nas auroras, aterrorizada com as vidas desconhecidas abaixo e acima de mim, com os socorros que eu não sabia que precisava prestar, com o monstro de olhos abertos em mim. Devagar, comecei a pensar nas minhas escolhas. E agora tento aprender a amar melhor, para além das paredes de meus metros quadrados de mundo, mais iguais às dela do que eu e todos gostaríamos.

(Publicado na Revista Época em 21/06/2010)

O mal-estar

Acordou atrasada, como acontecia quase todo dia. A sensação incômoda de que o tempo lhe escapava, agarrada às pernas das horas que dobravam a esquina. As roupas se acumularam na cama, uma em cima da outra, como mortos. A imagem no espelho não combinava com seu corpo. Bateu a porta com o desconforto de ser um tamanho menor do que deveria ser embora tudo nela apertasse. Chegou ofegante ao trabalho e sentou-se diante do computador para checar e-mails que nem eram para ela. O escritório já estava cheio, o barulho familiar que produziam juntos a cada manhã. Neste momento, sentiu que algo um pouco diferente, um pouco pior, estava acontecendo com ela. A colega virou-se para conversar e ela sentiu medo. Sabia que a colega era inofensiva. Ou tão inofensiva quanto alguém podia ser. Mas sentiu pavor não da colega, mas de estar ali, no meio de tantos, os rostos lhe assustando porque os conhecia. Não queria mais que olhassem para ela, que falassem com ela, que tentassem tocá-la. Ela nem mesmo conseguia estar dentro do seu corpo. Que agora parecia feito de papel. A qualquer momento alguém a rasgaria com uma unha, a amassaria e a jogaria no lixo.

Juntou suas coisas do jeito que pôde, jogou tudo dentro da bolsa, desligou o computador e pegou um táxi. Não tinha dinheiro para isso, mas não seria capaz de se enfiar num ônibus. Tinha medo do ônibus, do motorista, do cobrador, das pessoas, das ruas antes do ônibus. Agora, até o ar que respirava parecia penetrá-la, envenená-la, enchê-la de externos. O motorista tentou uma conversa sobre o tempo, mas ela não enxergava o sol. Estrangulada por neblinas, não era capaz de conversar. Tinha medo das palavras, até das suas.

Quando o táxi parou diante do prédio deu uma nota de cinquenta reais sem esperar o troco e subiu os cinco andares pelas escadas porque teve medo de encontrar alguém no elevador. Arrancou toda a roupa e a deixou amontoada num canto do banheiro. Queria lavar alguma coisa que estava ali. Mas o banho a deixou tão suja como antes. Não queria mais vestir aquela carne que doía. Queria poder se exilar do corpo e não habitar lugar algum. Deveriam existir pílulas de não existir, pensou. Apenas por um tempo.

Agarrou a cartela de comprimidos para dormir que a médica havia receitado e contou. Quatro comprimidos. Era o suficiente. Não para se matar, ela não queria se matar. Ela só queria não doer. Botou seu pijama da Hello Kitty com mãos de parkinson, um suor frio cobrindo o rosto como um creme antirrugas. Se enfiou embaixo do edredom e tentou engolir os quatro de uma vez só. O último lhe arranhou a garganta e depois desceu. Ela ainda doeu por um tempo. E então nada.

Acordou no outro dia, com as horas só um pouco na sua frente. Tinha os olhos nublados e um estômago de alto-mar. Em vez de tentar vomitar, tomou um iogurte com uma colher de sopa de farinha de linhaça dourada. Descartou o vestido e se enfiou na calça com camisa. Pegou o ônibus e chegou ao escritório no tempo de todos. Assim que conectou o computador, enviou um e-mail para o chefe: “Desculpe, uma tia muito querida morreu de repente, ontem, e tive de atender a minha mãe, que não passava bem. Tentei avisar, mas meu celular ficou sem bateria e só consegui carregar depois do enterro. Espero que compreenda. Abs.”.

Passou o dia recebendo condolências.

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