Dez anos da vida de um jornal que reconhece a vida
Quando morreu, ele tinha umas poucas roupas usadas demais, uma flauta doce e uma pasta onde guardava sua certidão de nascimento, a carteira de identidade e recortes de jornais. Na parte de dentro da capa desta pasta, ele escrevera: “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Tudo estava ali. Com esta frase ele se inscreveu no mundo e morreu como um homem. Só pôde morrer como um homem porque viveu como um.
A frase que ele escolhera para se identificar, para atravessar o espaço e quebrar com palavras a ausência de si, é a chave para acessar a vida que se foi mas fica no registro. Quem apenas decodificasse a frase sem conseguir lê-la, poderia se enganar com o legado do homem-garoto. Num olhar superficial, ele era um menino que morria cedo, aos 20 e bem poucos anos. Tinha marcas demais no corpo, toda uma existência contada ali em cicatrizes de facadas, de surras, de picadas, um mostruário completo de todas as formas de violência inventadas, um mostruário da humanidade contada pelas suas tripas. Tanto em tão pouco, uma confusão que a vida faz com o tempo e o espaço.
Mas tudo que estava ali contado nas cicatrizes daquele corpo no necrotério só existia porque ele tinha se tornado “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Era no conteúdo da pasta que ele nomeava, nos recortes de jornal que ele escrevia com outros garotos com destinos parecidos, mas jamais iguais, que ele havia se tornado o homem que morreu.
Dito de outra maneira. Ele havia nascido Luciano Felipe da Luz. Mas só se tornou Luciano Felipe da Luz ao começar a escrever-se no jornal. Ao escrever-se, ele tornou-se homem. E só se completou homem porque passou a ser lido como homem. Esta é a sutileza de sua identidade – “Luciano Felipe da Luz – jornalista e jornaleiro do Boca de Rua”. Ao colocar no mesmo patamar o jornalista e o jornaleiro, ele intuiu que escrever e ser lido eram partes do mesmo mistério. Como jornalista ele se escrevia, como jornaleiro ele se fazia ler. Luciano Felipe da Luz eliminara ali, na frase do seu legado, a mercadoria. Ele, que até então havia sido a sobra do capitalismo.
O que faz de um homem um homem? O que nos faz o que somos? A narrativa, a capacidade de nos contarmos. Mas não só. O tornar-se homem só se completa na possibilidade de ser lido, no reconhecimento da história de cada um pelo outro. É naquele reconhecimento que vemos nos olhos de quem amamos ao acordar que nos humanizamos, que nossa humanidade se reedita a cada manhã. Por isso nenhum homem pode ser uma ilha – na frase perfeita que já se tornou um clichê. Porque só somos no outro. E o outro só é em nós.
Quem era Luciano Felipe da Luz antes de tomar posse do seu corpo pela escrita? Era Mercedez. Ganhou este nome por causa do caminhão Mercedes Benz que o atropelou um dia. Não tinha sido o único atropelamento. Ele fora atropelado 12 vezes. Numa delas, ganhou este batismo tão literalmente das ruas. Sem reconhecimento, seu corpo levou ainda um tiro na cabeça, algumas facadas e mais tarde foi assinalado também pelas marcas da Aids.
Arrastando seu corpo sem palavras pelas ruas de Porto Alegre, Mercedez não era visto. Há várias formas de não ver um outro. Infelizmente exercitamos todas elas e sempre inventamos uma nova. Deixamos de reconhecer um homem – no homem – quando pensamos que sua dor não nos diz respeito. É só ao desconhecer o outro como um igual que a desigualdade de condições de vida se torna aceitável. Comum, banal e principalmente alheia a nós.
Com Mercedez era assim, um menino que cresceu nas ruas sem ser visto. Quando era visto, era sempre pelo olhar da violência. Do nosso, que não o enxergava, de outros que como ele disputavam os restos da rua, da polícia que o espancava. Tudo o que conhecia era ser marcado por esta violência, por um olhar que não o via. Porque entre as piores formas de não ver alguém está aquela que só enxerga seu estereótipo. No caso dele, um garoto de rua, um maloqueiro, um vagabundo, um sujo, um feio, um malvado. Um problema para as autoridades, uma mazela social para os especialistas, um estorvo que atrapalha o tráfego e suja as calçadas para a maioria. Não causa espanto que, sendo assim, Mercedez tenha sido atropelado tantas vezes, inclusive uma delas por um caminhão Mercedes Benz.
O que causa espanto é que Luciano Felipe da Luz tenha sobrevivido a todos os atropelamentos, inclusive o do seu batismo. Mais tarde, quando ele começou a se contar pela palavra (e não apenas pelas cicatrizes no corpo), dizia que era “filho da luz”. Se uma interpretação parcial dos fatos mostrava que ele era filho do abandono – de vários abandonos –, ele se agarrava ao fio do sobrenome e com ele construiu uma outra verdade narrativa que repetia nas ruas: “Eu sou filho da luz”. Este parto de palavras pode ter dado a ele uma maternidade que lhe permitiu viver dentro dos seus possíveis. A narrativa que fez de sua origem deu a ele uma mãe que era luz. E com o que pareceria pouco para muitos, Luciano Felipe da Luz desfez parte de suas trevas.
Quando duas jornalistas, Clarinha Glock e Rosina Duarte, começaram a inventar um jornal escrito e vendido por garotos de rua em Porto Alegre, encontraram-no estirado na calçada junto às paredes de um colégio de elite onde guardava carros. Sujo, chapado e esquecido de si. Devagar, bem aos poucos, ele foi se agarrando a este fio que permitia a vida – esta maternidade narrativa que dava a luz e não a morte. Sem negar o Mercedez que era parte dele, resgatou-se como Luciano. Parecia pouco, era tudo. O suficiente para cuidar do seu corpo, agora que ele era constituído também por palavras, estas cicatrizes da alma.
Agora que não o viam mais como resto, mas como “jornalista e jornaleiro”. Agora que ele se apresentava diante do cidadão com seu crachá de jornalista e jornaleiro e oferecia o jornal que ele também escrevia. Senhor, senhora, meu nome é Luciano Felipe da Luz e eu tenho uma história. Pela primeira vez, então, dois mundos dialogavam sem medos mútuos. E descobriam que só as palavras atravessam pontes. São gestos no ar.
Infelizmente não para ninguém, mas para a humanidade inteira, a Aids já o devastava há tempo demais e o cuidado com um corpo que agora podia ser marcado também pelo amor só o roubou pouco tempo mais da morte – o que não é pouco, mas também é. Morreu na luz. No Campo Santo, a parte do cemitério reservada aos pobres, foi sepultado pelos amigos e colegas do jornal. Que perguntaram ao coveiro porque ele, como todos ali, era apenas uma cruz com número – sem foto nem nome. A resposta era que ali os corpos eram enterrados com menos de sete palmos e desenterrados depois de algum tempo para dar lugar a outro corpo de pobre.
Decidiram então registrar sua vida por escrito no jornal – e assim Luciano Felipe da Luz morreu como um homem que viveu, morreu inscrito na história. Antes, eles apenas desapareciam, invisíveis na morte como na vida. Agora, homens como ele, jornalistas e jornaleiros, morrem. E isso é um jeito de permanecer como vida.
Luciano Felipe da Luz, jornalista e jornaleiro do Boca de Rua, ficaria feliz ao saber que um dia, depois da sua morte, seus colegas de jornalismo e jornaleirismo fizeram também um filme. Nele, apresentavam Porto Alegre aos moradores de rua de São Paulo. Numa das exibições, no Centro Cultural Santander, na capital gaúcha, um espaço cultural muito valorizado e simbolicamente dentro do cofre de um antigo banco, foram barrados ao chegar. Ensinado a interceptar roupas velhas e pobres, o segurança intimou: “Quem são vocês?”. Um deles se adiantou: “Nós somos os autores”. E entraram.
Sim, eles são autores. Como autores podem viver. Como dizia Luciano Felipe da Luz: “A minha vida é sempre a sua. Se liga gente boa”.
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O Boca de Rua, um projeto da ONG Alice, completou 10 anos. O jornal, publicado a cada três meses, conta histórias de um mundo até então invisível, agora escrito, fotografado e grafitado por 15 moradores das ruas de Porto Alegre que se encontram uma vez por semana para decidir a pauta e reeditar a vida. Os analfabetos ditam suas palavras, todos se escrevem de alguma maneira com a ajuda de todos. Depois, é vendido nas ruas da capital por seus autores. Cada um tem a sua cota de exemplares e a renda pertence a eles.
A comemoração de aniversário, marcada para este domingo, foi suspensa porque choveu em Porto Alegre e na rua não tem telhado. Mas haverá festa quando o sol chegar. E o sol agora aparece. Aos jornalistas e jornaleiros que tornaram o Boca de Rua possível, a minha homenagem. Afinal, um jornal é exatamente isso – ou pelo menos deveria ser: o reconhecimento da vida.
Em palavras.
(Publicado na Revista Época em 13/09/2010)