Um dos dogmas do bom jornalismo diz que um repórter nunca deve começar um texto por: “Quando fulano acordou naquela manhã, não imaginava que…” ou “Quando fulana embarcou naquele avião, não poderia saber que…” E aí, fulano ou fulana jamais previram que levariam um tiro, seriam raptados por alienígenas ou morreriam num acidente. Os “big boss” do jornalismo morrem de rir dos “focas” que começam um texto assim. Porque, com certeza, ninguém pode adivinhar o que vai acontecer quando acorda pela manhã. Especialmente se vai chegar até o fim do dia.
Tenho dúvidas, porém.
Acho que não há nada mais real, mais concreto e portanto jornalístico, pelo aterrorizante que é, do que a certeza de que você não sabia. Não podia prever. Não tinha como alterar o rumo da tragédia. Esta é uma consciência que, em retrospectiva, e sempre escrevemos em retrospectiva, é quase paralisante. Por isso, talvez, jovens repórteres insistam neste início. Porque ao começar a cobrir a tragédia da vida, é difícil não se sentir tomado pela impotência.
É nisso que penso agora. Podia pensar no que aconteceu de tantas maneiras, mas é apenas nisso que penso. Eu também quando acordei hoje pela manhã, com a musiquinha chata do despertador me avisando que tinha de levantar, não imaginava que duas horas depois eu também não poderia ter adivinhado. Detesto acordar com despertador e em geral não acordo, mas tinha marcado uma bateria de exames no laboratório, exames de rotina, adiados há tempo demais. Tinha jurado a mim mesma que não terminaria o ano sem fechar esta conta com a minha saúde. E com a médica que não para de me atormentar porque há anos esqueço as requisições em alguma bolsa que depois perco.
Me enfiei num táxi sem reparar se faria sol ou chuva no dia que amanhecia. Levei o jornal, a revista Piauí que tinha acabado de chegar e uma biografia que preciso ler. Faria cinco exames diferentes. Na sala de espera havia apenas outras duas pessoas. As chances eram de 1 em talvez muitos milhões, mas uma delas era conhecida. Por coincidência, eu a tinha encontrado numa festa no final de semana. Nem sei por que, mas tivemos uma conversa mais densa do que costuma caber numa sala de espera de laboratório. Falamos sobre a consciência, lá pelos 40 e poucos anos, de que o tempo é tudo o que temos. E cada vez temos menos. E por isso percebemos que a vida precisa ser plena já e tudo o que era adiável se torna urgente. Estávamos neste ponto quando fui chamada para o primeiro exame.
A cada exame que terminava, eu perguntava, mais por hábito: “Está tudo bem?”. Estava. Eu sabia que estaria porque sempre tive saúde de vira-lata. Mas no quarto exame a médica demorou e eu já estava impaciente. Ela passeava e passeava o aparelho sobre o meu seio esquerdo. Ia e voltava. Está tudo bem?, perguntei. Ela não disse que sim nem que não. Você está vendo lá, no monitor, aquela mancha escura, ela disse. Não, eu não via nada. Para mim, a imagem do monitor podia ser a de um rinoceronte. O que é?, perguntei. É um nódulo. Se você tivesse trazido os exames anteriores, eu poderia afirmar com mais precisão se você deve ficar pouco ou muito preocupada. Como você não trouxe, eu não posso saber se a alteração surgiu de repente.
Neste momento eu comecei a odiá-la. E meu ódio costuma ser forte. Se fosse um dia como deveria ter sido, eu diria a ela o que pensava sobre a sua maneira de contar algo tão delicado para uma mulher. Mas tinha acabado de deixar de ser um dia normal. Eu estava ali, numa camisola ridícula, deitada numa maca, com uma profissional perfeitamente profissional me dizendo que talvez eu tivesse uma doença que talvez me matasse. Para mim, que perdi duas pessoas de câncer só nos últimos dois anos. E várias outras ao longo da vida. Qual é o tamanho?, perguntei. Qual é o tamanho mesmo?, ela perguntou para a assistente. Um vírgula seis centímetros.
E agora?, eu perguntei. Nós vamos analisar, comparar o ultrassom e a mamografia, e daremos o resultado. Mas o procedimento, se você fará uma punção ou uma cirurgia, é a sua médica que vai decidir, ela disse, sem alterar o tom. E quando eu vou ter o resultado? , perguntei. Quando ela vai ter o resultado?, ela perguntou para a assistente. Em quatro dias. A médica me alcançou toalhas de papel para que eu me limpasse. E se despediu desculpando-se: “Peço desculpas pela minha tosse. Tenha um bom dia”.
Isso mesmo. “Peço desculpas pela minha tosse. Tenha um bom dia”. É verdade, ela tossia. Tinha comentado algo sobre um resfriado mal curado. Como ela podia se desculpar pela tosse e me desejar um bom dia? Eu poderia enumerar vários motivos para ela me pedir desculpas. Mas a tosse? Quem são estas pessoas? Como elas vivem? Como são capazes de dizer “Peço desculpas pela minha tosse, tenha um bom dia”?
Eu queria ter vontade de matá-la. Mas já estava obcecada pela possibilidade de talvez morrer antes de envelhecer. Então eu respondi: “Imagina, não se preocupe. Obrigada”. Eu agradeci! Deveria ter enfiado uma faca nela, mas agradeci. Porque me sentia frágil e tinha vontade de chorar. E a solidão daquele ambiente asséptico e daquela crueldade de branco me estrangulava. Me vesti e desci as escadas até a última sala, o último exame. “Como está o meu coração?”, perguntei ao médico. Está bem. Você tem prolapso da válvula mitral, mas isso não significa nada, não tem nenhuma consequência, ele garantiu. Me lixei para o prolapso. Que me importa se meu coração sopra?
Sinto uma dor imaginária no seio esquerdo. Me apalpo e me apalpo. E não encontro. Onde você está? Tenho pena e ódio deste corpo que me trai. Quatro dias sem saber se vou envelhecer ou talvez não. Como não suporto a impotência, fico imaginando não o bicho que pode estar me corroendo neste instante, mas a minha vingança.
Amanhã, amanhã a médica vai acordar pensando na tosse e nada mais. E eu vou sequestrá-la por um momento. Vou amarrá-la numa cama e mostrar a faca. Você vê esta faca? Talvez ela seja de brinquedo, como as do circo, e quando eu enterrá-la em seu seio esquerdo ela vai apenas provocar uma coceira. Mas talvez não. Talvez ela alcance o seu coração e para você seja o último Natal. Mas não se preocupe. Em quatro dias eu volto para te dar a resposta. Eu saio da sala em passos leves de gueixa. E volto por um momento, com um sorriso de Mona Lisa: “Peço desculpas pela tosse da minha alma. Tenha um bom dia”.