Agora eu conheço seu nome

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Foi a primeira pessoa que eu vi ao chegar ao povoado do interior da Bolívia. Seu escritório, digamos assim, ficava ao lado do que seria o meu por uma semana. Poderia ser um antagonismo da geografia urbana, já que um salvava vidas — e o outro aguardava a morte. Mas não era. Há algum tempo sei que a morte não é uma anomalia, mas a carne da vida. E a localização, por um destes acasos — ou não —, era perfeita.

O dele — sim, porque era un hombre — era apenas uma portinha e lá dentro se vislumbrava um caixão lustroso com um séquito de lâmpadas de globos roxos que mais tarde ele me explicaria serem de bom gosto e até de bom tom nos sepultamentos de gente de monta. Ele posicionava uma cadeira simples na esquina leste de seu quadrilátero, entre a porta e o interior, astutamente um pouco fora e um pouco dentro. De segunda a segunda, sem escapar dos domingos. La muerte no escoge hora, me explicaria mais tarde.

O fato é que desde que envolvi meus pés nos redemoinhos de poeira desta rua específica, não consegui despregar meus olhos de sua figura comum apenas à primeira vista. Voltei a fumar um cigarro bem desqualificado que era o único que por ali se vendia só para ter uma desculpa de ficar na calçada rodeando aquele homem nem gordo nem magro, idade indefinida, com uma sombra de bigode sobre a boca de peixe. Ficava eu ali, dando baforadas em espiral enquanto o apalpava com os olhos. Ele me espiava e logo virava a cara.

O homem passava a manhã — ou melhor, deixava a manhã passar por ele — sentado em sua esquina particular, mirando obliquamente a esquina com a avenida principal. Mais ou menos de três em três horas levantava-se, tirava o casaco de lã fina, pegava um pano e lustrava o caixão. Depois, sacava a vassoura e dava uma passada que, observei bem, deixava tudo no mesmo lugar. O mesmo movimento que ia em seguida retornava. Filosófico, pensei. Circular. Como para os gregos clássicos. Ou, no caso dele, a cosmogonia andina.

Então, ele voltava a vestir o casaco, sentava-se e acomodava o olhar por mais três horas. Quando eu chegava, ao amanhecer, ele já estava ali. Quando eu saía, no breu da noite, ele continuava ali. Nunca o vi sequer comer pollo con papa, o feijão com arroz dos bolivianos em qualquer parte. Comecei a desconfiar que era imortal. Mas, morto ou vivo, ele me espiava. E eu sabia que se agarrasse aquele rabo de olho na hora exata ele seria um pouco meu.

Numa manhã parei bem na sua frente, quase lhe causando uma morte súbita, o que seria péssimo para os negócios. Estendi-lhe uma mão que, depois de alguma hesitação, ele acabou apertando com a sua, morna e mole — e não seca e fria como eu supunha em minhas fantasias. Me apresentei. Ele deixou escorrer um sorriso frouxo. Eu não recuei. ¿Cuál es su nombre? Mário, pronunciou numa voz baixa. Mucho gusto, acrescentei. Estava orgulhosa do meu espanhol e da abordagem.

Perguntei sobre os globos roxos, o tipo de madeira do caixão, se pensava que havia algum conforto naquele cetim interior, se ele acreditava em vida após a morte. Mário respondia impassível e um tanto monossilábico. Seu olhar só sofreu uma alteração repentina quando perguntei a ele se morria muita gente. Nada, exaltou-se um pouco. Faz meses que não morre ninguém. E voltou a olhar para a esquina, dando a conversa por encerrada. Eu ainda insisti, acendendo um cigarro no outro. ¿Pero, como sobrevive usted si la gente insiste en no morir? Mário se animou a ponto de despregar os olhos da esquina e pregá-los nos meus. La muerte siempre llega, tarde o temprano. Yo voy a estar aquí. Esperando. E com esta eu me despedi, pensando que Mário tinha o objetivo de me assustar.

No outro dia, mais um cigarro. Para descobrir que Mário não queria mais hablar comigo. Tinha verdadeiros sobressaltos quando eu lhe dava buenos dias ou buenas tardes ou buenas noches. Pior ainda quando eu gritava um hasta luego! Nos dias restantes ficávamos lá, eu olhando para Mário, e Mário olhando para a esquina. Numa noite, uma das últimas de minha estadia na cidadezinha, apareceu um anão. Havia Mário e um anão vestido de dourado. Não conversavam. Eu estava doida para botar minhas duas mãos no anão, mas Mário me deu um olhar indubitável. Eu não seria bienvenida. Mesmo. De pirraça, fumei dois cigarros inteiros olhando para eles. E tive uma crise de bronquite à noite.

No dia da partida, a manhã nasceu como um bom augúrio para morte. Chovia pela primeira vez desde a minha chegada. Caminhei resoluta até Mário. Estendi-lhe uma mão molhada. Me voy. Y adiós. Tive eu um susto desta vez. Mário agarrou minha mão com força e não a queria largar. Tengo que irme, lhe disse. Quédate un poco más. Unos días más ya es suficiente. Então compreendi. Arranquei minha mão com um safanão e saí num passo rápido, destituído de qualquer resquício de dignidade.

Na viagem de retorno tive certeza de que Mário era mesmo a própria morte, apenas que um pouco entediada com a vida. Abri uma biografia de Evo Morales e comecei a ler, disposta a esquecer o assunto. Senti um primeiro enjoo. Pensei que era a sopa de quinua com pedaços de carne de lhama que havia comido antes de embarcar. De súbito senti um peso no peito. E caí sobre o banco do avião.

Sobrevivi. Mas agora, dia após dia, escuto Mário varrendo.

Érica, que desaconteceu

O mundo se divide entre o que acontece e todos veem – e o que quase ninguém vê

Desaconteceu numa segunda-feira em que muito aconteceu.

Érica, uma pequena campesina de seis anos, não sabia. De nada.

O ditador da Líbia, elogiado até há pouco por tantos democratas, seguia matando seu próprio povo. O Japão confrontava-se com seus pesadelos mais sombrios. O cãozinho Pinpoo retornara para sua dona e transformara-se em popstar. A visita de Mister Obama ao Brasil deixara um rastro de bege.

Nesta mesma segunda-feira, 21/3, Érica também tinha um drama. O povoado boliviano onde ela vive, a 2.250 metros de altitude, é mais perto de nós do que o Japão ou a Líbia, mas muito, muito mais longe, porque há um tipo de distância que não é medida em quilômetros.

Enquanto o mundo vivia aos espasmos, Érica saltava na chuva que ameaçava deixar seu pueblo de casas de adobe exilado pelo rio que subia. Ela vestia uma camiseta de mangas curtas e uma calça de malha fina que mal lhe alcançava as canelas. Fazia um frio molhado e meus dois casacos se encolheram diante de Érica quase desnuda. Ela nos interceptou com um abraço forte, dado em mim e em Vânia Alves, assessora de imprensa da organização Médicos Sem Fronteiras. E nos levou até a sua casa tão nua quanto ela.

Ali dentro encontramos sua família acuada pela chuva. Dias antes eu testemunhara pai e filho, doentes, ararem a terra com um par de bois para plantar cebola num pedaço de chão tão pequeno que os olhos jamais perderiam de vista. Mas a água carregou o trabalho de dias, talvez semanas. E a água é como o tempo, o que carrega, carrega. Era preciso esperar a chuva passar e recomeçar. E se diluviasse quando a cebola estivesse lá, estaria tudo perdido, desfecho de mais de uma vez. E então haveria de se esperar e temer por mais um ano.

No interior escuro da casa era possível tocar o desespero contido transmitido de pai para filho. Mas também o amor pungente que unia aquela família, as duas meninas mais velhas acariciando a mãe doente numa cama, ajudando-a a vestir um casaco de lã fina para que sentisse menos frio do que elas, ajeitando as longas tranças negras raiadas de cinza e cercando-a para protegê-la de um mundo sempre tão hostil.

Mas havia mais ali. A língua deles é o quechua, um idioma e uma forma de ver o mundo que persiste deste o tempo dos incas, apesar da brutalidade da dominação espanhola e de um preconceito tão incrustado que nem mesmo Evo Morales conseguiu arrancá-lo. Nós precisávamos compreender ao entrar naquela casa com o respeito devido que aquela família agarrada a quase nada era amalgamada pela resistência. E me arrisco a dizer que ali a resistência se dá hoje mais pelo amor dolorido que sentem uns pelos outros e que os impele a se manter vivos. Sem este olhar amoroso que reconhecem nos olhos uns dos outros, haveria apenas invisibilidade, a morte antes da morte.

Perguntei ao avô de Érica, porque pai Érica não tem, o que havia para comer. Batatas. Só batatas. Há dias eu os via comer batatas cozidas na água. E nada mais. E reconhecia nos olhos febris de cada um aquela fome que não termina, que é a de todos os dias e dia após dia. Aquela fome que é assim. Você respira e sente fome. Você acorda e sente fome. Você dorme e sonha com fome. Você come a batata que lhe cabe e continua sentindo fome. Você não morre, porque as batatas não deixam. Você vive menos, bem menos, do que aqueles que têm além de batatas, mas vive. Com fome.

Este, porém, não era o drama envergonhado de Érica. Naquele dia ela estava mais séria do que nos anteriores porque sentia a gravidade que mantinha a família com os pés na terra. E sentia também a terra que teimava em escapar de debaixo dos pés. Érica tinha naquela segunda-feira algo de seu que precisava dizer.

A pequena nos rodeou, se torceu, acabou por esconder-se atrás da tia de 11 anos, talvez a mulher mais forte daquela casa. O que Érica poderia querer se precisava de tudo? Será que Érica desejava o que as crianças costumam desejar? Uma bala? Um chocolate? Uma boneca? Será que Érica queria comida? Ou dinheiro para ajudar sua família? Dólares para tapar a janela sem vidro por onde entravam seus medos mais reais.

Adivinhamos que ela nos pediria dinheiro porque viemos de uma cultura onde crianças desvalidas nos estendem a mão nos sinais de trânsito. Mas Érica só conseguia espichar sua voz balbuciante, que em seguida recolhia arrependida. Foram minutos, mas poderiam ter sido horas. Érica sofria com o que precisava fazer, mas não podia. E não pôde. Não foi ensinada a pedir, perdeu a coragem.

Nos preparávamos para partir quando Érica cochichou ao ouvido da tia que pedisse por ela. E então o drama clareou e nos jogou em outra espécie de escuridão.

Vermífugo. Érica queria vermífugo.

Enquanto Khadafi matava, o Japão tremia entre a realidade e a memória, Pinpoo voltava-se agora para os holofotes e Obama pronunciava outra meia dúzia de nadas na América Latina, Érica sofria de vermes. Talvez, como acredita Vânia, que é uma boa apalpadora de almas de criança, Érica desejasse aquele docinho do remédio para encantar sua fome.

Dois dias depois de deixarmos Érica e o seu drama envergonhado, Elizabeth Taylor, aquela que jamais morreria, morreu. Foi uma semana em que as tragédias sacudiram a rotina do mundo. Mas Érica só conhecia a dela, que não se alterava. E a dela era desconhecida de todos.

Alcancei o povoado de Érica com uma equipe dos Médicos Sem Fronteiras para contar uma outra história que vai virar um livro internacional. E fui capturada pelo pedido de Érica. Enquanto no mundo tudo acontecia, ali se desenrolava um tudo que é decodificado como nada. Bem ao nosso lado, a Bolívia é um país muito, mas muito difícil de entender. Diante de sua realidade complexa, aqui mesmo no Brasil, sobra gente intelectualizada e bem alimentada disposta a soltar risinhos a bordo de suas certezas de gabinete. Porque “ah, a Bolívia é tão atrasada”. E parecem acreditar que isso é um tipo de análise.

Em meio a tantos acontecimentos, Érica é só mais um desacontecimento. E é também assim que o mundo se divide. Entre o que acontece e todos veem, assistem, comentam, tremem e choram. E entre o que ninguém vê. O equívoco é acreditar que porque ninguém vê não existe.

Desacontecida, Érica existe. Desacontecida, Érica resiste junto com sua língua. Se este é um mundo tão pródigo em imagens, e estas são tantas vezes confundidas com verdade, Érica agora tem a sua. Documentada. Uma foto feita por Vânia Alves, de MSF. Esta é Érica, que neste exato momento, desacontece.

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(Publicado na Revista Época em 28/03/2011)

Último amor

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ana Cecília era linda, ele percebeu à primeira vista no primeiro dia de aula. Ana Cecília era linda e não era para ele, ele percebeu à segunda vista no primeiro dia de aula. Como um homem pode ter esta exata noção aos cinco anos de idade? Pedro Luiz tinha. Ana Cecília passaria o ano inteiro, a vida inteira, sem saber que ele, Pedro Luiz, existia. Ela na sua loirice de europeia lá do topo do mapa. Ele em sua morenice de índia com português metidos em suores tropicais — e algum parente do Kadafi pendurado num galho atravessado da árvore genealógica. Apaixonou-se possivelmente porque era impossível. Não há estatísticas confiáveis, mas todo primeiro amor é impossível. Para ser amor e ser primeiro precisa ser impossível. O dele era impossibilíssimo.

Ela dava estrelinhas como uma cheerleader americana no recreio. Ele ficava lá, desenhando dinossauros na areia. Ela desfilava abrigos Adidas e tênis All Star multicoloridos. Ele tinha ganhado um Adidas que fora um sacrifício familiar e envolveu até o cofrinho de porquinho da avó, mas sentira-se tão responsável por aquela Ferrari das roupas esportivas que cresceu antes que se autorizasse a usar. Ela beijava fotos dos Menudos, ele imitava Sidney Magal.

Mas Pedro Luiz amava Ana Cecília a ponto de fantasiar morrer por ela na hipótese de uma hecatombe nuclear. E um dia, ele nunca pôde ou quis esquecer, numa manhã ensolarada da primavera paulistana, Ana Cecília parou diante dele e estendeu a bola para que jogasse Queimada no time dela. Ele olhou para ela e a achou tão linda, mas tão linda, que ficou cego naquele instante. E mudo. Ana Cecília, com o narizinho petulante começando a tremular de irritação, ordenou que ele pegasse a bola. Mas ele só pensava: ela está falando comigo, ela está falando comigo, ela está meeeesmo falando comigo.

Pedro Luiz paralisou. Por amor. Por primeiro amor. E antes que conseguisse falar ou mover as pernas, ouviu Ana Cecília entregar a bola a um rival: “Pega você que este menino não entende nada, não sabe nem jogar Queimada. Ou é chato ou é retardado!”.

Depois de a vida toda passar pela sua cabeça como num filme ruim, bem ruim, e com a ajuda de um amigo fiel, Pedro Luiz conseguiu fazer suas pernas andarem até um canto do pátio da escola. E lá ficou todo para dentro como um tatu-bola. Pensando que sua vida nem tinha começado e já acabara. Mas, como todos os meninos, Pedro Luiz deu um jeito de seguir espichando e fazendo concurso de arroto e colecionando figurinhas e rolando com a cachorra no quintal. Um dia, quando se deu conta, tinha até um arremedo de bigode.

Esquecer, porém, Pedro Luiz nunca conseguiu. Ana Cecília determinara toda a sua vida amorosa dos cinco anos em diante. E Pedro Luiz continuou sem saber o que fazer a cada vez que se apaixonava. E seguiu sem conseguir se mexer. E se achando feio e desengonçado e moreno demais. E só achando a moça linda, tão linda. E demais.

Então, numa noite na esquina da Ipiranga com a Avenida São João, numa festa no Bar Brahma, Pedro Luiz viu uma mulher de minissaia, coturnos e cabelos curtos e pretos, dançando como se fosse uma autista. E amou. “Chega lá e fala com ela sobre a cena londrina”, intimou um amigo. “Ela com certeza conhece a cena londrina.” Mas Pedro Luiz só sabia ser ele mesmo. E não sabia onde ficava a cena londrina. Mas foi possuído por uma coragem tomada emprestada em quatro doses de uísque e foi dançando no seu estilo de lado, sapateando sem mexer os quadris nem morto, rumo à mulher dos seus sonhos. E quando estava chegando perto, quase lá, se atrapalhou com a beleza dela e virou o copo de uísque arruinando horas de produção da cena londrina. Ficou ali, de cabeça baixa, balbuciando um pedido de desculpas impossível de ouvir. E esperando a frase que todos ouviriam, acima dos decibéis do bate-estaca: “Este menino não entende nada, não sabe nem jogar Queimada. Ou é chato ou é retardado!”.

Em vez disso a mulher de minissaia e coturnos e cabelos curtos e pretos que na verdade eram pintados sorriu. E Pedro Luiz compreendeu que não entendia nada de primeiro amor, mas entendia de último.

Confissões de um pai temporão

Homem fica grávido de outro jeito – e também não é fácil

Deve ser culpa da faixa etária. Minha impressão é a de que estou cercada de barrigas por todos os lados. Depois de lidar com amigas grávidas das modalidades mais diversas – das militantes do parto natural às obstinadas pela cesárea, passei a ter uma solidária curiosidade pelos homens grávidos. Como deve ser tornar-se pai quando a sociedade e também as leis trabalhistas conspiram para fazer de você um coadjuvante? Aquele bebê só está lá naquela barriga por causa daquele pobre homem – e ninguém nem lembra. Reduzem-no a uma espécie de espermatozoide faz-tudo. Esperam dele que resolva todas as coisas práticas, da troca da lâmpada à pintura do quarto do bebê, porque elas, afinal, estão gerando. E por isso estão (mais) sensíveis e choronas e nessa fase todas as ofensas devem ser perdoadas como se fosse uma TPM de nove meses. E do pai da criança esperam ainda atenção, afeto, ouvidos, massagens nos pés e eventualmente trufas brancas do Piemonte na madrugada.

No meio dessa confusão, ele, no seu silêncio, precisa tornar-se pai sem poder confessar a ninguém que não tem a menor ideia de como fazer isso. Todos os cursos – pelo menos a maioria deles – são focados na mãe (eventualmente lhe explicam como ajudar na hora do parto ou pelo menos como não estorvar). Mesmo assim, este homem grávido comprou uma pilha de livros e tentará fazer o melhor possível. Mas, se parecer muito participativo, a mulher, a sogra e também as amigas vão reclamar que o fulano está achando que ele é quem está grávido. “Homens! Sempre tão fracos!” Se, ao contrário, ele tentar se manter invisível, pode ser acusado de omissão histórica. “Não adianta, filho é da mãe”. E assim caminha a humanidade, mesmo em tempos moderninhos.

Comecei a prestar atenção nestes espécimes esquecidos num canto do fascinante mundo da reprodução. E fiquei com vontade de conversar com um deles. Entre os homens grávidos que observo de perto neste momento, cinco se preparam para ter filhos entre os 45 e os 60 anos: dois jornalistas, dois cientistas (um biólogo e um físico) e um professor universitário. Convenci um deles a nos contar sobre dores e medos – e também sobre expectativas, alegrias e desejos. Ele demonstrou estar lidando bastante bem com as adversidades sociais – e também com as mudanças hormonais da parceira. Se a idade pode ser uma preocupação – e é, como veremos –, parece ajudá-lo bastante na hora de lidar com uma vida que chegará para mudar a sua para sempre.
Esta foi a nossa conversa.

– Você passou a maior parte da vida dizendo que não queria ser pai. Por que mudou de ideia? Ou, se não mudou, por que sentia necessidade de dizer isso?

– O que eu dizia é que ter filhos não estava na agenda e não era uma prioridade ou necessidade na minha vida. Acho que dava esta ênfase por duas razões. A primeira delas é que, como as mulheres “sempre” querem ter filhos, era melhor já ir preparando-as desde o início que comigo a coisa seria mais complicada. A outra é que somos educados para ter família e filhos. Nos libertarmos deste “trilho” exige, às vezes, exagerarmos no oposto. O fato é que eu mesmo não sabia se queria ou não ter filhos. A ideia de nunca ter filhos sempre me deixou muito inquieto. Mas não imaginava tê-los se não fosse com alguém com quem acreditasse que um filho pudesse ser um projeto comum. E esta talvez fosse a parte mais difícil.

Mais difícil do que imaginar ter filhos era – e sempre é – imaginar uma relação duradoura, estável, que “levasse” ao desejo de ter filhos. Outro aspecto é o tempo da coisa. Acho que estou tendo filhos na época certa. Corrijo: poderia ter tido com cinco ou dez anos menos, mas não antes. A razão é simples: o que eu queria fazer na vida – construir o meu espaço na minha área profissional, viver em diferentes países, viajar e me aventurar pelo mundo – não dava para fazer “em família”. E isso para mim era muito claro.

Por outro lado, acho que sempre me preparei para ter filhos. Sempre quis viver em torno de livros e, nos últimos dez anos, quando tive um pouco mais de dinheiro, comprei bastante. Muitos deles comprei sabendo que não leria. Eles comporiam uma espécie de biblioteca que eu gostaria de ter para quando tivesse de ajudar alguém – meu filho – a crescer. Poderia acontecer, ou não.

– Seu filho ainda não tem nome. Por que é tão difícil nomear um filho? O que é um nome, afinal?

– Pois é, eu nunca tinha pensado no assunto. Posso levantar várias razões. Uma, por exemplo, é o meu próprio nome. Um dos mais inúteis que conheço. Tenho um daqueles nomes que não é nome. Vira imediatamente apelido. Eu também nunca gostei de ser chamado pelo sobrenome. O cara do sobrenome é o meu pai, não eu. Os brasileiros têm o péssimo hábito de utilizar o sobrenome como forma de deferência. Eu sempre queria ser chamado pelo nome. Triste sina… Só consegui isso nos anos em que vivi no Exterior. Como meu nome era muito diferente nos países onde vivi, as pessoas acabavam me chamando por ele. Ao voltar para o Brasil, segui sendo chamado ou pelo apelido ou pelo sobrenome. Por isso, a escolha do nome é bem importante e difícil para mim.

Conversando com minha mulher – que me cobra o nome! – sobre o assunto, demonstrei a inutilidade do meu nome: perguntei quantas pessoas ela conhecia que eram chamadas por ele, apesar de ser o nome de muita gente. Resposta: nenhuma. No entanto, é um dos nomes mais comuns do Brasil. É tão comum que as pessoas preferem utilizar o segundo nome ou o sobrenome ou o apelido. A outra é que os meus apelidos, até os 18 anos, foram sempre pejorativos, relacionados a supostos defeitos físicos. Tenho procurado um nome que seja fácil e gostoso de usar, para diminuir a chance do apelido. Talvez se fosse menina seria mais fácil.

A outra razão da dificuldade de escolher um nome é a de que procuro um que eu identifique com meu filho. E como para mim – nós – a criança é realmente um projeto comum, gostaria que eu e minha mulher encontrássemos um nome que ambos identificássemos com o menino. Hoje, com a supertecnologia do ultrassom 3D já conhecemos até a carinha… Mas isso, a identificação, é provavelmente impossível.

Primeiro, identificação é algo muito pessoal, quase impossível de acontecer simultaneamente com o mesmo nome para os dois – e certamente não pelas mesmas razões. Além disso, eu e minha mulher somos muito diferentes. Recentemente, ela leu algo em um dos vários livros que estamos lendo. Que é melhor dar logo o nome porque ele sempre será estranho – e a identificação virá com o tempo e o uso. Acho que é por aí mesmo… Mas confesso que não entendo a urgência de dar o nome.

Como mulher, sempre me pareceu apavorante ser homem, no sentido sexual e reprodutivo. No sexual, porque nunca se pode fingir. No reprodutivo, porque eu acharia difícil acreditar que a mulher com quem eu estivesse tendo um caso ou mesmo uma relação estável estivesse fazendo tudo certo para não engravidar. Ela poderia “esquecer” de tomar a pílula, por exemplo, até inconscientemente. Esta possibilidade de botar outro ser no mundo por uma vontade alheia à minha sempre me pareceu assustadora. Enfim, a falta de controle dos homens sobre a reprodução. Como é isso para você?

– Ah, essa é fácil. Na questão sexual, eu considero o orgasmo superestimado. Para mim, o melhor método anticoncepcional sempre foi a criatividade. Acho que pude compartilhar isso com as mulheres que conheci. Costumava dizer que, se na primeira vez que alguém transa com uma mulher o sexo durou menos de cinco horas, então foi uma porcaria. Como é possível ter uma relação sexual com uma pessoa que não conhece na intimidade em menos de cinco horas? Não há a menor chance de conhecê-la! Sexo nada mais é do que parte do diálogo a dois. Então, essa questão de fingir ou não nunca me preocupou. E sempre procurei deixar isso claro para a parceira. O importante era nos divertirmos e nos conhecermos. E, muito importante, nunca terminar no orgasmo! Talvez por isso eu tivesse mais sucesso com as mulheres no depois do que no antes… (risos). Mas, muito mais interessante, é ficar brincando com o prazer.

Bom, quanto à questão da reprodução, não tive esse problema. Sempre li muito e sabia que reduzia as probabilidades de uma gravidez indesejada enormemente se usasse dois métodos anticoncepcionais ao mesmo tempo. E, em geral, sempre foi o que fiz, ambos sob o meu controle. Mas, para isso, a criatividade tem de estar mesmo funcionando. Então, o medo da gravidez nunca me preocupou. Nunca abandonei a premissa de ter o controle. Como disse, algumas vezes a parceira reclamava um pouco – “se entrega, etc…”. Mas sempre achei que tudo se resolve com criatividade.

De novo, como mulher, sempre me pareceu muito difícil ser homem e “estar grávido”, exatamente por estas aspas. Você é pai, aquele feto só está naquele útero por causa de você também, mas é como se a sua participação fosse menor. E, de novo, você fica nas mãos de outra pessoa, que, quando você tem sorte, é a mulher que você ama. Mas, ainda assim, você está à mercê de uma outra pessoa que pode ou não cuidar bem do filho que também é seu, mas que está dentro de um outro. E de alguém que às vezes fica meio pirada na gravidez. Como é isso para você?

– Não tenho nenhum dilema com isso. Em parte porque sempre procurei me dissociar da ideia de “o filho pertencer aos pais”. E também porque a adoção sempre esteve na agenda, caso a decisão de ter filhos fosse tomada. A gravidez, claro, é parte do processo, caso esta for a via de ter filhos. E eu procuro participar ativamente. Mas não tenho nenhum problema quanto à minha participação e tal, talvez porque procure pensar na criança como um ser próprio e dissociar essa “ligação genética”. Nunca gostei da ideia de “me parecer com fulano” ou coisa assim. Como no nosso caso o projeto é realmente comum, a participação e cuidados com a gestação têm sido de ambos e acho que está funcionando. Claro, às vezes a gente tem vontade de dar uns cascudos pela teimosia, especialmente com relação à alimentação, mas em geral tem corrido bem. E não, não sinto falta de estar grávido de fato.

– E então tudo que é também você e veio de você se desenvolve num mundo que é dentro dela. E você pode no máximo falar com a barriga, mas você não sente seu filho se movendo dentro de você, se alimentando de você. Pode ser um alívio, mas me parece que para muitos homens não é. Você inveja essa relação que, neste momento específico, só pode acompanhar como coadjuvante?

– Novamente, não. Tenho procurado falar com o bebê, participar e tal. Hoje sabemos que o bebê acostuma-se com a voz. Ele terá necessariamente uma ligação mais forte com a mãe, a quem conhece e cuja voz ouve o tempo todo. Mas procuro fazer com que ele conheça também a minha. Claro, ele não tem memória nem rede neural propriamente formada para saber o que está acontecendo, mas tem o suficiente para estabelecer a identificação depois do parto. E isso é importante para ele, para se sentir seguro depois de nascer. Procuramos fazer isso juntos. E, claro, a mãe sempre será mais próxima nesse estágio. Mas isso para mim é tranquilo.

– Você gostaria de parir?

– Não. Mas, se fosse possível, acho que me ofereceria neste caso. Explico: faremos de tudo para termos um parto natural, o que hoje é uma verdadeira façanha no Brasil, embora seja corriqueiro na Europa, onde vivi boa parte da minha vida adulta. Acredito que eu seja mais resistente à dor do que ela – ou pelo menos acho que sou, já que sofri muitos acidentes e cirurgias e longas recuperações. Minha mulher não. Por isso, acho que teria condições de passar pelo processo com mais segurança. Então, se fosse possível, eu faria essa parte. Mas só por isso. Mas vamos entender bem: não abro mão de estar participando tão ativamente quanto possível do parto. O parto é nosso – mas sem ilusões quanto à extensão do meu papel.

– E depois, aquele bebê nasce, mas ainda é a mulher que o alimenta. Ainda é “dela”. Você é um coadjuvante – e às vezes mal falado – que não é reconhecido nem pelas leis trabalhistas, que dão apenas cinco dias para o pai e quatro ou seis meses para a mãe. Como é ser tratado pela natureza e pela sociedade como coadjuvante naquilo que talvez seja a realização mais importante da sua vida?

– Ah, isso sim. É necessária uma lei de licença paternidade decente. Sou fascinado pela Suécia. Ou pela minha imagem da Suécia. Nem sei se é isso mesmo, mas ouvi falar que lá a licença é de um ano, podendo ser dividida entre o casal, como quiserem. Mas meu tipo de trabalho e a minha situação profissional me permitem dedicar um tempo decente à paternidade. E tenho a firme intenção de realizá-la. Espero participar tanto quanto possível. Não posso amamentar, mas certamente o resto todo eu posso. Agora, a lei brasileira é ridícula, como muitas leis neste país são. Como tive um cargo de direção, vivi a experiência de discutir com sindicatos. Nunca vi eles solicitarem licença paternidade – já a extensão da licença maternidade, sim. Sempre pediam creche e tal – e também esqueciam de dizer que devia valer para aos pais também. No meu caso, era a direção que insistia para incluir os pais. Então, não é um problema da lei brasileira, mas da sociedade brasileira. Do machismo que permeia fortemente ainda a nossa sociedade, mesmo entre os que se acham “esclarecidos” ou “na vanguarda”…

Novamente, meu status profissional me permite contornar parcialmente isso. Sempre quis que fosse assim. Por isso, ter filhos era algo a ser muito pensado e cuidadosamente esperado. Não podia ser feito na época em que meu trabalho era mais intenso. Ou na época em que tive de viver uma outra vida. Cada coisa no seu tempo. Estar agora com minha parte profissional bem resolvida é muito importante. Claro que poderia ter acontecido também em outra época. Seria mais caótico, mas a vida é o que ela é e o que a gente vive, não o que a gente planeja – ainda bem! Então, de uma forma ou de outra, acho que seria assim mesmo, com grande participação. Ou, com certeza, exceto onde a natureza impede, com igual participação. E sempre procurando compensar os limites impostos ao homem pela natureza.

Veja, eu sou excessivamente preocupado com a inteligência, com a consciência, com o cérebro. Hoje sabemos que o código genético não é capaz de determinar a rede neural. Isso significa que, mesmo que dois gênios tenham um filho, o que não é o nosso caso, ele não será um gênio por causa disso. Essa parte é amplamente influenciada e determinada pelos estímulos externos, em todas e em cada fase da vida. Minha maior preocupação é justamente estar amplamente presente em todas essas fases. E isso eu acho que posso. E será algo a dois, três… muitos participantes.

– É muito difícil aguentar uma mulher grávida? Quais são as suas estratégias?

– Acho que cada caso é um caso. Não tivemos muitos problemas. O maior, acho, foi a dificuldade de a minha mulher aceitar a redução de sua capacidade de trabalho e aceitar que não poderia fazer todas as coisas como antes. Não havia nenhum problema em ampliar minha participação nas tarefas caseiras, que normalmente já são meio a meio, para deixá-la mais concentrada em “carregar o bebê”. Mas, fora isso, não foi complicado. Ah, sim, há sempre uma preocupação de querer saber se o bebê está bem… ambos temos essa preocupação. E, com as nossas idades, isso pesou. Mas, estratégia mesmo, acho que nenhuma. Não lido como se fosse uma situação ímpar. Assumo as outras tarefas com mais empenho, para compensar o fato do que não posso fazer: estar grávido. Mas não acho que tenho de tratar como se fosse uma situação excepcional, no sentido das carências. Tenho ou procuro dar atenção a isso, mas sem exageros.

– Como é o sexo na gravidez? Dizem que as grávidas ficam mais interessadas, é verdade ou é lenda urbana?

– Bem, só acredito em estatísticas… e não acredito que poderei ter uma amostragem pessoal suficiente nessa área (risos). No nosso caso, não fez muita diferença. Exceto, é claro, a limitação física e os cuidados para não machucar o bebê. Confesso que tenho uma grande preocupação em não machucá-lo, embora toda leitura garanta que não há motivos para essa preocupação. Acho que estou lendo demais sobre bebês…

– O que você pensa quando olha para a sua mulher, toda enroladinha no sofá, conversando com seu filho dentro da barriga como se você não existisse?

– Normal. Mesmo porque muitas vezes nós dois conversamos com o bebê. Como já disse, acostumá-lo com a minha voz também é algo que julgamos importante. Então, eu falo também com o bebê, sempre que posso. Bem, às vezes ela se esquece do resto do mundo – por exemplo, no meio do almoço em um restaurante… Aí fica meio exótico… Mas, nos dias de hoje, com celular com fone de ouvido, ver alguém andando e falando sozinho na rua, no shopping, virou uma cena corriqueira… Então…

– Como você acha que sua mulher enxerga você? E por que ela escolheu você para ser pai do filho que desejava ter?

– No nosso caso, ela não tinha muita escolha por causa da idade. Ou era eu ou não era. (risos) Acho que ela gosta porque sou um homem participativo. Talvez até demais, não sei ao certo. A escolha dela – e não só dela, porque essa questão permeou todas ou quase todas as minhas outras relações – de me ter como pai do seu filho vem da estabilidade emocional, financeira, intelectual, etc. Acho que as mulheres – a atual e as ex – veem em mim uma certa segurança para a maternidade que consideram importante. E também percebem a minha tranquilidade. Não falo alto nem perco a calma facilmente. Isso deve contar. É o que imagino – e tenho ouvido.

Mas acho realmente que a escolha foi muito mais dela querer ser mãe. Sinceramente, acho que, nesta hora, o pai não é tão importante para a mãe. É, claro que é, mas vem depois da escolha de ser mãe. Muito diferente de mim, que primeiro achava que tinha de ter a parceira e encontrar uma identidade suficiente para só então considerar a possibilidade de ser pai. Acho que aí está a principal diferença entre quem realiza a gestação e quem assiste a gestação – assistir no sentido de dar assistência.

– Saber que vai ser pai mudou o que na sua vida? Você sente que é outro?

– Totalmente. Foi uma escolha de curso de vida. No estágio em que eu estava, concluindo uma etapa da minha vida profissional, existiam várias opções. Fazer um sabático em outro país, buscar novos caminhos, etc. A escolha foi ser pai. E isso determinou muitas coisas. Não elimina outras atividades, é claro. Mas determina a prioridade. E, considerando meu tipo de trabalho, que requer muito de mim, isso impõe restrições a outras atividades. Pelo menos vejo assim e acho que no início estou pronto para que seja assim. Ou seja, investir em um grande projeto profissional ou algo equivalente só depois de a paternidade se consolidar, isto é, só depois de saber quanto tempo terei para me dedicar à pesquisa. Veja bem, não estou abdicando. Apenas estabelecendo a prioridade. Um privilégio da idade, claro.

– Você tem medo de ser pai? Imagino que qualquer homem saudável tenha…

– Não gosto da palavra “medo”, mas vamos utilizá-la. Sim, sempre se tem. Cada filho é um “experimento” único. Não dá pra refazer. Mas tenho bastante confiança no que posso oferecer. Então, confesso que não tenho tanto medo assim.

– O que mais dá medo ao pensar em botar um filho no mundo?

– Minha maior preocupação sem dúvida é se serei capaz de oferecer a ele os instrumentos necessários para que possa ter a sua vida, vivê-la em sua plenitude. Explico. Estamos num mundo globalizado. E minha profissão é totalmente internacional. O que me leva a ver as coisas de forma mundial. Nós estamos em um país com sérias deficiências sociais em todas as áreas. Por exemplo, a escola pública, aquela que permite realmente uma formação ampla, em termos intelectuais, sociais e psicológicos… é um desastre no Brasil. A escola privada não melhora tanto assim a parte intelectual quando pensamos em termos internacionais e falha completamente no social. Espero poder compensar isso, mas não tenho ilusões. Sei as enormes diferenças entre o que posso oferecer aqui e o que poderia em um país desenvolvido. E essa diferença é uma das coisas que mais me preocupa.

A outra, sem dúvida, é saber até onde vão os limites da educação sem desrespeitar a individualidade dele. Ele terá sua vida e a viverá. Sei disso. Mas temos a forte tendência de viver a vida da pessoa que amamos. E de senti-la também. Mas sentimos como sentimos nós e não como ele sente, e aí começa o problema. Vou sentir certas dores que não são dores para ele, mas opções. O quanto saberei respeitar isso ou, mais difícil ainda, o quanto poderei distinguir o que é respeitar e o que talvez seja leniência – ou, ao contrário, na situação oposta, autoridade excessiva. Isso é o que mais me preocupa. Sei que não há resposta para isso, ela será construída no cotidiano. Sei que meu filho não será eu – e isso nunca imaginei que fosse nem quero. Mas ele poderá ter não só opiniões diferentes, mas até mesmo uma outra ética. Aceitar isso… não deve ser fácil para ninguém.

– Eu gostaria de insistir um pouco mais em saber qual é seu maior temor ao ter um filho…

– Tentarei então resumir. Acho que o maior temor é deixar meu filho passar por/fazer algo que depois ele se arrependa, mas que deixe marcas irreversíveis – e eu não consegui impedir que acontecesse. Ainda sabemos que o que se inculca numa criança fica provavelmente para sempre – e ela terá enormes dificuldades para contornar/superar mesmo que deseje ou tenha instrumentos para fazê-lo. A responsabilidade é enorme. Não gostaria de “marcá-lo” com nada que não sejam valores universais. Mas nem sabemos o que é isso direito. E será isso suficiente? Então, é difícil achar o equilíbrio entre aquilo que deve ser transmitido e aquilo que apenas devemos nos esforçar para prepará-lo para buscar suas próprias respostas. Não é fácil.

Outra coisa seria a morte. Uma das maiores sacanagens nas histórias pessoais é um pai e uma mãe terem de enterrar os filhos. Mas conto com minha idade para que isso não aconteça (risos).

Ter um filho é escolher uma relação que, mesmo que um dia você queira, jamais será rompida. Pode existir pai canalha, filho psicopata, mas não existe nem ex-pai nem ex-filho. Pai é para sempre. Filho é para sempre. Isso é assustador?

– Sem dúvida. E no meu caso mais ainda. Com a idade que eu tenho, uma das coisas que mais pesava na decisão de ter filhos é que ele realmente seria pra sempre! O que também significa que ele terá um pai velho muito cedo, e isso me preocupa por ele. Não será bom para ele. Farei o possível para retardar essa decadência física e mental me exercitando e me alimentando bem, mas acontecerá. E cedo, para ele. Mas, no meu caso, vivi minha vida em grande plenitude – pelo menos eu acho isso – e agora posso me dedicar a ter um filho – mesmo para sempre… Atenção, não estou abdicando do resto. Apenas sei que não exercerei as outras opções da vida com a intensidade que fiz até agora.

– Acho que a gente sempre tem medo de falhar, em tudo na vida, até nas mínimas coisas ronda este fantasma de não conseguir. Você teme falhar como pai?

– Não sei se isso seria falhar como pai, mas acho que sim. Meu temor é não poder dar a ele as condições que ele precisa para enfrentar a vida. Em todos os sentidos: afetivo, segurança, formação, etc. E, ao mesmo tempo, tentar evitar ao máximo a necessidade que todo o filho tem de “matar o pai”. Bem, acho que é impossível evitar isso simbolicamente, né? Ser pai sem ser excessivamente pai ou ser pouco pai, impossível acertar, mesmo porque não existe um acertar. Sim, acho inevitável ter essa preocupação… que nos ronda o tempo todo.

Por outro lado, aprendi a viver com meus erros. Ao dirigir uma grande empresa de pesquisa de ponta, com mais de 100 funcionários, eu sabia que erraria, e tinha de lidar com isso sem deixar de continuar a fazer o meu trabalho. E às vezes nem mesmo sabemos quando erramos porque simplesmente precisamos fazer escolhas. E em cada decisão há sempre o risco de que, embora a escolha que fazemos pareça a melhor, a prática mostre que não seja. Com certeza, sendo pai, isso também acontecerá. O tempo inteiro. E isso não é fácil, mas terá de ser vivido.

– Qual é o seu desejo para este filho? Mesmo que você se prepare para respeitar os desejos futuros deste filho, nenhum filho existe sem que antes exista o desejo dos pais. Qual é o seu desejo de pai para este filho?

– Que ele adquira os instrumentos necessários para viver plenamente a vida. E isso significa também que ele possa se libertar da família e da figura paterna quando julgar necessário. E tenha os instrumentos para enfrentar um mundo cada vez mais dinâmico e incerto. Que viva sua vida. E gostaria que, quando adulto, possamos ser amigos – se eu já não estiver senil, claro.

– Foi importante saber que era um homem? Seria diferente se fosse uma mulher?

– Sim, seria. Mas não no sentido de gerar um filho como eu. Realmente, essa percepção eu não tenho. Não sei como será se ele se parecer comigo, mas realmente não procuro nem imagino essa identificação. Quando imagino meu filho, realmente imagino muitas coisas, mas certamente não o imagino sendo como eu. Além do mais, as situações que ele viverá serão tão diferentes das que vivi quando criança que não vejo como poderia haver esse tipo de identificação – espero que a genética não me surpreenda! Conto com o “nurture” para se contrapor ao “nature” – ou melhor, que a criação/educação se contraponha à natureza.

– Nós, que estamos entre os 40 e poucos e os 50 e poucos fomos gerados com uma grande expectativa para o futuro. Agora, geramos filhos para um futuro que vislumbramos com aquecimento global, mudanças climáticas catastróficas, acidentes nucleares e até o suposto fim da espécie em algum ponto lá na frente. Não parece ser um futuro muito interessante para oferecer a um filho. Isso te preocupa?

– Esta, sem dúvida, é uma preocupação. Mas não tanto. Mais que isso, é a dinâmica da sociedade, em muito devido ao forte componente da tecnologia de comunicações. Isso exige uma adaptação do indivíduo quase permanente, algo que nunca foi testado – ou melhor, não evoluímos dessa forma. Muitas das nossas adaptações revelaram-se úteis para outras coisas que surgiram ao longo dos tempos. Talvez tenhamos a necessária maquinaria para enfrentarmos isso também. Mas não sabemos ainda. Do ponto de vista antropológico, é muito interessante. Do ponto de vista de um pai pode ser preocupante. Mas não mais que isso. As questões climáticas e outras virão lentamente. A vida continua e nos adaptaremos. Não acho que isso seja um problema. Do contrário estaríamos optando por terminar com a espécie, algo que não acho interessante. Ainda produzimos coisas bem instigantes… Por outro lado, talvez tenhamos hoje muito mais consciência de que é necessário espaço para todas as espécies, se quisermos que elas sobrevivam à nossa presença, e talvez possamos construir algo melhor. De qualquer forma, é impossível prever algo, ainda mais nos dias de hoje.

Olhando friamente, acho o passado mais preocupante – se tivesse que vivê-lo – do que o futuro… Veja, há um século a expectativa de vida no Brasil estava em torno dos 45 anos, hoje é de uns 73… No mundo todo, em geral, vive-se melhor. É fato que temos problemas sérios e novos pela frente, mas acho que a bonança só ocorreu mesmo entre os anos 60 e 80. E isso talvez tenha marcado a geração de nossos pais e a nossa. Mas, se olharmos para trás, as coisas nunca foram fáceis.

A vida continua. Outros desafios, novos conhecimentos. Adoraria estar aqui daqui a 100, 200 anos nem que fosse apenas para aprender o que saberemos… não espero que a civilização ande para trás, globalmente falando. Pelo menos não nesse curto tempo da vida do meu filho.

– Há muitas críticas com relação à educação atual, especialmente a de que estamos criando pequenos déspotas que mandam em pais infantilizados. Como você vê isso? E como pretende educar seu filho?

– Sim, acho que cometemos sérios erros. Mas não para se voltar ao que era antes – e o que era? Sinceramente, tenho a esperança – ilusão? – de ser amigo de meu filho. E é como pretendo criá-lo. Mas não sei exatamente o que isso significa. Essencialmente, ele tem de sentir que tem uma proteção/segurança em mim. E que, por um tempo, pelo menos, eu tenho algum conhecimento que ele pode aprender, usufruir. Mas… naquilo que for irreversível – drogas, legais ou ilegais, crack, por exemplo, etc –, acho que imporei uma autoridade definitiva baseada na seguinte premissa: o que for irreversível – dano cerebral irreversível –, enquanto puder eu impedirei. Depois que ele for adulto, quando ganhar a vida com seu dinheiro, aí eu estarei ao lado para ajudar se necessário. Mas deixarei essa autoridade de lado. Complicado. Espero que isso possa ser resolvido com diálogo, compreensão, entendimento… mas sei que tudo pode acontecer. E sei que saberei da vida dele… alguma coisa, não mais.

– O que é ter um filho para você?

– Não sei se sei responder. Certamente, é o início de uma grande aventura, de longo prazo – para sempre, né?! –, que exigirá muito de mim, em todos os aspectos. Mas não saberia dizer mais do que isso. Sinceramente, não vejo em um filho a minha continuidade… acho que trabalhei muito essa questão e realmente sinto que, para mim, a continuidade, se isso quer dizer algo, estará em tudo em que estive, trabalhei, etc. Não tenho a preocupação de ter essa expectativa para meu filho. E acho isso positivo. Principalmente se ele perceber que não espero dele outra coisa que não seja que ele viva sua vida. Meu filho será alguém a quem poderei tentar dar tudo o que sei. Mas ele aproveitará só o que quiser.

– O que é ser pai para você?

– Acho que será algo fascinante. Único. E fará a vida extremamente interessante e rica. Um aspecto ainda não vivido. Espero ser bem sucedido em enriquecê-lo com minha experiência, ajudando a abrir caminhos para ele. Mas ser pai também é ser companheiro. É um projeto a dois, e certamente para mim, ser pai sempre foi também ganhar uma outra dimensão na relação com minha mulher. Um fascínio a mais. E acho que isso já estamos conhecendo.

– Como você se prepara para ser pai?

– Como disse antes, eu acho que sempre me preparei. Sempre imaginei transmitir tudo o que sei e tenho para alguém. Mas, mais especificamente, lendo, abrindo espaço temporal na minha vida para ele, procurando desenvolver um ambiente de amor e tranquilidade em casa. Procuro ler muito. Tenho acesso à literatura e, pela profissão, lido bem com o jargão científico. Hoje sabemos muito como funcionamos. Espero que isso ajude.

Posso acrescentar uma síntese do que é ser pai?

– Pode, claro.

– Hoje, sabemos que o DNA não possui informação suficiente para formar a rede neural de uma pessoa. Ela é formada a partir de um primeiro input genético, pelas interações do indivíduo com o meio, começando já na gestação e indo até o início dos nossos 20 anos. Bem, ainda sobra alguma coisa, mas o essencial aconteceu neste período. Por isso somos indivíduos únicos, somos a nossa história. Acho que ser pai é criar e oferecer as melhores oportunidades para que o filho possa viver a sua história – uma história rica, intensa, vivida em toda sua plenitude. Ser pai é ser um guia, um instrutor, que aos poucos vai deixando-o cada vez mais senhor de sua própria história. Até que, lá pelos 20 anos, esse “mestre” possa se transformar em um amigo, talvez até parceiro dessa história – mesmo que distante, como observador, o que for. E sempre um referencial, como todo “mestre”, no qual ele possa se inspirar ou buscar uma “presença”, se necessário.

– E como você vai criar seu filho para ser homem numa época em que não se sabe muito bem o que é ser homem ou que se pode ser homem de várias maneiras?

– Bem, eu acho que sei o que é ser um homem moderno… (risos) Lembro que na época da graduação, por ocasião da leitura de um livro italiano que eu tinha introduzido no nosso meio de estudantes de esquerda que ainda tinham a ilusão de propor uma nova sociedade, com novos papéis para o homem e a mulher, as feministas do grupo procuraram definir quem, entre nós, era aquele que mais se aproximava do que elas consideravam o “novo homem”. E apontaram um colega que ainda não tinha se assumido plenamente como gay, mas que era e assim que lhe foi possível assumiu e hoje está casado com outro homem. Bem, isso foi no início dos anos 80, em uma certa vanguarda. Acho que ainda não se sabe o que é o novo homem, mas não se saberá se não soubermos também o que é a nova mulher. E esta também é uma questão mal resolvida.

– O que você sentiu quando soube que seria pai? E o que sentiu quando viu a imagem no ultrassom?

– A gente teve que planejar. Idade… sabe como é. Então, foi um alívio saber que dava para engravidar e deu. Mas acho que o grande momento foi o ultrassom. Você vê, e é aquela coisa, ver para crer, não sei. Talvez o visual seja muito importante para nós humanos. O fato é que vê-lo pela primeira vez no ultrassom foi algo muito emocionante, inesquecível. Acho que parte daquela sensação de antigamente de vê-lo pela primeira vez no nascimento foi sentida ali. Bem, tenho de esperar nascer para daí ver como fica… comparar, etc.

– No que você quer ser diferente, como pai, do seu próprio pai?

– Hum… não penso muito nesses termos… acho que procuro mais é o que tive, que foi muito importante para mim e que gostaria de dar também. Por exemplo, sempre tive muito orgulho dos meus pais, do trabalho deles, da forma como viam suas vidas e carreiras. Da forma como lidaram com a época política da ditadura, da sua integridade. Nascer cercado de livros… lembro que, pré-adolescente, não tinha o que fazer nas longas férias de verão e meu pai me deu para ler um livro sobre os grandes cientistas, depois sobre os grandes estadistas… aquilo sempre foi muito forte para mim. Ler. A generosidade foi uma característica dele que eu sempre senti muito forte e me marcou.
Diferente? Meus pais não tiveram as oportunidades que eu tive. Mas permitiram que eu as tivesse. Tenho uma visão cosmopolita, uma vida bastante internacional. Acho que posso oferecer isso a mais. Mas vejo isso como uma continuidade. Talvez o lado mais “hereditário” que sinto, de passar de geração para geração, seja este: o conhecimento que se adquire, se acumula, se amplia.

Mas acho que a grande diferença é a proximidade, mais em nível pessoal. Para meu pai, por diversos fatores, isso sempre foi mais difícil. Acho que será mais fácil para mim. E, novamente, por estar no atual estágio de carreira/vida, posso me permitir e espero estar mais próximo do meu filho, em todos os instantes. Aiaiaiaiai… e se ele odiar isso?!

(Publicado na Revista Época em 21/03/2011)

Osvaldinho Tripé

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Todos os nomes, personagens, eventos e circunstâncias desta crônica são fictícios. Qualquer semelhança é vil coincidência.

Há poucas coisas que jornalistas reclamam mais do que cobertura de Carnaval. Eu, ao contrário, cobri o carnaval riograndenortino por mais de uma década e até gostava. Talvez porque tenha tido uma estreia um tanto heterodoxa. Graças a um folião que muito, muito mais tarde, se imortalizou como Osvaldinho Tripé.

Havia na capital do Rio Grande do Norte, que aqui nesta crônica não chamaremos de Natal, um baile famoso pela putaria. Chamava-se, singelamente, de Baile do Taiti. Uma espécie de evento pré-carnavalesco. Antes de chegarmos aos acontecimentos propriamente ditos, é preciso compreender o modus operandi da tradicional sociedade riograndenortina. Depois das festas natalinas ou assim que os pimpolhos se livrassem das recuperações escolares, as famílias de classe média rumavam para praias de mar aberto para descansar passeando nos shoppings e supermercados onde com sorte sempre poderia aparecer uma marca nova de sabão em pó.

Os maridos, coitados, permaneciam labutando num calor que por esta época às vezes acontecia de superar os 40 graus. Tratava-se de casamentos bem tradicionais, cada um entenda o termo como quiser, e era com estoicismo que os abnegados senhores resistiam em ficar longe de suas esposas e crianças sempre tão encantadoras. Mal viam a hora de segui-los para se empapuçar de cerveja e jogar as latinhas na areia enquanto falavam que a praia decaíra muito, com hordas de farofeiros desembarcando dos ônibus a cada final de semana. E isso tudo aconteceu muito antes da ascensão da Classe C.

Digo isso para que os leitores possam compreender que ninguém poderia culpar esses pobres viventes de, no deserto escaldante e solitário, se refrescarem um pouco no Baile do Taiti. “Vou ter de ficar na cidade mais um pouco, Mãezinha”, era a frase padrão. “Mais uma ou duas reuniões e eu fecho o negócio. Logo logo estou aí com vocês. Não vejo a hora!” Ou, em versão truculenta: “Porra, criatura, tu não vês que estou trabalhando enquanto tu estás com a bunda de fora aí na praia?” As variações são infinitas. O fato é que na época do Baile do Taiti a população masculina da cidade que não é Natal superava em muito a feminina, pelo menos a feminina composta por esposas com registro em cartório.

Coube a mim a missão de cobrir o evento que abriria de vez, escancararia até, a folia de Momo na capital do Rio Grande do Norte que não é Natal. O editor acreditava que eu possuía nos meus olhos míopes certo viés antropológico. E lá fui eu, bastante empenhada em enxergar a notícia, mas logo deparei com o primeiro de muitos obstáculos. Era difícil enxergar a notícia na escuridão.

O baile se espraiava por grutas e cavernas, tais quais existem no Taiti real, como jurava o organizador do evento, e eu por mais que apertasse os olhos e desembaçasse os óculos só conseguia avistar um movimento frenético. Ao me aproximar, porém, nem sempre conseguia saber onde se encontrava a cabeça do entrevistado, o que me rendeu alguns constrangimentos para sempre lembrados por colegas sem compaixão por pobres focas em ambiente hostil. Esta parte eu considero uma injustiça, porque não era falta de experiência, como me acusaram depois. Como eu poderia saber que uma bunda poderia chegar àquela altura, afinal? E que aquela outra coisa, deus me livre, não era o microfone do colega da Globo? Como prezo pela honestidade, especialmente naquilo que é escrito, preciso admitir que só notei o engano ao não receber resposta alguma depois de repetir por três vezes a pergunta. E eu só tentava saber se estavam se divertindo no baile! Custava?

Em seguida percebi que sendo uma repórter de 22 anos tentando estabelecer contato, o melhor teria sido ir fantasiada de Robocop, apesar da pouca afinidade com o tema central. Em pouco tempo eu já tinha descoberto uma vocação insuspeitada de contorcionista. Mas, repórter intrépida que sempre fui, fiz lá o meu trabalho da melhor forma possível. E o fotógrafo, muito, mas infinitamente mais feliz do que eu, fez o dele.

E aí é que chegamos ao ponto depois de algumas digressões necessárias. Estampado na capa do jornal, lá estava o sujeito, sem camisa e com um belo colar taitiano no pescoço, com duas taitianas típicas no colo, que brincavam de deixar manchas de batom. O passatempo, garantiu-me o organizador do evento, é muito difundido naquela paradisíaca ilha da Polinésia francesa e brinca-se totalmente sem malícia. A favor do editor, eu posso afirmar em juízo que era uma das poucas fotos publicáveis num jornal de família como era o Meia-Noite.

Ao comprar o periódico na banca do supermercado da pujante praia de Canoa Furada, porém, a esposa do sujeito teve outra interpretação. “Não é o Osvaldo, não, imagina. Este aqui é muito mais gordo”, apressou-se a dizer uma amiga. “É óbvio que não é ele, olha bem para este nariz de batata”. E foram saindo para a esquerda, como o leão da montanha, com pressa de ligar para seus próprios maridos.

A pobre esposa do Osvaldo, sim, porque não havia dúvidas de que dele se tratava, como mãe extremada que era, tratou de comprar o maior número de exemplares possíveis e explicar às crianças que o papai ainda estava na capital riograndenortina porque enfrentava problemas com um sósia que andava se passando por ele e causando constrangimentos. Que mulheres de Atenas, que nada, as da cidade que não era Natal tinham elevado o patamar da categoria.

Osvaldo, obviamente, como todo canalha que se preze, jurou pela própria mãe que não era ele. A certa altura acho mesmo que deve ter acreditado que não era ele. E, depois de passar o verão de castigo no clube da cidade que não era Natal, arrasado por não poder se empapuçar de cerveja na areia nem balançar a pança em partidas de futebol para depois se empapuçar de cerveja de novo, acabou perdoado. Em algum momento, com a ajuda das amigas, que por acaso tinham maridos que também haviam ficado na cidade na boa companhia do Osvaldo e não pretendiam investigar coisa alguma, a esposa acabou acreditando que não era mesmo o “seu” Osvaldo. “Imagina se o Osvaldo botaria gel no cabelo, justo o Osvaldo que é tão certinho!”

Foi assim que minha estreia rigorosamente jornalística no baile do Taiti não acabou com casamento algum nem com máculas – graves – na minha carreira. Muitos anos se passaram, para o meu alívio surgiram coberturas mais instigantes e acabei me tornando uma repórter com boa reputação e tudo o mais. E lá estou eu em mais um plantão carnavalesco – na minha vida foram 11 no total –, quando sou abordada pelo homem esbaforido, suando em cascata com um jornal na mão, parar bem na minha frente.

— Porra! Vocês querem me foder? Querem acabar com o meu casamento? É este o objetivo de vocês? Se for, diga logo porque eu vou começar a arrebentar esse pasquim agora!

E já ia virando uma cadeira no chão, quando eu o agarrei pelo braço e disparei meu olhar mais ameaçador dizendo: “Não me obrigue a chamar a polícia”. Naquela época, trabalhar em jornal era uma diversão. Não havia a segurança de hoje, e o povo ia mesmo até onde os jornalistas estavam. E vice-versa. Não passava dia sem que houvesse uma invasão das ruas, em geral hilária. Toda Páscoa, por exemplo, aparecia por lá o homem do Santo Sudário. E toda Páscoa nós examinávamos a relíquia legítima e dávamos nossos palpites e às vezes até aparecia um especialista. Agora, não. Trabalhar em redação virou um tédio, com a rua barrada na porta.

Mas esta é apenas uma digressão. Mais uma. Acho que estou ficando velha e nostálgica. O fato é que, sozinha ali no meu plantão, eu pedi calma ao homem fora de si. Tenha calma, por favor, que eu nem sei quem é o senhor. Eu sou este infeliz aqui. E atirou o jornal na minha mesa com estardalhaço. Olhei bem a capa. E não é que era ele mesmo?

Lá estava Osvaldo, bem mais jovem que o da minha frente, lambuzando-se no Baile do Taiti. Hum…. eu fiz. É o senhor, então. Olhei a data na foto. Conferia. Dez anos depois, Osvaldo estava de volta à capa do jornal ilustrando uma reportagem que anunciava o Baile do Taiti marcado para aquela noite.

Ofereci uma cadeira ao Osvaldo. Busquei um café. Perguntei se queria com açúcar ou adoçante. Tentei em vão explicar a ele como os arquivos dos jornais funcionavam. Uma vez no arquivo, havia sempre a possibilidade de a foto ser usada novamente, com a data devidamente registrada, como ele poderia conferir ali naquele cantinho, em letras bem miúdas. E a mesma data também poderia ser conferida por sua esposa amantíssima. Como ele seguia furioso, engrossei: “Eu estava lá e sou testemunha de que o senhor fez questão de posar para esta foto. Lembro que pediu para botar as mãos bem aqui, ó!”.

Osvaldo começou a chorar como um bebê na minha frente. E agora ele era um homem quase velho, cabelos ralos e barriga cultivada em muitos verões em Canoa Furada. “Foi uma bobagem! Será que eu vou ter de pagar por uma bobagem de juventude pela minha vida inteira?” Fiquei com pena. Eu sempre fui assim, toda penalizada. Afinal, se a mulher tinha querido acreditar nele e seguir com aquele casamento do jeito que dava, eu não achava justo ele estar lá estampado dez anos depois.

Pedi uma licencinha e desci ao arquivo. Roubei os negativos (eram negativos) e entreguei a ele. Como era bom o mundo quando bastava roubar os negativos para a memória desaparecer! Algumas memórias, pelo menos. Pronto. Agora todas as provas do seu crime estão na sua mão. E não resisti. Agora é só você e a sua consciência. Osvaldo saiu cabisbaixo e eu me senti magnânima. Ele era um bom sujeito, afinal. Ninguém pode ser condenado a vida inteira por uma noite de mau gosto estético. E usar foto de arquivo, nestas circunstâncias, vamos combinar que é meio despropositado.

Me senti assim, superior e quase sem remorsos jornalísticos, até examinar o material trazido pelos fotógrafos no dia seguinte. E, adivinhem, lá estava Osvaldo, com sua barriga, sua careca, suas duas (ou seriam três?) mãos e agora quatro taitianas, o que só comprovava que os anos que não o favoreceram haviam sido generosos com sua conta bancária. “É esta a foto de capa!”, anunciei ao diagramador. “Abra em cinco colunas e avise a circulação para reforçar o repasse de Canoa Furada”.

Osvaldinho Tripé nunca mais deu as caras nem outras partes na redação do Meia-Noite. É tudo ficção, claro. Mas que a realidade é imbatível, ah, isso é.

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