Um certo Rodrigo Santoro

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Isso é cabelo de viado!, disse o Juvenal da Barbearia. Não tinha sido fácil chegar até ali, no centro internacional de fofocas da cidade pequena, em meio aos maiores exemplares de macheza do município, todos de olhos cravados nele como ferro de marcar boi, e tirar o recorte do bolso da bombacha. Desdobrar cuidadosamente a fotografia do Rodrigo Santoro roubada de uma revista da prima Edileuza e dizer, com aquela voz de quase homem que não foi: “Quero um cabelo igual a este”.

Mas que piá de merda, gritou o Aristides do Trem, que assim é chamado desde o tempo em que o trem existia também fora do seu nome. “Quero um cabelo igual a este”, ele repetiu, tremendo mas firme sobre as botas lustradas com cuspe. Com certeza vai dar o cu em Porto Alegre, tascou o Moraes do Cemitério. A cidadezinha era assim, um enclave desgarrado da globalização, onde todos tinham nome e lugar.

Ele firme. Aristides amarrou a toalha encardida em volta de seu pomo de Adão e, de má vontade, começou a dar uns talhos no cabelo que ele tinha deixado crescer escondido debaixo do chapéu. De quando em vez dava uma espiada de esguelha para o retrato do Rodrigo Santoro, que lhe sorria com dentes de salar entre a glostora e o pente. Sim, Aristides só usava glostora, que preparava em casa sabe-deus-com-quê desde que pararam de fabricar.

Ninguém fazia outra coisa na barbearia, cada corte de navalha perseguido por olhos malvados. Desgraça prum pai, ainda bem que eu não tenho filho, ele podia ouvir, seguido por um escarro de reprovação. Com aquele cabelo, ele abafaria no baile do CTG daquela noite. Roliúde de bombachas. Pegaria a Rosaura de jeito, prenda chucra que tinha um pirce no nariz como se fosse vaca premiada, que ele queria domar, mas era na cama. Ou pelo menos dar uns amassos num xote ligeirinho.

Pronto. Levanta dessa cadeira e chispa, guri. Nem precisa pagar, é só não contar por aí que fui eu que fiz essa sem-vergonhice. Ele saiu em passo ligeiro, mas sem perder a dignidade. Até limpou as botas na soleira. Um segundo, mas limpou. Então desfilou na praça, bem despacito. E quando chegou a hora do fandango, teve ganas de gritar como Rodrigo, mas o outro, o Cambará: “Buenas e me espalho. Nos pequenos dou de prancha, nos grandes dou de talho”.

Então se postou na frente da Rosaura, que estava uma boniteza enfiada num vestido de prenda, mas de oncinha. A Rosaura era assim, sem medo de ser diferente. Concentrou todos os esforços na afinação das cordas vocais e invocou Santo Izildo, o padroeiro dos adolescentes em fase de muda, para que daquela vez soasse grosso. E soou, com um leve recuo no final.

Vamos bailar, tchê guria? E a Rosaura desandou a rir. De fato, quase babou no decote de tanto rir. E ele subindo e descendo o pomo de Adão de aflição. Desculpa, ela finalmente disse num soluço esgoelado. É que você está parecendo o Sílvio Santos!
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Na manhã seguinte, no velório, Rosaura sussurrou no ouvido dele que ela até gostava do Sílvio Santos. Mas já era tarde.

O amor que sabe do tempo e do vento

Histórias que não são compradas em shopping

Dias atrás liguei para meus pais e os dois se divertiam com as dificuldades de expressar o amor que sentem um pelo outro. Acontece o seguinte. Toda manhã meus pais acordam, mais ou menos no mesmo horário, e ficam abraçadinhos esperando o sol entrar pelas frestas da persiana enquanto conversam sobre a vida. O desafio, agora, segundo minha mãe, que é mais despachada, é encontrar uma posição em que não doa alguma parte do corpo de um e de outro. Ora é a coluna do meu pai que se anuncia, interrompendo o beijo, ora são os joelhos da minha mãe que gritam embaixo do cobertor. Então, ele aos quase 81, ela perto dos 76, gastam alguns minutos encontrando uma posição em que é possível namorar sem dor. Acabam achando. Quando não param para rir da própria condição humana, o que também provoca algumas dores.

Para mim, a imagem do dia dos namorados, essa data tão comercial que acabou de levar legiões aos shoppings, é a de meus pais achando uma posição para se abraçar entre as dores de um corpo que viveu. Acho que o amor começa com som e com fúria, mas aprende na passagem do tempo o valor das pequenas delicadezas, as manias de cada um que irritam, mas que fazem cada um ser o que é. Aquela mirada terna e quase secreta em direção ao outro que faz uma bobagem qualquer, para mim vale tanto ou mais que o furor do desejo. Aprendi isso observando meus pais, primeiro com ciúmes desse amor onde eu não cabia, porque sabiamente eles mantiveram essa parte só para eles. Depois, com curiosidade científica e, finalmente, com ternura.

Desde que me entendo por gente, meus pais namoram. O que para mim foi por muito tempo algo misterioso, que exigia uma investigação que, por medo da descoberta, eu acabava sempre postergando. Por exemplo: por que as luzes da cabeceira trocavam de cor a cada semana? Em algumas noites eram vermelhas, em outras azuis e havia até madrugadas de verde. Eu perguntava, claro que perguntava, e a resposta era verdadeira, mas convenientemente sucinta: “Para variar”.

Meu pai deve ter sido o único pai do mundo que passou pela Disney, numa inusitada viagem de trabalho, comandando uma trupe de agricultores, e voltou de lá não só com brinquedos para nós, mas com baby-dolls para a minha mãe. Baby-dolls que corariam não apenas o Mickey, mas também os piratas do Caribe.

É também o único homem que eu conheço que dá rosas para a minha mãe no “aniversário de conhecimento”. Até hoje. Sim, “aniversário de conhecimento” é uma data lá em casa. Enquanto o poste embaixo do qual trocaram sussurros supostamente castos existiu, eles faziam visitas periódicas ao poste, como uma espécie de dívida de gratidão. Depois, foram miseravelmente traídos pela prefeitura. E o banco da praça onde trocaram confidências, e possivelmente algumas inconfidências, foi parar no museu. Não por causa deles, parece óbvio para todos. Menos para nós.

Tudo começou com o que eu chamo de “tijolaço” que minha mãe acertou na cabeça do meu pai. Minha mãe se finge de ofendida, mas sei que ela gosta da minha versão. Era terrível a minha mãe. Aos 13 anos ela viu meu pai passar com seu porte de soldado de chumbo e decretou: “Este vai ser meu”. Meu pai nem desconfiava, preocupado que estava com suas obrigações no internato, ele que trabalhava duro para pagar os próprios estudos, primeiro na limpeza, depois no cuidado dos alunos. Não adivinhava, mas já tinha o futuro decidido por uma pirralha com uma trança ruiva de cada lado.

Aos 15 dela, 20 dele, ela o avistou na festa de Sete de Setembro da paróquia da igreja matriz e despachou um correio amoroso em sua direção. Correio amoroso era a versão do torpedo no século passado. Era 1950, veja bem, no interior do Rio Grande do Sul, e ela tivera o desplante de escrever essa intimação. Sutil como uma ararinha azul num filme de zumbis a minha mãe: “Se for correspondida, serei a mulher mais feliz do mundo”. Meu pai espichou um meio sorriso em sua direção, o que deve ter lhe custado mais do que o passo que Neil Armstrong daria no final da década seguinte. Meu pai só foi aprender a sorrir muito mais tarde. Ensinado, claro, pela minha mãe.

Minha mãe se tornou mesmo a mulher mais feliz do mundo. E vice-versa. E nós aprendemos a vê-los sempre de mãos dadas andando pela cidade, no seu passo só aparentemente dissonante, minha mãe mais ligeirinha, atuando no miúdo, e meu pai com passadas lentas e firmes. Meu pai passeando pelos interiores de si, minha mãe novidadeira, auscultando os arredores. E, aos finais de semana, os dois executando o balé de décadas ao caminharem de mãos entrelaçadas para espiar as vitrines das lojas, fazendo de conta que elas mudavam, se abismando ora com a boniteza das peças, ora com o preço “pela hora da morte”.

Quando eu era criança, como já contei aqui, eles cumpriam também o programa familiar do domingo, no qual éramos generosamente incluídos, e que consistia em uma volta de fusca para ver as casas bonitas da cidade pequena. Sempre as mesmas, sempre dos mesmos. Lá em Ijuí eram os médicos, os fazendeiros e os empresários que tinham se dado bem no “milagre” econômico da ditadura militar que tinham casas bonitas. O resto se virava.

A vida deu e tirou de tudo do meu pai e da minha mãe, como em geral faz com quase todos. Roubou-lhes uma filha, deu-lhes outra da pá virada, a maior parte do tempo faltou-lhes dinheiro e sobrou trabalho, suspiraram de júbilo e de tristeza talvez na mesma proporção. Por muitos anos sonharam em fugir do verão de Ijuí, de onde até o diabo escapa lá por dezembro, mas não encontravam jeito. Quando juntaram umas economias, a casa que alugaram ficava na zona rural da cidade praiana, e em vez de gaivotas tínhamos galinhas. Mas nos divertimos mesmo assim, e virou história.

Como virou história a nossa primeira ida em família a um restaurante. Chinfrim que só, mas pisávamos em nuvens com nossas roupas de aniversário e sentíamos aromas de mil e uma noites. Para mim, nunca haverá um D.O.M. ou Fasano que se equipare ao restaurante do Primo. Desde então, e até hoje, qualquer prato seguido por “à Califórnia” é sinônimo de coisa muito fina lá em casa. A gente enchia a boca para dizer “à Califórnia” E até hoje meus pais adoram coisas “à Califórnia”.

Para mim e para meus irmãos era um choque descobrir que na casa de alguns de nossos amigos os pais não se beijavam nem arrulhavam. Nós achávamos que era uma lei da natureza que determinava, geneticamente, o modus operandi dos pais. Fiquei indignada quando disseram, uns anos atrás, que Hebe Camargo tinha inventado o selinho. Todo mundo sabe que foram os meus pais.

O amor é assim. Cheio de coisas sem importância que fazem uma vida. Acho que a sabedoria dos meus pais foi ter percebido que eram essas pequenas delicadezas o que realmente importava. Que os desacertos e as trapalhadas teciam os enredos das histórias que iam bordando a nossa pequena saga. Ninguém nunca achou lá em casa que era fácil viver, por isso o difícil assustava, mas não nos metia tanto medo assim.

Gosto de pensar, quando acordo pela manhã, que meus pais estão procurando, apesar das dores de outono, uma posição para ficar abraçadinhos. E, assim, encaixados de amor, falar da vida enquanto lá fora, como Erico Verissimo tão bem percebeu, ruge o tempo e o vento, cada vez mais vorazes.

(Publicado na Revista Época em 13/06/2011)

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