O casal sem palavras

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Eles se sentaram à mesa do café da pousada sem dar bom-dia para ninguém. Não se falavam. Apurei os ouvidos, porque tenho orelhas intrometidas. Olhos, também. Não, eles nem mesmo pediam para passar a manteiga. Ela comeu uma fatia de pão sete grãos com queijo meia-cura, dois bolinhos de chuva e um pedaço de bolo de milho. Depois, tomou uma xícara de chocolate quente com duas colheres de açúcar. O homem fez um sanduíche de dois andares e colocou na chapa para o queijo derreter. Depois, ele ainda pegaria uma fatia de melão e outra de mamão e tomaria dois copos enormes de suco de melancia. Não tinham nada a dizer um ao outro. E precisavam encher a boca vazia de palavras.

Casais que não falam entre si durante a refeição me soterram em camadas de melancolia. Quero cortar o silêncio deles com a faca do pão, mas não posso. São corpos retesados como cordas de um violino de quem ninguém mais tira acordes. E o ritual de comer juntos parece demais para eles que não podem nem querem mais fingir, mas não têm forças para mudar.

Era assim aquele casal diante de mim. Eles comiam e comiam e comiam, mas não tinham nada a compartilhar que não fosse gordura saturada. E quando não aguentaram mais comer, levantaram-se com pés cortados por varizes de chumbo, ele de bermuda e meias, ela de calça de moletom e tênis. Escaparam pela porta em passos a esmo, esmagados pela obrigação de serem felizes no clichê de paraíso que era aquela pousada.

Eu enveredei por uma trilha no meio do mato em busca de uma família de socós que tinha vislumbrado e de repente, juro que não foi de propósito, estava nos fundos da cabana deles. Pela varanda envidraçada eu os vi em território mudo. E fiquei ali, incapaz de resistir, porque agora eles estavam nus, e ela o algemava na cama king size. E se esfregava toda no corpo imobilizado dele. Será que não vai dar uma congestão, assim, logo depois do café da manhã?, foi meu pensamento prosaico.

Agora ela enfiava um vibrador verde no ânus dele enquanto o mordia com uma vagina cheia de dentes. E eu podia ouvir os gemidos e também os gritos. Sim, eles falavam muito um com o outro. A família inteira de socós desfilou diante de mim, e eu os afugentei com um safanão, ocupada com o discurso amoroso que se dizia diante de mim. Descobri que eles sabiam que eu estava olhando e ouvindo, e gostavam.

Virei as costas quando a mulher enfiou um peito na boca do homem até sufocá-lo, possuída agora por um pudor que não tenho. E por algum tempo fiquei contemplando as vacas que ruminavam logo adiante. Quando me virei, já não havia nada nem ninguém na cabana. O casal apenas descia as escadas vindos do café da manhã, em sua desistência sem palavras, atrasando os passos porque sabiam ir para onde não queriam. E eu já não sabia se tinha visto ou desejado ver.

Corri para a minha própria cabana, atropelando a família de socós na minha fuga. Enfiei tudo dentro da mala de qualquer jeito e voltei para São Paulo dois dias antes do programado.

A doença de ser normal

Com medo da liberdade, preferimos aderir à manada

Na semana passada, li uma entrevista do professor José Hermógenes de Andrade Filho, uma lenda no mundo da ioga no Brasil. No texto, ele conta ter criado uma palavra – “normose” – para dar conta daquele que talvez seja o grande mal do homem contemporâneo. “Normose” seria a “doença de ser normal”. O professor explica: “Como diz o título de um documentário que fizeram sobre mim: ‘Deus me livre de ser normal!’. Pois, na dita normalidade em que vivemos, somos constantemente alimentados pelo que nos aliena de nós. Com isso, perdemos a noção das coisas, do sentido de nossa vida, deixando que o mundo interfira muito mais do que deveria. (…) Essa normalidade nunca esteve tão distante da verdade”.

A entrevista faz parte de uma coletânea de boas conversas com pessoas ligadas ao universo da espiritualidade – não necessariamente religiosa – no Brasil e no mundo, escrito em dois volumes pelo jornalista mineiro Lauro Henriques Jr., com o título “Palavras de poder” (LeYa, 2011). Ganhei os dois livros de uma pessoa especial na minha vida e por isso comecei a ler com curiosidade. Me deparei com a “normose” do professor Hermógenes. E fiquei instigada a pensar sobre ela.

No mesmo período, o psicanalista e romancista Contardo Calligaris fez na Flip, em Paraty, um comentário bem provocador: “Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é o mal.”

Acredito que, por caminhos diferentes, Hermógenes e Calligaris nos estimulam a pensar em algo que vale a pena, que um chamou de “normose” e o outro de “comportamento de grupo”. Daqui em diante, enveredo pelas minhas reflexões a partir das provocações de ambos – que possivelmente sejam diversas do que eles pensaram ao propô-las. A responsabilidade, portanto, é minha.

No passado, a vida no Ocidente era determinada pela tradição. O destino de cada um era imutável, definido pela sua origem, pela categoria social a qual pertencia, e não havia dilemas sobre o que seria a sua passagem pelo mundo: se você fosse homem, seguiria os passos do pai; se fosse mulher, os da mãe. De todos era esperado o cumprimento de um roteiro previsível, que, se você nascesse homem, consistia em dar sequência aos negócios ou ao ócio da família, ou trabalhar para o mesmo patrão ou senhor do pai; e, se nascesse mulher, casar-se com alguém do mesmo nível social, em contratos arranjados previamente, reproduzir-se e cuidar da sua própria casa ou servir na casa em que a mãe serviu. Além disso, esperava-se que cada novo núcleo familiar seguisse a religião dos pais e participasse da comunidade do jeito de sempre, cada um no seu lugar determinado pelo estrato social.

A modernidade embaralhou tudo isso. E fomos, como disse Sartre, “condenados a ser livres”. É o preço que o indivíduo paga para ser indivíduo. Ainda que, em países desiguais como o Brasil, a classe social na qual se nasce influencie as chances que cada um vai ter, mesmo aqui estamos muito longe de ter o lugar cimentado da tradição do mundo de ontem. E cada governo democrático, se quiser garantir a continuidade de seu projeto no poder, precisa agora prometer trabalhar para igualar as bases de onde cada cidadão partirá para construir sua história. No mundo contemporâneo, cada um é o principal responsável pelas suas escolhas, pelos seus desejos e pelas suas desistências.

Embora existam muitos órfãos da tradição, suspirosos de nostalgia, penso que a prisão daquela vida determinada desde antes do nascimento era mais assustadora do que a liberdade de se estrepar que a modernidade nos deu. É verdade, porém, que para viver hoje é necessário um outro tipo de coragem, já que cada homem ou mulher virou em si um projeto em constante construção e desconstrução. Não é que não exista mais chão, mas ele é pantanoso, e cada um precisa escolher diante de um emaranhado de trilhas. E, se cada uma delas leva a lugares diferentes, é fato que nenhuma é segura.

É aí que a “normose” ou o “comportamento de grupo” se encaixa. Qual é o desafio de cada um de nós hoje? Desde que você não esteja na faixa da população em que toda energia e talentos são gastos na luta pela sobrevivência mais básica, o desafio que se impõe diante de cada um é a busca da sua singularidade. E esta é a busca de uma vida inteira. Não como se você tivesse uma essência que precisasse encontrar e, tão logo encontrada, estivesse tudo resolvido. Pelo contrário, esta procura leva à invenção de nós mesmos – e nunca está nada resolvido, já que sempre podemos nos reinventar. Não sem limites, mas às voltas com eles.

A proposta da modernidade e da ideia de indivíduo, muito mais libertária do que nossos antepassados amarrados pela tradição jamais sonharam, parece ótima. O problema é que dá uma angústia danada, já que, a rigor, não haveria ninguém para culpar por uma escolha equivocada ou porque o enredo que inventamos para a nossa vida saiu diferente do nosso desejo. Então, com medo de nos “enforcarmos nas cordas da liberdade”, como diz o ator Antônio Abujamra no programa “Provocações” (TV Cultura), em vez de nos arriscarmos a criar uma vida, nos responsabilizando por ela, aderimos à manada. E aqui, é importante deixar bem claro, não estou me referindo a lutas coletivas movidas por indivíduos unidos por suas singularidades, mas à adesão que implica se deixar possuir pelo grupo para não se arriscar a ser possuído por si mesmo.

Nesta adesão à manada, a “normose” ou o “comportamento de grupo” substituiria ilusoriamente o vazio deixado pela tradição. Com medo da liberdade e dos riscos inerentes a ela, muitos de nós colam no grupo. Seja ele do tipo que for: religioso, corporativo, profissional, cultural, intelectual, político, de orientação sexual ou até esportivo. Cada um deles garante, ainda que de forma muito mais frágil do que a tradição, um certo jeito de se comportar e de se vestir, um tipo de ambiente a frequentar, temas que merecem ser debatidos, gêneros de lazer e de viagens para as férias e para os fins de semana, crenças para compartilhar e até bens para adquirir. Um tipo de “normose” – que, paradoxalmente, mas com muita lógica, dentro do grupo é tratada como “diferentose”, já que, como coletivo, contrapõe as suas verdades a dos outros grupos, em geral vistos como inferiores ou limitados.

E como estas são as pessoas com quem se convive, torna-se meio inevitável namorar e ter filhos com gente da mesma turma. Assim como a tendência é reproduzir mais e mais os mesmos padrões e visão de mundo. Sem questionar, porque questionar possivelmente levaria a uma ação. E todos nós conhecemos gente, quando não nós mesmos, que prefere deixar tudo como está, ainda que doa, para não se arriscar ao desconhecido. É assim que muitos de nós abrem mão da época histórica mais rica de possibilidades de ser em troca de uma mercadoria bem ordinária: a ilusão de segurança. Mas, como sabemos, lá no fundo sentimos que algo está bem errado. Especialmente quando fica difícil levantar da cama pela manhã para seguir o roteiro programado.

Suspeito que o mal-estar contemporâneo tem muito a ver com não estarmos à altura do nosso tempo. No passado, havia “outsiders”, gente que desafiava a tradição para inventar uma outra história para si. Hoje, com a (bendita) falência da tradição, talvez o que se exija de nós seja que todos sejamos “outsiders” à nossa própria maneira – não no sentido de contrariar o mundo inteiro, mas de encontrar o que faz sentido para cada um, arriscando-se ao percurso tortuoso do desejo. Ciente de que, logo adiante, vamos perder o sentido mais uma vez e teremos de nos reinventar de novo e de novo, num processo contínuo de construção e desconstrução movido pela dúvida – e não pelas certezas.

Vivemos numa época de intenso movimento interno, em que se perder seja talvez o melhor caminho para se achar, mas nos agarramos à primeira falsa promessa como desculpa para permanecermos imóveis. Voltados sempre para fora e cada vez com mais pressa, porque olhar para dentro com a calma e a honestidade necessárias seria perigoso. Queremos garantia onde não há nenhuma, sem perceber que o imprevisível pode nos levar a um lugar mais interessante. Podemos finalmente andar por aí desencaixotados, mas na primeira oportunidade nos jogamos de cabeça numa gaveta com rótulo. Ainda que disfarçada de vanguarda.

Mas o que pode ser mais extraordinário do que inventar uma vida, ainda que com todas as limitações do existir? E que utopia pode ser maior do que nos igualarmos pela singularidade do que cada um é?

Acho que vivemos um momento histórico muito rico. Só precisamos de mais coragem. Como diz o professor Hermógenes, do alto dos seus 90 anos, “Deus (seja ele o que for – ou não – para cada um) me livre de ser normal!”.

(Publicado na Revista Época em 18/07/2011)

“Uma Duas” mergulha no subterrâneo feminino

Sonho

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

No meu sonho a mulher estava presa com o homem num calabouço. Ele tinha dentes bem finos e longos, como palitos. Era loiro, de cabelos escorridos, e tinha os olhos loucos do Klaus Kinski. Eu era apenas uma observadora. Que podia ver o homem dentro da prisão, e ele podia me ver sem me alcançar. Eu não enxergava a mulher. Mas sabia que as presas do homem se afiavam no corpo dela que se entregava.

Por que ela se entregava? Eu não conseguia compreender de dentro do meu sonho. Ambos estavam presos porque o homem digeria a mulher enquanto faziam sexo. E a incompreensão me produzia angústia, porque eu queria salvar a mulher, mas não entendia por que ela estava ali. Por que não a salvam?, eu agarrava um e outro na rua do meu pesadelo, sacudindo-os pelos braços. E ninguém me respondia porque não compreendiam a minha pergunta.

Então o tempo passou. E virou história. Paguei o ingresso do museu para vê-la, imortalizada em cera. A mulher que eu nunca vira, mas que me fez sofrer. No momento em que estávamos uma diante da outra, ela virou carne. Primeiro foram os olhos que se cravaram diretamente em mim com lâminas de ironia. Depois seu corpo despedaçado, amputado a dentadas, com orifícios novos onde antes era fechado. Uma mulher ensangüentada e parcialmente devorada pelo homem.

Eu a olhei cheia de horror e de pena. E ela me devolveu um olhar feliz e sarcástico. Eu gostava, ela me disse. E eu soube que era verdade.

Fugi correndo, derrubando no caminho a réplica do Michael Jackson.

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