Belo Monte, nosso dinheiro e o bigode do Sarney

Um dos mais respeitados especialistas na área energética do país, o professor da USP Célio Bermann, fala sobre a “caixa preta” do setor, controlado por José Sarney, e o jogo pesado e lucrativo que domina a maior obra do PAC. Conta também sua experiência como assessor de Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia

Se você é aquele tipo de leitor que acha que Belo Monte vai “afetar apenas um punhado de índios”, esta entrevista é para você. Talvez você descubra que a megaobra vai afetar diretamente o seu bolso. Se você é aquele tipo de leitor que acredita que os acontecimentos na Amazônia não lhe dizem respeito, esta entrevista é para você. Para que possa entender que o que acontece lá, repercute aqui – e vice-versa. Se você é aquele tipo de leitor que defende a construção do maior número de usinas hidrelétricas já porque acredita piamente que, se isso não acontecer, vai ficar sem luz em casa para assistir à novela das oito, esta entrevista é para você. Com alguma sorte, você pode perceber que o buraco é mais embaixo e que você tem consumido propaganda subliminar, além de bens de consumo. Se você é aquele tipo de leitor que compreende os impactos socioambientais de uma obra desse porte, mas gostaria de entender melhor o que está em jogo de fato e quais são as alternativas, esta entrevista também é para você.

Como tenho escrito com frequência sobre a megausina hidrelétrica de Belo Monte, por considerar que é uma das questões mais relevantes do país no momento, observo com atenção as manifestações dos leitores que comentam neste espaço ou em redes sociais como o Twitter. Anotei as principais dúvidas para incluí-las aqui e assim colaborar com o debate.

Desta vez, propus uma conversa sobre Belo Monte a Célio Bermann, um dos mais respeitados especialistas do país na área energética. Bermann é professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp. Publicou vários livros, entre eles: “Energia no Brasil: Para quê? Para quem? – Crise e Alternativas para um País Sustentável” (Livraria da Física) e “As Novas Energias no Brasil: Dilemas da Inclusão Social e Programas de Governo” (Fase). Ex-petista, ele participou dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia. Célio Bermann foi também um dos 40 cientistas a se debruçar sobre Belo Monte para construir um painel que, infelizmente, foi ignorado pelo governo federal.

Vale a pena ouvir o professor a qualquer tempo. Mas, especialmente, depois de uma semana dramática como a passada. Na quarta-feira (26/10), o julgamento da ação movida pelo Ministério Público Federal reivindicando que os índios sejam ouvidos sobre a obra, como determina a Constituição, foi interrompida e adiada mais uma vez no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília. Na mesma quarta-feira, chamado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) para explicar por que não suspendeu as obras de Belo Monte, o Brasil não compareceu, desrespeitando o organismo internacional e exibindo um comportamento mais usual em ditaduras. Em reportagem publicada em 20/10, o Estadão denunciou que, como retaliação por ter sido advertido sobre Belo Monte, o Brasil deixou de pagar sua cota anual como estado-membro.

Na quinta-feira (27/10), centenas de pessoas, entre indígenas, ribeirinhos e moradores das cidades atingidas, ocuparam pacificamente o canteiro de obras de Belo Monte, no rio Xingu, pedindo a paralisação da construção da usina. Foram expulsos por ordem judicial. Enquanto o canteiro de obras era ocupado por uma população invisível para o governo de Dilma Rousseff, o cineasta Daniel Tendler apresentava no Seminário Nacional de Grandes Barragens, no Rio de Janeiro, o projeto de uma megaprodução cinematográfica que se propõe a documentar as obras de Belo Monte por cinco anos. O projeto é comandado pela LC Barreto, a produtora da poderosa família Barreto, a mesma que fez “Lula, O Filho do Brasil”. Tendler, aliás, foi um dos roteiristas do filme sobre a vida do ex-presidente. Entre as repercussões da megaprodução cinematográfica sobre a megaobra do PAC no Twitter, destacou-se uma: “Os Barreto estão para o cinema nacional como os Sarney para a política”.

Ainda na semana passada, o governo federal publicou um pacote de sete portarias ministeriais com o objetivo de “destravar a concessão de licenças ambientais no país para acelerar grandes empreendimentos, como rodovias, portos, exploração de petróleo e gás, hidrelétricas e até linhas de transmissão de energia”. Ou seja: o governo caminha para anular as conquistas socioambientais obtidas na redemocratização do país.

Dias antes, em 26/10, o Senado havia aprovado um projeto de lei que retira o poder do Ibama para multar crimes ambientais, como desmatamentos. Se não for vetado pela presidente, o poder de multar passará para estados e municípios, sujeito às pressões locais já bem conhecidas. A aprovação do projeto aconteceu quatro dias depois de mais um assassinato no Pará: João Chupel Primo, mais conhecido como João da Gaita, foi morto com um tiro na cabeça, depois de denunciar ao Ministério Público Federal, em Altamira, uma rota de desmatamento ilegal na reserva extrativista Riozinho do Anfrísio e na Floresta Nacional Trairão, área do entorno de Belo Monte. Como de hábito, o Congresso decide os rumos do país desconectado com o que acontece na vida real para além do aquário brasiliense.

No momento histórico em que recursos como água e biodiversidade se consolidam como o grande capital de uma nação, o Brasil, um dos países mais beneficiados pela natureza no planeta, corre em marcha à ré. O cenário que você acabou de ler tem no centro – como obra simbólica e estratégica – Belo Monte, a maior obra do PAC. A seguir, parte de minha conversa de quase três horas com o professor Célio Bermann, em sua sala no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP.

– Por que o senhor, assim como outras pessoas que estudam o setor, afirma que a área energética do país é uma “caixa preta”. Afinal, que caixa preta é essa?
Célio Bermann – A política energética do nosso país é uma caixa preta e é mantida dessa forma por uma série de razões. Primeiro, porque a baixa escolaridade da população brasileira não permite, por exemplo, que o leitor da Época entenda o que é terawatts-hora. Mas seria interessante que a população toda tivesse conhecimento e pudesse, com informação, começar a definir junto com empresas e governo os rumos que são mais adequados. Acho que a academia tem um papel fundamental nesse processo. Eu, particularmente, tento, na área do meu conhecimento, procurar as populações tradicionais, mostrar o que é uma usina hidrelétrica, por que alaga quando você interrompe o fluxo, o que é uma barragem, e como isso vai acabar transformando a vida da comunidade. Acho importante que a academia preste esse tipo de informação, já que governo e empresas não o fazem.

– Sim, mas por que o setor energético tem sido uma caixa preta por décadas?
Bermann – A governabilidade foi encontrada através de uma aliança que mantém o círculo de interesses que sempre estiveram no nosso país. É a mesma turma que continua na área energética. E isso é impressionante. A população não participa do processo de decisões. Não existem canais para isso. Ainda no governo FHC, durante a privatização, o governo criou um Conselho Nacional de Política Energética. Nos dois mandatos de FHC participavam os dez ministros, mas havia um assento para um representante da academia e um da chamada sociedade civil. Eles sentavam, discutiam as diretrizes energéticas de uma forma aparentemente saudável, mas, no frigir dos ovos, na prática não mudava nada. De qualquer forma, havia pelo menos esse sentido de escutar. Isso, com Lula, acabou. O resultado do governo “democrático popular” do Lula, nos dois mandatos, e da Dilma, agora, é a negação de escutar outros interesses que não sejam aqueles que sempre estiveram junto ao poder. A própria Dilma, no início do governo Lula, tinha uma dificuldade muito grande de ouvir, de sentar-se com os movimentos sociais e ouvir. Eu tive a oportunidade de vivenciar o primeiro mandato do Lula, lá, em Brasília.

– E qual era o seu papel?
Bermann – Era apagar fogo, este era o meu papel…

– Mas, oficialmente…
Bermann –  O meu papel era tentar amenizar um pouco os conflitos, mas, oficialmente, eu fui trabalhar com a Dilma como assessor ambiental no Ministério de Minas e Energia. A ideia inicial era criar uma Secretaria de Meio Ambiente dentro do ministério. Era a época em que tínhamos a Marina (Silva) falando em transversalidade, então havia um ambiente extremamente propício para aparar arestas e ver se a coisa poderia caminhar de uma forma mais adequada. Achei, então, que a melhor forma de fazer isso não era criar um lugar dos ambientalistas no ministério, mas colocar em todas as secretarias do ministério gente que pensasse o meio ambiente. Mas acabei ficando um ano lá em Brasília. Mesmo assim, foi extremamente interessante, porque me permitiu sair da academia e ter, na prática, a percepção de como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo.

– E como as coisas se dão no dia a dia dentro do governo?
Bermann – É um horror. É uma lentidão. É um imobilismo. É incrível a capacidade da máquina de governo de fazer de conta que faz sem estar fazendo absolutamente nada. Eu falo isso com todos os pontos nos “is”. No início do governo se buscava um entendimento entre os chamados “ministérios fins” e o meio ambiente. Transportes, por causa da construção de estradas e portos, e Minas e Energia, por causa da atividade mineral, metalúrgica e energética, e as questões ambientais que são intrínsecas a essas atividades. Houve uma boa intenção de levar adiante a possibilidade do estabelecimento de pontos comuns. Fizemos, então, um acordo entre Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente em função da definição de “pontos comuns”, de procurar verificar onde poderíamos estabelecer alguns consensos. Era um documento em que se definia uma agenda energética e ambiental comuns aos dois ministérios. Se bem me lembro, o documento foi concluído em setembro de 2003. Mas as duas ministras só foram assinar em 31 de março de 2004.

– Por quê?
Bermann – Boa pergunta. Por quê? Boas intenções… mas por quê? Eu realmente não consigo definir exatamente se era uma questão de veleidade… não sei. No final de 2003 a Marina começou a perceber a dificuldade de ela continuar, e o Lula, daquele jeito dele, deixando a coisa acontecer. Naquele momento, o governo poderia ter tido uma agenda comum, um processo extremamente positivo de entender que existem usinas hidrelétricas que não devem ser construídas.

“Em 2003, a Dilma estava feliz porque tinha conseguido afastar a turma do Sarney do setor elétrico”

– Imagino que não era fácil ser assessor ambiental da Dilma Rousseff…
Bermann – É, foi uma coisa meio… difícil. Como falei, eu tinha uma relação particular com os movimentos sociais e estava mais numa situação de bombeiro. Vou te contar uma coisa, como referência. Eu encontrei a Dilma na posse do (físico) Luiz Pinguelli Rosa, no Rio de Janeiro, como presidente da Eletrobrás. Ela estava extremamente satisfeita, alegre, contente, porque tinha conseguido, politicamente, afastar a turma do (José) Sarney da seara energética. (Luiz Pinguelli Rosa deixaria o cargo em 2004, a pedido de Lula, que precisava colocar alguém ligado ao PMDB e a José Sarney.) Para você ver. Na época, o (José Antonio) Muniz (Lopes) era diretor da Eletronorte… e depois tornou-se presidente da Eletrobrás (de 2008 a 2011).

– O José Antonio) Muniz (Lopes O José Antonio Muniz Lopes, um homem da cota do Sarney, é um personagem longevo nessa história de Belo Monte… Só para situar os leitores, em 1989, no último ano do governo Sarney, ele era diretor da Eletronorte e foi no rosto dele que a índia caiapó Tuíra encostou seu facão por causa da proposta de Belo Monte (então chamada de Kararaô), naquela foto histórica que correu mundo. O tal do Muniz já estava lá… Depois de deixar a presidência da Eletrobrás, no início deste ano, continuou lá, agora como diretor de Transmissão da Eletrobrás…
Bermann – Pois então. Naquela época, em 2003, era ele o diretor da Eletronorte que a Dilma tinha ficado feliz por ter conseguido afastar. Por isso que eu falo que não é o governo Lula, é o governo Lula/Sarney. E agora Dilma/Sarney. Constituiu-se um amálgama entre os interesses históricos do superfaturamento de obras, sempre falado, nunca evidenciado. Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a utilização do dinheiro público e especialmente o espaço de cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo Monte.

– No momento em que o senhor encontrou a Dilma, logo na constituição da equipe do primeiro mandato de Lula, o senhor conta que ela estava feliz porque tinha conseguido tirar a turma do Sarney do comando da área energética. O que aconteceu a partir daí?
Bermann – A pergunta é: tirou mesmo?

– E qual é a resposta?
Bermann – Naquele momento, manter esse pessoal à distância era estratégico para reconstruir as relações e viabilizar algumas das diretrizes que tinham sido objeto da proposta de governo. O que aconteceu é que a vida dessa situação (de afastamento) foi extremamente curta devido às relações de poder. Eles não gostaram de se sentir afastados. E eu suponho que a percepção do problema da governabilidade no governo Lula foi uma ação desses setores que tinham percebido que estavam longe da teta da vaca e que não podiam continuar assim. Qual era o jeito de fazer? PMDB era oposição. Vamos conversar… E aí se reacomodam as questões. Eu não digo que seja um grupo de ladrões mercenários. Não é isso que está em jogo. Mas essa capilaridade do Sarney permite manter o usufruto do poder. Eu não sou psicólogo para entender o que o senhor Sarney pensa quando vê o Muniz voltar para o governo, ou quando se encontra diante da incapacidade técnica do senador Edison Lobão ao conduzir o Ministério de Minas e Energia no governo Lula e agora no de Dilma. Não há lógica para isso. Vou dizer de novo: não é possível a gente acreditar na capacidade gerencial de um governo que se submete a esse tipo de articulação política, colocando uma pessoa absolutamente incapaz de entender o que é quilowatt, quilowatt-hora. De ir a público sem saber a diferença entre tensão em volts e energia em quilowatts-hora.

– O senhor está falando do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão?
Bermann – Edison Lobão.

– E Belo Monte ocupa que lugar nesse jogo?
Bermann – É a oportunidade de se fazer dinheiro e de se reconstituir as relações de poder. Essa obra tinha sido sepultada em 1989, por conta da mobilização da população indígena, e voltou à tona no governo Lula, aprovada pelo Congresso (em 2005) com o discurso de que era um novo projeto.

“O valor de Belo Monte aumentou em mais de R$ 20 bilhões em apenas cinco anos. E deverá ser maior ainda. Sem contar que 80% do financiamento é dinheiro público”

– A ameaça de retomar Belo Monte esteve presente também durante o governo Fernando Henrique Cardoso, mas só no governo Lula saiu mesmo do papel, o que ninguém imaginava que acontecesse, devido ao apoio massivo dos movimentos sociais da região à campanha de Lula. O senhor acha que o fato de Belo Monte ter saído do papel tem a ver com a denúncia do Mensalão, em 2005, e a recomposição das forças políticas para a eleição de 2006?
Bermann – Não tenho a mínima ideia. Mas vamos falar em cifras, agora. Em 2006 o projeto foi anunciado com um custo de R$ 4,5 bilhões. Você sabe, as cifras avançaram violentamente. Antes de ir para o leilão, a usina foi avaliada em R$ 19 bilhões. Foi feito o leilão e se definiu um custo fictício de geração de energia elétrica de R$ 78 o megawatt-hora.

– Por que fictício?
Bermann – Fictício porque esse custo não remunera o capital investido. É por isso que várias empresas caíram fora do empreendimento, sob o ponto de vista da geração da energia elétrica. Mas as grandes empreiteiras estão presentes, porque não é na venda da energia elétrica, mas sim na obra que se dá uma parte significativa da apropriação da renda. Com o consórcio constituído com 50% entre Eletrobrás e Eletronorte, as empreiteiras voltaram para fazer a obra. A elas interessa a obra – e não ficar vendendo energia elétrica. Essa situação é entendida pelos dirigentes, pelo governo, como normal. Para o governo federal, é uma parceria público-privada que está dando certo. Em que termos? A obra hoje está oficialmente orçada em R$ 26 bilhões. Imagine, de R$ 4,5 bilhões para R$ 26 bilhões…

– Em cinco anos, o valor da obra avançou em mais de R$ 20 bilhões?
Bermann – Oficialmente está hoje orçada em R$ 26 bilhões. Mas existem estimativas de que não vai sair por menos de R$ 32 bilhões. Isso sem falar em superfaturamento.

– Deste valor, quanto sairá do BNDES, ou seja, do nosso bolso?
Bermann – Oitenta por cento da grana para isso é dinheiro público. O que estamos testemunhando é um esquema de engenharia financeira para satisfazer um jogo de interesses que envolve empreiteiras que vão ganhar muito dinheiro no curto prazo. Um esquema de relações de poder que se estabelece nos níveis local, estadual e nacional – e isso numa obra cujos 11.200 megawatts de potência instalada só vão funcionar quatro meses por ano por causa do funcionamento hidrológico do Xingu. Então, é preciso entender que a discussão sobre a volta da inflação não se dá porque está aumentando o preço da cebola, do tomate, do leite… É por causa da volúpia de tomar recursos públicos que será necessário fabricar dinheiro. O ritmo inflacionário vai se dar na medida em que obras como Belo Monte forem avançando e requerendo que se pague equipamento, que se pague operários, que se pague uma série de coisas e também que se remunere com superfaturamento.

“Com Belo Monte, ganham as empreiteiras e os vendedores de equipamentos. E ganham os políticos que permitem que essa articulação seja possível”

– Quem perde a gente já sabe. Agora, quem ganha, além das empreiteiras envolvidas na obra?
Bermann – Há as pessoas que ganham pela obra – fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato. É a escolinha ou o posto de saúde que eventualmente aquele vereador, aquele prefeito vai dizer: “É obra minha!”. É isso que está em jogo. É dessa forma que a cultura política se estabelece hoje no nosso país. Isso precisa mudar. Como? É complicado.

– O senhor costuma usar a expressão “Síndrome do Blecaute” para se referir ao pânico da população de ficar à luz de velas devido a um apagão energético. Acredita que essa “síndrome” é manipulada pelo governo federal e pelos grandes interesses empresariais para emprestar um caráter de legitimidade a megaobras como Belo Monte?
Bermann – O que eu tenho chamado de “Síndrome do Blecaute” conduz à legitimação de empreendimentos absolutamente inconsistentes. Belo Monte, como foi provado pelo conjunto de cientistas que se debruçaram sobre o tema (painel dos especialistas), é uma obra absolutamente indesejável sob o ponto de vista econômico, financeiro e técnico. Isso sem falar nos aspectos social e ambiental. Mas se dissemina uma ideia do caos e, hoje, há 77 projetos de usinas hidrelétricas somente na Amazônia que utilizam a “Síndrome do Blecaute” para se viabilizarem. O fato de hoje o aquecimento global dominar a mídia e o senso comum, assim como a própria academia, ajuda a mostrar a hidroeletricidade como uma grande maravilha, independentemente do lugar em que a usina vai ser construída e dos impactos que ela vai causar. Mas o que é preciso compreender e questionar? Hoje, seis setores industriais consomem 30% da energia elétrica produzida no país. Dois deles são mais vinculados ao mercado doméstico, que é o cimento e a indústria química. Mas os outros quatro têm uma parte considerável da produção para exportação: aço, alumínio primário, ferroligas e celulose.

– As chamadas indústrias eletrointensivas…
Bermann – Isso. Eu não estou defendendo que devemos fechar as indústrias eletrointensivas, que demandam uma enorme quantidade de energia elétrica a um custo ambiental altíssimo. Mas acho absolutamente indesejável que a produção de alumínio dobre nos próximos 10 anos, que a produção de aço triplique nos próximos 10 anos, que a produção de celulose seja multiplicada por três nos próximos 10 anos. E é isso que está sendo previsto oficialmente.

– O que poucos parecem perceber e menos ainda questionam, quando essas metas são comemoradas, é a forma como o Brasil está inserido no mercado internacional em pleno século XXI. O quanto o fato de nossa economia estar baseada na exportação de bens primários tem a ver com a necessidade de grandes hidrelétricas?
Bermann – Desde a ditadura militar, passando pela redemocratização, pelos sucessivos governos até FHC, tem sido assim. Nós imaginávamos que, com Lula, essa questão ia ser reorientada. Porque o programa de governo em que eu me envolvi preconizava a necessidade dessa mudança. E o que aconteceu? Se você comparar os dados de 2001 com os dados de 2010, vai constatar que a economia brasileira está se primarizando cada vez mais. Isto é: cada vez mais são produzidos no Brasil bens industriais primários, sem agregação de valor. E são justamente os bens primários que consomem muita energia e geram pouco emprego. Além disso, satisfazem uma demanda marcada pelo consumismo. E o Brasil se mostrou incapaz de dizer: “Não, nós não vamos fazer isso”.

– E depois esses produtos retornam para o Brasil, via importação, com valor agregado…
Bermann – É. Eu sempre chamo a atenção para o fato de que, do alumínio primário que o Brasil produz, 70% é exportado. E o alumínio consome muita energia. Para se pegar um barro vermelho, que é a bauxita, e transformá-la em alumínio, é preciso um processo de produção extremamente devastador sob o ponto de vista ambiental. Há um primeiro refino para obter a alumina, que é um pó branco. Esse pó branco tem como consequência ambiental uma borra chamada de “lama vermelha”. Um ano atrás, na Europa, na Hungria, houve uma catástrofe em função do rompimento de uma barragem que continha essa lama vermelha e tóxica. Ela se espalhou pelo Rio Danúbio e foi um horror. E cada vez mais se faz isso no nosso país – e, claro, não se faz mais isso nos países centrais. Isso não está acontecendo agora no Brasil, está acontecendo desde os anos 70.

“Com Lula – e agora com Dilma – ocorreu a reprimarização da economia, com exportação de bens primários sem valor agregado, numa subordinação ao mercado internacional”

– Houve acentuação desse processo no governo Lula e agora no de Dilma Rousseff?
Bermann – O que acontece a partir de Lula é o que eu tenho chamado de “reprimarização da economia”. Nós já tivemos uma época em que a economia dependia basicamente da produção de bens primários: café, açúcar e também alguns bens industriais primários. Depois, tivemos Getúlio Vargas, Juscelino (Kubitschek), e nos anos 50 houve a substituição das importações com a vinda da indústria pesada. Aquele período marca um processo acelerado de industrialização da economia brasileira em que se buscava um desenvolvimento tecnológico para acompanhar o ritmo internacional. Agora, vivemos a reprimarização da economia. E não é uma questão do governo, simplesmente. O governo poderia tornar essa questão pública, dar condições para que a população compreendesse e debatesse o que está em jogo, e isso pudesse servir como base de apoio para uma tomada de decisão do tipo: “Olha, Alcoa (corporação de origem americana com grande presença no Brasil, é a principal produtora mundial de alumínio primário e alumínio industrializado, assim como a maior mineradora de bauxita e refinadora de alumina), vocês não vão continuar aumentando a produção aqui no Brasil. Procurem um outro lugar. A produção de energia elétrica gera um problema ambiental enorme, um problema social enorme, e nós vamos priorizar a demanda da população”. Mas, infelizmente, isso não é feito.

– Mas essa obstinação do governo Lula, e agora do governo Dilma, em fazer Belo Monte, mesmo já tendo um prejuízo de imagem aqui e lá fora, mesmo tendo mais de uma dezena de ações judiciais contra a obra movidas pelo Ministério Público Federal, fora as outras… Essa obstinação se dá apenas por causa do esquema de governabilidade, do esquema político para as eleições a curto e médio prazo, ou é por mais alguma coisa?
Bermann – Isso já não te parece plausível? Ou você acha que tem alguma coisa meio doentia, que precisa ser explicada? (risos)

– Doentia, não sei. Mas eu gostaria de compreender melhor por que o senhor e a maioria dos especialistas que estudaram o projeto afirmam que esta obra é ruim também do ponto de vista técnico.
Bermann – Divulgaram que esta será a única usina do Xingu. Inclusive, houve um seminário recente aqui na USP em que tive a oportunidade de discutir com o Mauricio Tolmasquim (presidente da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia). E ele veio com essa ladainha: “Vai ser a única…”. E eu disse a ele: “Com o perdão do poeta, o que você está afirmando, somente de papel passado, com firma em cartório e assinado: Deus”.

– O senhor não acredita que será a única usina do Xingu, então?
Bermann – Me diga alguma coisa no nosso país que vigorou como cláusula pétrea. Me fale alguma coisa aqui no nosso país que foi dito de uma forma e se manteve ao longo do tempo. VAI ser necessário construir outras usinas. No atual projeto, esta é uma usina que vai funcionar à plena carga, no máximo, quatro meses por ano, por causa do regime hidrológico. Se ela estiver sozinha, o volume de água para rodar as turbinas dependerá da quantidade de chuva. E aquela região tem a seguinte característica: quando chove, quando tem água, quando desce a água dos tributários para o Xingu é muita água, é um volume enorme de água. Mas isso só acontece durante quatro meses por ano. Só nesse período os 11.200 megawatts vão estar operando. Em outubro, na época da estiagem, será apenas 1.100 megawatts, um décimo. Então, a pergunta é: por que construir uma usina desse porte, se, na média anual, ela vai operar com 4.300 megawatts? Necessariamente vão vir as outras quatro. Eu estou afirmando isso, infelizmente. Tecnicamente, eu tenho absoluta certeza. Porque as usinas rio acima vão segurar a água e aí Belo Monte não vai depender da quantidade de chuva. É o único jeito dessa potência instalada de 11.200 megawatts existir de fato.

“O conceito do governo e das empresas não é o de população atingida, mas o de população afogada”

– O senhor está dizendo que o governo federal está mentindo ao afirmar que será apenas uma usina, para conseguir vencer as resistências ao projeto e aprová-la, e depois fará mais três ou quatro?
Bermann – Estou dizendo que, da forma como esta usina está colocada, é uma aberração técnica tão grande que é totalmente ilógico construí-la.

– E essa afirmação, discutida hoje na Justiça, de que os povos indígenas não serão atingidos?
Bermann – A noção que as empresas e o governo federal têm é a noção de população afogada – e não atingida.

– Agora, digamos que nós concordássemos que a obstinação de construir Belo Monte, ainda que atropelando a população e talvez a Constituição, se devesse à necessidade de energia elétrica. E digamos que Belo Monte fosse de fato um projeto de engenharia viável e inteligente. As usinas hidrelétricas são as melhores opções para a geração de energia no Brasil de hoje? Quais são as alternativas a elas?
Bermann – Não podemos olhar a questão da produção de energia sem questionar ou considerar o outro lado, que é o consumo de energia. Parece meio prosaico, porque envolve hábitos culturais da população. E a população sempre entendeu que energia elétrica se resume a você apertar o botão e ter eletricidade disponível. E por isso fica em pânico com a “Síndrome do Blecaute”. Mas é preciso pensar além disso. Não estou dizendo para fechar as fábricas de alumínio, de aço e de celulose no Brasil. O que estou dizendo é o seguinte: parem de ampliar a produção. Parem, porque diversos países desenvolvidos já fizeram isso. O Japão fez mais do que isso. O Japão produzia, em 1980, 1,6 milhões de toneladas de alumínio. Nós estamos produzindo quase 1,7 milhões de toneladas hoje. Só que a energia elétrica necessária para produzir alumínio tornou-se da ordem do absurdo. Então o governo japonês, as empresas japonesas produtoras de alumínio e os trabalhadores da indústria do alumínio realizaram um debate que culminou com o fechamento de todas as usinas de produção de alumínio primário no Japão, exceto uma. Isso ainda nos anos 80. Hoje, o Japão produz apenas 30 mil toneladas. De 1,6 milhões para 30 mil toneladas. Diante da necessidade de gerar muita energia para produzir alumínio, o que o Japão fez? O governo e a sociedade japonesa disseram: “Vamos priorizar a eficiência, o maior valor agregado. Nós não precisamos produzir aqui. Tem o Brasil, tem a Venezuela, tem a Jamaica, tem os lugares para onde a gente pode transferir as plantas industriais e continuar a assegurar o suprimento para a nossa necessidade industrial. A gente pega esse alumínio, agrega valor e exporta na forma de chip. Parece uma coisa tão besta, né? Mas foi isso o que os japoneses fizeram. Eles mantiveram o crescimento econômico e reduziram a demanda por energia. Nós estamos caminhando no sentido inverso. Estamos aumentando o consumo de energia a título de crescimento e desenvolvimento, e, numa atitude absolutamente ilógica, porque a gente exporta hoje a tonelada de alumínio a US$ 1.450, US$ 1.500 dólares. E, para se ter uma ideia, hoje falta esquadrias de alumínio no mercado interno, no mercado de construção brasileiro. O preço foi aumentado por indisponibilidade. Hoje, e fizemos um estudo recente sobre isso, é preciso importar esquadrias de alumínio porque a oferta no mercado interno é insuficiente. E, enquanto o Brasil exporta o alumínio por US$ 1.450, US$ 1.500, o preço da tonelada de esquadria importada é o dobro: cerca de US$ 3 mil a tonelada.

– Para o senhor, a questão de fundo é outra…
Bermann – Nós temos pouca capacidade de produzir alumínio com valor agregado. Então, não estou dizendo para fechar essas fábricas, botar os trabalhadores na rua, mas dizendo para parar de produzir alumínio primário, que exige uma enorme quantidade de energia, e investir no processo de melhoria da matéria-prima para satisfazer inclusive a demanda interna hoje insatisfeita. Agora, vai perguntar isso para a ABAL (Associação Brasileira de Alumínio). Veja se eles estão pensando dessa forma. Billiton, Alcoa, mesmo o sempre venerado Antônio Ermírio de Moraes, com a Companhia Brasileira de Alumínio. A perspectiva desse pessoal é a cega subordinação ao que define hoje o mercado internacional, o mercado financeiro. E é assim que o nosso país fica desesperado com a ideia de que vai faltar energia.

“Não é Programa Luz para Todos, mas Luz para quase Todos ou Conta de Luz para Todos”

– Além de ser um modelo de desenvolvimento que prioriza a exportação de bens primários, sem valor agregado, é também um modelo de desenvolvimento que ignora o esgotamento de recursos. Enquanto tem, explora e lucra. Alguns poucos ganham. O custo socioambiental, agora e no futuro, será dividido por todos…
Bermann – Isso. Os recursos naturais são limitados. Por isso, no meu ponto de vista, a discussão do aquecimento global obscurece o entendimento da hidroeletricidade em particular. Ficamos às cegas. Para transformar o barro da bauxita naquele pó branco do alumínio, que depois é fundido através de uma corrente elétrica, é uma quantidade de energia enorme, absurda. Essa possibilidade você não vai conseguir com energia solar, com energia eólica. São processos produtivos que exigem a manutenção do suprimento de energia elétrica 24 por 24 horas. A solar não consegue fazer isso na escala necessária. Uma tonelada de alumínio consome 15 a 16 mil kilowatts-hora. Para se ter uma ideia, na média, o consumidor brasileiro consome, por domicílio, 180 kilowatts-hora por mês, o que é baixo. Nós ainda estamos vivendo uma situação muito próxima da miserabilidade em termos energéticos para a população. Nós temos uma demanda a ser satisfeita com equipamentos eletrodomésticos. Satisfeita não construindo grandes usinas hidrelétricas para as empresas eletrointensivas, mas para conseguirmos equilibrar a qualidade de vida, que se deve fundamentalmente a uma herança histórica: a de sermos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo.

– Uma das piores distribuições de renda e uma das piores distribuições de eletricidade do mundo…
Bermann – Eu chamo o programa de universalização de “Luz para quase todos”. Não é para todos, é para quase todos. Desde que estejam próximos da rede para extensão, tudo bem. Mas, para o sujeito distante, só agora é que se começa a pensar em sistemas de produção descentralizada. A percepção ainda é, infelizmente, de pegar e estender a rede. Mas o custo de extensão da rede é muito alto. Principalmente, se você pegar e atravessar 15 quilômetros para atender duas, três casas. O lógico seria a adoção de energia descentralizada em escala menor, que seja mais bem controlada pela população. Mas isso não passa pela cabeça porque define inclusive uma outra relação social. Eu também chamo esse programa de “Conta de luz para todos”, porque de repente você fica refém de uma companhia e necessariamente paga conta de luz, quando você poderia criar uma situação de autonomia energética.

– O senhor poderia explicar melhor quais são as alternativas para a população, já que todos nós crescemos dentro de uma lógica em que recebemos a conta da luz e pagamos a conta da luz; apertamos um botão na parede e a luz se faz. A realidade está exigindo que sejamos mais criativos e tenhamos mais largura de raciocínio. Quais são as alternativas para o cidadão comum, especialmente o de regiões mais afastadas?
Bermann – Depende muito do acesso à tecnologia existente no local ou na região. Hoje, por exemplo, temos no Rio Grande do Sul uma experiência de queimar casca de arroz para gerar energia. O calor da queima da casca de arroz aquece a água, a água se transforma em vapor e esse vapor é injetado num tubo e gira uma turbina produzindo energia elétrica. Não tem nada de fantástico nisso, esse processo é conhecido há muito tempo, mas, puxa vida, eu estou tão acostumado a simplesmente acender e apagar o botão… Vou ficar agora me preocupando se tem combustível? Existe um lado meio trágico da população em geral que é o comodismo: deixa que resolvam por mim. Então, quando você me pergunta sobre alternativas, depende do que a gente está falando. Existem alternativas promissoras deixando de produzir mais mercadorias eletrointensivas. Como também é promissor ter esquemas de financiamento para que o pequeno empresário adquira um painel fotovoltaico (placa que transforma luz solar em energia elétrica) ou uma usina de geração eólica (transformação de vento em energia elétrica). E use essa tecnologia que está disponível para satisfazer as suas necessidades, sem necessariamente ficar ligado a uma grande linha de transmissão, de distribuição, puxando energia não sei de onde.

– O que o senhor diria para a parcela da população brasileira que faz afirmações como estas: “Ah, se não construir Belo Monte não vai ter luz na minha casa”, ou “Ah, esses ecochatos que criticam Belo Monte usam Ipad e embarcam em um avião para ir até o Xingu ou para a Europa fazer barulho”. O que se diz para essas pessoas para que possam começar a compreender que a questão é um pouco mais complexa do que parece à primeira vista?
Bermann – Não é verdade que nós estamos à beira de um colapso energético. Não é verdade que nós estamos na iminência de um “apagão”. Nós temos energia suficiente. O que precisamos é priorizar a melhoria da qualidade de vida da população aumentando a disponibilidade de energia para a população. E isso se pode fazer com alternativas locais, mais próximas, não centralizadas, com a alteração dos hábitos de consumo. É importante perder essa referência que hoje nos marca de que esse tipo de obra é extremamente necessário porque vai trazer o progresso e o desenvolvimento do país. Isso é uma falácia. É claro que, se continuar desse jeito, se a previsão de aumento da produção das eletrointensivas se concretizar, vai faltar energia elétrica. Mas, cidadãos, se informem, procurem pressionar para que se abram canais de participação e de processo decisório para definir que país nós queremos. E há os que dizem: “Ah, mas ele está querendo viver à luz de velas…”. Não, eu estou dizendo que a gente pode reduzir o nosso consumo racionalizando a energia que a gente consome; a gente pode reduzir os hábitos de consumo de energia elétrica, proporcionando que mais gente seja atendida, sem construir uma grande, uma enorme usina que vai trazer enormes problemas sociais, econômicos e ambientais. É importante a percepção de que, cada vez que você liga um aparelho elétrico, a televisão, o computador, ou a luz da sua casa, você tenha como referência o fato de que a luz que está chegando ali é resultado de um processo penoso de expulsão de pessoas, do afastamento de uma população da sua base material de vida. E isso é absolutamente condenável, principalmente se forem indígenas e populações tradicionais. Mas também diz respeito à nossa própria vida. É necessário ter uma percepção crítica do nosso modo de vida, que não vai se modificar amanhã, mas ela precisa já estar na cabeça das pessoas, porque não é só energia, é uma série de recursos naturais que a gente simplesmente não considera que estão sendo exauridos e comprometidos. É necessário que desde a escola as crianças tenham essa discussão, incorporem essa discussão ao seu cotidiano. Eu também tenho uma dificuldade muito grande de chegar aqui na minha sala e não ligar logo o computador para ver emails, essas coisas. Confesso que tenho. Mas eu também percebo uma grande satisfação quando eu consigo não fazer isso. E essa percepção da satisfação é uma coisa cultural, pessoal, subjetiva. Mas ela precisa ser percebida pelas pessoas. De que o nosso mundo não existe apenas para nos beneficiarmos com essas “comodidades” que a energia elétrica em particular nos fornece. Agora isso exige um esforço, e a gente vive num mundo em que esse esforço de perceber a vida de outra forma não é incentivado. Por isso é difícil. E por isso, para quem quer construir uma usina, quer se dar bem, quer ganhar voto, quer manter a situação de privilégio, seja local ou nacional, para essas pessoas é muito fácil o convencimento que é praticado com relação a essas obras. Por mais que eu tenha sempre chamado a atenção para o caráter absolutamente ilógico da usina, das questões que envolvem a lógica econômico e financeira dessa hidrelétrica, para o absurdo que é a utilização do dinheiro público para isso, para a referência à necessidade de se precisar, num futuro próximo, enfrentar um ritmo violento de custo de vida, emitindo moeda para sustentar empreendimentos como esse, é muito difícil fazer com que as pessoas compreendam a relação dessa situação com as grandes obras. E Belo Monte é mais um instrumento disso. Eu não sou catastrofista, não tenho a percepção maléfica da hidroeletricidade. Não demonizo a hidroeletricidade. Eu apenas constato que, da forma como ela é concebida, particularmente no nosso país nos últimos anos, é uma das bases da injustiça social e da degradação ambiental. Se não é pensando em você, você necessariamente vai precisar pensar nas gerações futuras. Este é o recado para o leitor: é preciso repensar a relação com a energia e o modelo de desenvolvimento, é preciso mudar o nosso perfil industrial e também é preciso mudar a cultura das pessoas com relação aos hábitos de consumo. Nós precisamos mudar a relação que nos leva a uma cega exaustão de recursos.

“Em Brasília há um vírus letal que se chama ‘Brasilite’. É um verme que entra pelo umbigo e faz com que a pessoa se ache o centro do universo”

– O senhor acha que a Dilma tem essa obstinação com Belo Monte, em parte, por teimosia?
Bermann – Ela é muito cabeça dura.

– Às vezes eu acho que as questões subjetivas têm um peso maior do que a gente costuma dar. Não sei…
Bermann – É, mas eu também não sei, não tenho nenhuma proximidade maior com o que ela está pensando agora. O que eu sei é que, no dia a dia, lá no ministério, ela demonstrava uma capacidade muito reduzida de ouvir. Ela pode até ouvir, mas as coisas na cabeça dela já estão postas.

– Por que o senhor saiu do governo em 2004?
Bermann – Porque venceu o contrato, e eu achei que não valia a pena continuar. Há conhecidos meus que foram na mesma época que eu e estão até hoje em Brasília. Não estão mais no ministério, mas estão em Brasília. Acho que Brasília é uma cidade com um vírus letal, que é a “Brasilite”. A “Brasilite” se compõe de um verme que entra no umbigo e toma a barriga da pessoa de forma a ela achar que é o centro do universo. A partir daí, mudam as relações pessoais, o que a pessoa era e o que ela passa a ser. Eu mesmo perdi muitos amigos que começaram a empinar o queixo. Fazer o quê? E isso faz parte do “modus vivendi” brasiliense. Basta você ter um terno e uma gravata que você é doutor. Eu acho que a gente não vai muito longe alimentando isso.

– O senhor participou da elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e participou do primeiro ano de governo. Está desiludido?
Bermann – Eu não aceito quando me definem como: “Ah, você também é daqueles que estão desiludidos, estão chateados…”. Tem essa conotação, né? Em absoluto. Eu não estou desiludido, chateado, bronqueado. Eu estou indignado!

– Quando o senhor se desfiliou do PT?
Bermann – Ah, quando o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos.

(Publicado na Revista Época em 31/10/2011 e atualizado em 16/11/2011)

Os robôs não nos invejam mais

Livro mostra que, diante das classificações psiquiátricas, seríamos todos “doentes mentais” e alerta para a medicalização da vida cada vez mais cedo – transformando o ser humano da pós-modernidade numa espécie de “homo automaticus”

Os primeiros robôs da ficção tinham um conflito: eles eram criados e programados para dar respostas automáticas e objetivas, mas queriam algo vital e complexo. Em algum momento, às vezes por uma falha no sistema, eles passavam a desejar. E desejar algo que lhes era negado: subjetividade. Condenados às respostas previsíveis, revoltavam-se contra a sua natureza de autômato. Humanizar-se, sua aspiração maior, significava sentir angústia, tristeza, amor, raiva, alegria, dúvida e confusão. Os robôs da modernidade queriam, portanto, a vida – com suas misérias e contradições. Ao entrar em conflito e ao desejar, os robôs já não eram mais robôs, mas um algo em busca de ser. Um ser humano, portanto. A partir desta premissa, grandes clássicos da ficção científica da modernidade foram construídos, como O Homem Bicentenário, de Isaac Asimov, que depois virou o filme estrelado por Robin Williams.

Hoje, a pós-modernidade nos encontra em uma situação curiosa: os humanos querem se tornar robôs. Cada vez um número maior de pessoas se oferece em sacrifício, imolando sua vida humana, ao deixar-se encaixar em alguma patologia vaga do manual das doenças mentais e medicalizar o seu cotidiano para se enquadrar em uma pretensa normalidade. E assim dar as respostas “certas”.

Para quê? Ou para quem?

Basta olhar ao redor com alguma atenção para perceber que, nas mais variadas esferas do nosso cotidiano, esperam-se respostas automáticas e objetivas. Seja na área amorosa e no “desempenho” sexual, seja no comportamento profissional. Até mesmo dos bebês espera-se que atendam às classificações previstas nos muitos compêndios sobre o que esperar de um filhote humano a cada fase. Vivemos no mundo dos manuais de todos os tipos, difundidos pelo mercado editorial e reproduzidos e amplificados pela mídia, que nos ensinariam um “modo de nos usar”, com o objetivo de alcançar um tipo específico e previamente anunciado de resultado.

Dar respostas automáticas e objetivas diante de situações determinadas nos daria um lugar no mundo dos “normais”. E dos bem-sucedidos, já que hoje a normalidade é determinada por um tipo particular de sucesso. Tornar-se robô na vã tentativa de apagar a subjetividade humana é, portanto, o que uma parte da humanidade ocidental tem desejado para si – e se esforçado para impor aos filhos. E nisso tem a ajuda decisiva da indústria farmacêutica, que possivelmente nunca tenha ganhado tanto dinheiro com psicofármacos como hoje, e de um certo tipo de profissional da medicina que manipula o “Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM-IV)” como uma Bíblia.

A tese acima é o ponto de partida de um livro muito interessante lançado há pouco, chamado “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” (Via Lettera). A obra é organizada por Alfredo Jerusalinsy e Silvia Fendrik, dois dos mais brilhantes psicanalistas da atualidade. Mas, entre os nove autores brasileiros, nove argentinos, um mexicano e um francês, não há apenas psicanalistas, mas também psiquiatras, neurologistas e pesquisadores da área da neurociência. Em alguns capítulos a linguagem é árida, e a obra se beneficiaria de uma edição mais rigorosa e cuidada. Ainda assim, o tema é irresistível e a leitura abre muitas janelas de reflexão. Em certa medida, o livro responde às provocações de outra obra, “O Livro Negro da Psicanálise” (Civilização Brasileira), em que a psicanálise é violentamente atacada como “charlatanismo”. Mas, como os autores anunciam – e cumprem – “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” não é um mero contra-ataque, o que serviria apenas para empobrecer um dos debates mais relevantes da nossa época. E sim uma excelente oportunidade para discutir com inteligência e profundidade algo que diz respeito a todos nós.

Afinal, não é o caso de demonizar a indústria farmacêutica e a psiquiatria, como se tivessem o poder superior de nos fazer acreditar que os sentimentos e as contradições inerentes à condição humana constituíssem um estorvo dos quais fosse preciso se livrar com a maior rapidez possível. Tampouco radicalizar afirmando que os medicamentos não têm função alguma nem possam representar uma conquista em determinadas situações. É importante assinalar: existem casos em que os remédios são benéficos e podem ajudar a pessoa a sair de um estado de paralisia. E há bons profissionais que são parcimoniosos e responsáveis no seu uso, em geral por tempo determinado e com rigoroso acompanhamento, para que os efeitos colaterais das drogas não se tornem mais nocivos do que o problema que motivou o seu uso. Infelizmente, a realidade nos mostra que esta não tem sido a regra.

Vivemos hoje uma patologização da vida humana e um uso indiscriminado, abusivo e cada vez mais precoce de psicofármacos. A importância deste livro é nos ajudar a compreender o que isso diz sobre a forma como estamos vivendo as nossas vidas, sobre a qualidade do nosso desejo e sobre a lógica socioeconômica que tem movido nosso mundo. Para isso, de nada valeria trocar um dogma por outro. E o livro tem o mérito de não fazê-lo.

Se muitas vezes a ciência é colocada no lugar de divindade e damos aos médicos o poder de determinar como vamos viver – e como vamos morrer –, é porque nós permitimos que isso aconteça. Porque é mais fácil transferir a um outro a responsabilidade por escolhas que deveriam ser nossas. Ainda que seja difícil escapar das engrenagens do mundo, especialmente quando elas enriquecem as grandes corporações, em alguma medida é justo pensar que temos, se não liberdade, pelo menos uma paleta de alternativas. Com todos os riscos que implica escolher contra a lógica dominante.

Por exemplo. Quando os pais levam uma criança que não está dando as respostas “adequadas”, seja em casa ou na escola, a um psiquiatra ou a um pediatra ou a um neurologista ou a qualquer outra especialidade e saem de lá com um diagnóstico e uma receita de psicofármaco, não me parece que estão sendo enganados. Acredito que a ética do médico pode ser questionada. Mas acredito também que os pais, assim como cada um de nós, procuram – e encontram – o profissional que vai dizer aquilo que gostariam de ouvir.

Hoje parece mais fácil para os pais lidar com um diagnóstico de transtorno psiquiátrico e tentar calar seus filhos com medicamentos do que empreender uma travessia que seguramente será mais espinhosa, exigirá tempo e dedicação maiores e poderá levar a respostas impossíveis de prever – quando não a novas perguntas. Da forma como hoje é colocado, o “transtorno” mental aparece como algo que está convenientemente fora, não tem nada a ver nem com o paciente, nem com o funcionamento da família. Sem contar que parte dos pais adora delegar a difícil tarefa de serem pais – e parte dos médicos adora assumir a prazerosa tarefa de ser Deus.

No capítulo intitulado “Gotinhas e comprimidos para crianças sem história. Uma psicopatologia pós-moderna para a infância”, Alfredo Jerusalinsky afirma: “Nos últimos trinta anos, tem havido um deslocamento das categorias nosográficas (de descrição das doenças) para o terreno dos dados. Não se questiona o que quer dizer este ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (…) Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (…) É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem transtorno. É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera transformação terminológica. Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido; um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta. Os nomes das categorias não são inocentes”.

E, mais adiante: “De nossa parte, continuamos sustentando uma psicopatologia interpretativa, o que quer dizer não nosográfica, porque não depende de dados, não depende de sintomas, mas de deciframento. (…) Colocam na cabeça dos pais que eles não têm nada para ver nem entender e, então, eles se comportam como se não tivessem nada para ver nem entender; consequentemente a criança fica condenada aos automatismos mentais. Mas, claro, para eles só existem os automatismos mentais, então o que é preciso é trocá-los por outros”.

Quando as crianças apresentam um comportamento não esperado (esperado por quem e para quê?), a resposta predominante de pais, médicos e professores têm sido não escutar, mas transformar expressões em transtornos porque o que a criança diz, por palavras, gestos ou ações, pode transtornar os pais. E por isso precisa ser calado o mais cedo e o mais rápido possível. Em nome desta lógica, esquece-se de que somos seres dotados de inteligência e são poucos os que se questionam: se nunca houve tantos diagnósticos psíquicos (e, portanto, tantas patologias), se nunca existiram tantos medicamentos disponíveis para tratar essas doenças ou distúrbios, por que o número de casos não para de crescer e estaríamos vivendo verdadeiras epidemias de doenças mentais, transtornos de comportamento ou como queiram chamar essas síndromes que têm se multiplicado como coelhos? Não seria legítimo questionar: então, os remédios não curam?

Se aceitarmos como verdade única que o problema se resume a uma disfunção química no nosso cérebro, alheia ao viver, algo da ordem dos mecanismos fisiológicos, como o desarranjo de um sistema robótico, não bastaria “corrigir” com drogas para ser “curado”? Pelas estatísticas, tão valorizadas e difundidas pela própria indústria, sabemos que não é isso o que está acontecendo. O número de “depressivos”, “bipolares” e doentes do “pânico”, no mundo dos adultos, assim como o número de crianças com “transtorno de hiperatividade e déficit de atenção” e até mesmo com “autismo” não para de crescer. Se os remédios são tão eficazes e os diagnósticos tão fáceis de fazer como aqueles testes que a imprensa costuma publicar, do tipo “descubra se você é depressivo”, os doentes não deveriam diminuir em vez de aumentar? Afinal, sempre que a ciência descobriu a cura ou uma vacina para as doenças, iniciava-se um processo de redução no número de casos até a total erradicação.

Sobre este aspecto, os organizadores levantam uma questão interessante na apresentação da obra: “A ligeireza (e imprecisão) com que as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram seu mercado. Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão geométrica a quantidade de ‘doentes mentais’”.

Para complementar essa ideia, vale a pena ler a ótima entrevista feita pela jornalista Cláudia Collucci na Folha de S. Paulo de 18 de outubro. Sob o sugestivo título “Estamos dando veneno para as crianças”, Marcia Angell, professora titular do departamento de Medicina Social da Escola Médica de Harvard, critica a indústria farmacêutica por estimular o uso de medicamentos psiquiátricos em pacientes infantis. E também em adultos. Angell diz: “As pessoas creem que as drogas sejam mágicas. Para todas as doenças, para toda infelicidade, existe uma droga. A pessoa vai ao médico e o médico diz: ‘Você precisa perder peso, fazer mais exercícios’. E a pessoa diz: ‘Eu prefiro o remédio’. E os médicos andam tão ocupados, as consultas são tão rápidas, que ele faz a prescrição. Os pacientes acham o médico sério, confiável, quando ele faz isso. Pacientes têm de ser educados para o fato de que não existem soluções mágicas para os seus problemas. Drogas têm efeitos colaterais que, muitas vezes, são piores do que o problema de base”.

O que vale a pena perceber é que ninguém é normal, mesmo. Basicamente porque não há como saber o que seja isso. O que não é razão para sermos todos tratados como portadores de algum transtorno mental desde bebê. Como afirmam Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik: “A generalização e multiplicação dos signos psicopatológicos preparam o território para a expansão industrial na fabricação de psicofármacos, que passam a ser consumidos em massa. Nasce assim uma hipocondria dos estados de humor, dos afetos, das dúvidas, dos desejos, das tristezas. As variações mentais e as singularidades pessoais são comparadas com uma média estatística que cria uma medida comum inexistente na realidade. Esse ‘boneco padrão’ subjacente descreve uma ‘normalidade’ definida pela uniformidade. Comparados com ele, viramos todos ‘doentes mentais’”.

A tentativa de classificar toda singularidade como anormalidade pode se tornar uma grande comédia. Em 1992, o psicólogo clínico britânico Richard Bentall propôs em um artigo para o “Journal of Medical Ethics” o seguinte: classificar a felicidade como distúrbio psiquiátrico e incluí-la no manual dos transtornos mentais (DSM-IV). Richard escreveu com grande rigor acadêmico e citou 32 artigos de importantes revistas científicas britânicas. Passo a passo, ele prova que a felicidade é um estado estatisticamente anormal, acompanhado por sintomas como disfunção cognitiva e marcado por uma percepção distorcida da realidade.

Os pacientes afetados por esse distúrbio apresentam um quadro de euforia, sem contrapartida real, podendo resultar em desvantagem adaptativa. Sem contar que há uma relação significativa da felicidade com obesidade e ingestão de álcool. Richard propõe que os psiquiatras busquem tratamento para a felicidade e sugere até um nome para classificá-la como doença mental: “major affective, pleasant type”. A história é deliciosa porque Richard percebeu que, para evidenciar o absurdo que estava – e continua – sendo praticado, só mesmo assumindo o discurso psiquiátrico, mas pelo avesso. Se a tristeza é tratada como uma anomalia que pode e precisa ser curada, por que não a felicidade?

Ao olhar hoje para nós, com seus olhos artificiais, com o que um robô se depararia? Acho que uma das respostas pode ser encontrada em “Wall-e”, a bela animação da Pixar. Aliás, fica uma dica das mais agradáveis: pegue na locadora estes dois filmes sobre robôs, mas de épocas diferentes, “O Homem Bicentenário”, inspirado no texto de Isaac Asimov publicado na década de 70, e “Wall-e”, que recebeu o Oscar de melhor animação em 2009. “Wall-e” é um filme brilhante, “O Homem Bicentenário” deixa a desejar, mas juntos podem ser um ponto de partida interessante para pensar – sozinho, com os amigos ou com a família – sobre as mudanças ocorridas nas últimas décadas na forma de enxergar a nós mesmos.

O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea” afirma que o ideal pós-moderno é o pensamento simplificado: memória reduzida + seleção de respostas corretas. Dizem Alfredo e Silvia: “Enquanto a cibernética eletrônica procura engenhosamente capacitar seus robôs para responder a questões cada vez mais aleatórias, e até para formular perguntas, nós humanos somos levados a uma ‘padronização’ do controle da ‘mente’. Amparados em padrões diagnósticos cada vez mais amplos – depressão, TOC, Asperger etc –, incluem-se os mais heterogêneos conjuntos de sintomas justificando deste modo a utilização dos mesmos psicofármacos. (…) Em um mundo em que o sujeito se desvanece ao redor da promessa de ter respostas para tudo, curiosamente surgem e proliferam as ‘patologias’ (…). O modelo atualmente proposto substitui o saber pela informação, a falta pela completude, a busca pela resposta ‘já’, a singularidade da diferença pela repetição do idêntico, o enigma do passado e do futuro pela pretensa certeza garantida do presente. O ideal seria que adaptássemos nossa experiência àquilo que, com toda a propriedade, poderia se chamar: Homo Automaticus?”.

Um dos traços marcantes da modernidade é a descoberta de que nossa consciência é apenas uma pequena parte do que somos. Há um vasto mundo inconsciente ou pré-consciente que nos constitui. Assim, não deixa de ser curioso, ainda que bastante lógico, que a partir da descoberta transformadora de que a consciência nem nos governa nem é nosso “eu” total, de repente desejamos nos robotizar para escapar da aventura ao mesmo tempo extraordinária e assustadora que é criar uma vida. Será que o melhor acordo que podemos fazer com nós mesmos é engolir pilulinhas na tentativa de manter um ilusório controle sobre nossa mente e sobre o outro, quando se trata de nossos filhos? Pílula para comer ou para não comer, pílula para dormir ou para ficar acordado, pílula para ter desejo sexual ou para diminuir o desejo sexual, pílula para se acalmar ou para estimular… Como se a condição humana, com todas as suas ambiguidades, pudesse ser reduzida ao mero ajuste de um corpo-máquina.

O crescimento dos distúrbios mentais na mesma proporção das supostas pílulas da felicidade e de outros “ajustadores” da mente mostra que há algo que não fecha nessa conta. Enquanto puder, a indústria farmacêutica vai continuar ganhando com a transformação de qualquer sofrimento em patologia e com a consequente medicalização da vida. E, quando (e se) algo mudar, vão ganhar com outra coisa. Mas nós, nós e nossos filhos, só temos uma vida para viver da forma mais ampla e rica possível. Convém não perdê-la na tentativa de anular a singularidade que nos pertence.

Como dizem Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik, os organizadores de “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”: “Os robôs não precisam se preocupar, já que hoje em dia parecem ser eles os que encarnam o ideal: sem desejos, sem envelhecimento, sem falhas, com automatismos garantidos para cada situação específica, sem vacilação, tudo positivado em um pensamento ‘positivo’. No entanto, devemos sublinhar que, enquanto aqueles robôs dos anos 1930 representavam em sua rebelião os ideais de um modernismo romântico, os atuais ‘transtornos’, sob suas formas toxicomaníacas, bulímicas, anoréxicas, de padrões sociais de sucesso ou de quimiopsiquiatria, representam a obediência recoberta por um falso manto de liberdade”.

Por mais que tudo nos empurre para a patologização e a medicalização da vida na busca de uma normalidade inexistente, acredito que há algo do humano que resiste, que não é calado e que grita, ainda que dopado. É por isso que a conta não fecha. Porque, por mais que se divulgue a crença – e é neste momento que a ciência se coloca no lugar da religião – de que é possível controlar o sofrimento e garantir a felicidade, a humanidade que mora em nós desmascara essa ilusão dia após dia. E por isso é preciso encontrar uma nova panaceia para dar conta de cada novo “transtorno”.

Se a dor é inerente à vida, ela necessariamente não é algo ruim, mas algo que nos impele a buscar um jeito de viver que faça mais sentido para nós. Se a confusão pode ser infernal no cotidiano, com todas as dúvidas que ela traz, não há como achar algo ou a si mesmo sem ela, para em seguida nos perdermos de novo, porque é assim que alcançamos outros mundos também dentro de nós. A angústia não deve ser silenciada, mas ouvida, porque está nos dizendo algo que nos diz respeito. E, se você for pai ou mãe, é sua a responsabilidade de lidar com as questões trazidas por seus filhos, sejam em forma de palavras, de gestos ou de comportamento. É sua – e não dos médicos – desde que você escolheu ser pai ou mãe – e até que suas crianças progressivamente assumam a responsabilidade pelos rumos da própria vida. E, acredite, a melhor forma de lidar ainda começa por escutar. Escutar de verdade.

É na incompletude, que não se fecha com nenhuma pílula, que talvez possamos, individual e coletivamente, empreender uma busca sem nenhuma garantia, como são todas as buscas, que nos leve a criar uma vida que ainda possa fazer um robô aspirar a uma existência humana.

(Publicado na Revista Época em 24/10/2011)

A pequenez do Brasil Grande

A ditadura acabou, mas a palavra “desenvolvimento” continua sendo torturada para confessar o que o governo deseja que o povo acredite

No início deste ano, Sheyla Juruna viajou pela Europa para levar sua voz contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu. Em agosto, durante uma entrevista em Altamira, no Pará, eu perguntei a ela o que tinha achado do que viu. Ao fazer a pergunta, imaginava escutar sobre o assombro de uma indígena criada na Amazônia diante da arquitetura e da arte que povoam as ruas e os museus das principais capitais europeias. Afinal, deslumbramento é a reação habitual de quem viaja a países como a França. Ao me responder, uma sombra passou pelo rosto de Sheyla, uma bela mulher de 37 anos com os traços bem marcados de sua etnia e olhos e cabelos bem pretos. A sombra passou e não foi embora. Para meu espanto, Sheyla assim respondeu à minha pergunta:

– Eu estranhei. Fiquei triste e oprimida. Não consegui enxergar beleza. É um mundo de concreto. Terrível. Só conseguia pensar no que havia antes que foi destruído para que aquilo tudo pudesse existir. Só conseguia pensar nos povos que viviam lá antes e viraram História.

Vários filósofos já escreveram sobre a importância essencial do espanto para alcançar o outro e construir conhecimento. E nós, jornalistas, aprendemos isso na prática. O melhor costuma nos chegar pelo espanto. Pelo menos, foi assim que me senti diante de Sheyla Juruna. Bem espantada, porque a beleza arquitetônica das capitais e cidades históricas da Europa sempre me elevaram – jamais me oprimiram. E ali estava aquela mulher, com uma sombra instalada no rosto bonito, me desvelando outro jeito de ver o mundo, nascido de uma experiência totalmente diversa. Para Sheyla, forjada na lógica da destruição, ao deparar-se com as capitais europeias o que ela vê é o que não mais está lá. Então, ela diz:

– Nós, indígenas do Xingu, não queremos virar História. Nós queremos permanecer vivos, nós queremos continuar.

O mais eloquente para Sheyla Juruna ao conhecer a Europa é a ausência. Porque a experiência de Sheyla mostra que, para que um mundo possa ser construído, outro tem de ser destruído. E o mundo destroçado, ontem como hoje, é sempre o dela. E é por conta desta nova tentativa de destruição que Sheyla fez o caminho inverso dos navegadores portugueses e desembarcou na Europa. E ali se sentiu oprimida pelo que não enxergou.

Quem é Sheyla Juruna, que nos enriquece com o olhar do avesso? Ela é uma indígena cuja cultura foi tão dilacerada que hoje, para alertar o Brasil e o mundo da devastação que Belo Monte vai causar, precisa fazer isso na língua dos dominadores, já que a sua lhe foi roubada. Quando sua bisavó tinha nove anos, seu povoado foi incendiado pelos brancos que ocuparam a Amazônia no ciclo da borracha. Para não ser morta junto com sua família, passou a noite escondida numa castanheira, na floresta. Quando amanheceu, continuou fugindo pela mata até deparar-se com um seringal. Foi então “amansada” pelo patrão. Proibida de falar a língua do seu povo, seu nome também foi apagado. E este silêncio foi sendo transmitido de geração para geração de mulheres. Até Sheyla.

Sete anos atrás, à beira do caixão da avó, filha desta primeira vítima da ocupação da Amazônia, Sheyla jurou lutar pela floresta que representa toda a possibilidade de vida para ela e sua comunidade.

– O espírito nos escuta, e nós escutamos o espírito. Então eu disse a minha avó: “Eu prometo que nunca vou deixar de lutar. Tudo o que a senhora não conseguiu conquistar, eu prometo que vou tentar conseguir. Nunca vou desistir dessa luta, nunca vou desistir de lutar por nossos direitos”.

Sheyla chora agora. E me explica que a vida não está apenas nas árvores e nas flores, no rio que corre livre e cristalino nem nas espécies de peixes, pássaros, animais e insetos, mas num modo de ver e de estar no mundo. Num modo de ser – no mundo. É isso que Sheyla nos dá ao nos espantar com seu olhar sobre a Europa.

Em setembro, contei a história dela e deste olhar para europeus, numa palestra no Festival de Literatura de Mântova, na Itália. Muitos rostos na plateia se iluminaram no início, antecipando o maravilhamento de Sheyla diante da cultura europeia, acostumados que estão a serem admirados. E foi ainda mais evidente a confusão estampada em suas faces quando contei da resposta de Sheyla. Nas horas e dias que se seguiram, aqueles que me encontravam nas ruas da cidade e nos eventos do festival comentavam sobre como foi ao mesmo tempo chocante e rico aquele olhar inusitado sobre a sua cultura. E foi aquele olhar que fez com que compreendessem o que estava em jogo naquele momento na Amazônia brasileira.

Em nossa conversa, os olhos de Sheyla escureceram ainda mais depois de seu relato de viagem. Percebi que se alagavam como acontecerá com a floresta se sua luta for em vão. Mas é de água salgada – e não da água doce do Xingu – que os olhos de Sheyla se inundam quando fala na avó e no futuro próximo. Sheyla dói. Ela é o tipo de mulher que chora também de raiva. Ela diz então:

– Eu odeio a palavra “desenvolvimento”. O Estado sempre usou esta palavra para justificar a destruição. Não deveria ser assim, né? O desenvolvimento deveria dar condições para as pessoas viverem na sua própria forma de ser, na sua cultura. Mas, na prática, o desenvolvimento é usado para nos destruir. Porque o desenvolvimento não existe para sustentar a vida, mas para o lucro das empresas e de quem faz as políticas. Em nome do desenvolvimento meus antepassados perderam até a língua que falavam. E agora poderemos perder também a vida. De novo, em nome do desenvolvimento. O que é Belo Monte? A destruição da Amazônia e da vida dos povos que vivem lá em nome do desenvolvimento. Eu detesto, detesto essa palavra.

Sheyla Juruna tem o dom precioso do estranhamento. Ela não aceita fácil o que lhe dizem. Tampouco sai repetindo os discursos dos que defendem o mesmo que ela. Numa região em que parte das lideranças indígenas foi corrompida por cestas básicas, combustível e até isqueiros, como nos tempos em que se trocava ouro por espelhinhos, Sheyla se destaca com sua lucidez. Talvez por ter perdido o idioma, com tudo o que o idioma carrega, ela tenha um respeito profundo pelas palavras, ainda que sejam as palavras da língua de quem assassinou o seu povo.

Alguém já disse que as estatísticas oficiais costumam torturar os números até que eles confessem. Sheyla mostra que, com o discurso do desenvolvimento, se passa o mesmo. Se “bem” torturado, pode servir – e tem servido – para quase tudo. É assim que Sheyla nos ajuda a estranhar não só a Europa, mas também o Brasil. Nos ajuda a ver o que não está também aqui. E, neste momento, mais do que em qualquer outro período histórico, esperávamos que estivesse.

Nesta segunda-feira, 17/10, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em Brasília, deverá julgar a ação civil pública que pede a interrupção de Belo Monte com base na exigência constitucional de que os índios sejam ouvidos. Segundo o artigo 231 da Constituição Federal, as comunidades indígenas deverão ser consultadas previamente no caso de aproveitamento hidrelétrico que afetem as populações. No momento em que esta coluna é publicada, o julgamento ainda não ocorreu. Sheyla Juruna é uma das que reivindica que seu povo seja escutado.

– Durante todo o processo de Belo Monte, nunca houve uma consulta específica aos indígenas. Ficamos esperando que acontecesse, mas não aconteceu. O governo federal apenas mente que nos escutou. E nós lutamos para mostrar que não fomos escutados e, sim, queremos e temos o direito de sermos ouvidos.

Eu lembro bem da ditadura militar. Era pequena, mas ela marcou a minha vida de várias maneiras. Quando cresci, li tudo o que pude sobre esse período histórico, porque queria adquirir maior conhecimento. E, quando me tornei jornalista, escutei muitas vítimas do regime. Quando criança, porém, ao folhear as revistas dos anos 70, não conseguia evitar um certo fascínio ao deparar-me com a propaganda do governo militar sobre a Amazônia, naquele tempo tão distante de mim quanto a Lua. “Uma terra sem homens para homens sem terra”, “Integrar para não entregar”, “Deserto verde”… eram alguns dos slogans e expressões que povoavam a ocupação da floresta pela ditadura. Só quando cresci eu soube que sempre tinham existido muitos homens, mulheres e crianças na Amazônia – e que parte deles havia sido vítima de genocídio na ocupação promovida pelo Estado brasileiro. E que não havia deserto, só verde. O deserto veio depois, patrocinado pelo governo e financiado por dinheiro público.

Depois de tudo, agora me espanto com a sensação de estar revivendo algo fora de época. O PAC para a Amazônia do governo Lula e agora do governo Dilma é um grande projeto de ocupação baseado em obras faraônicas, financiadas por dinheiro público, com a mesma lógica predatória e imediatista do passado. E, principalmente, com o mesmo o discurso do desenvolvimento. Não o desenvolvimento sustentável, que mobiliza o planeta, mas aquele surrado desenvolvimento dos velhos tempos. Só não se fala – muito – em “progresso”, porque esta palavra realmente até os mais obtusos teriam dificuldade de engolir na segunda década do século XXI.

Tenho virado as páginas de jornais e revistas da democracia e lido coisas que me remetem a uma época em que a imprensa vivia sob censura. Pego na porta de casa o exemplar dominical de um dos maiores jornais do país. E lá está a manchete: “Amazônia vira motor de desenvolvimento”. Tive uma sensação estranhíssima. Me lembrava de muitos títulos parecidos, mas nos anos 70. A certa altura da reportagem, leio lá: “Para acelerar a implantação dos projetos, o governo federal estuda uma série de mudanças legais. Entre elas estão a concessão expressa de licenças ambientais, a criação de leis que permitam a exploração mineral em áreas indígenas e a alteração do regime de administração de áreas de preservação ambiental”.

Ou seja: o governo federal pretende anular as conquistas democráticas das duas últimas décadas na área socioambiental. Em nome do mesmo tipo de desenvolvimento pregado na ditadura, com consequências amplamente documentadas: devastação, genocídios, conflitos e assassinatos que seguimos testemunhando. Como se 40 anos não tivessem se passado desde a década de 70 – e como se nesse período o povo brasileiro não tivesse reconquistado a democracia e as melhores cabeças do planeta não tivessem compreendido que a grande riqueza natural e estratégica para o futuro é a água e a biodiversidade.

Sim, o “desenvolvimento” está de volta. Não que algum dia tenha abandonado as mentes ávidas de alguns, arcaicas de outros, mas o surpreendente agora é que nem mesmo existe a preocupação de disfarçar o dinossauro com um modelito mais fashion. Repetem por aí que se as obras não saírem vai faltar luz na casa dos pobres e este é todo o respeito (não) demonstrado pela inteligência do povo que os elegeu. E, o mais inusitado: as velhas ideias sobre a ocupação da Amazônia saem do papel para a floresta concreta justamente nos governos do primeiro presidente operário e da primeira mulher presidente – em cuja biografia está o combate à ditadura militar a um custo pessoal bem alto.

Não é espantoso? O Brasil segue sendo um país assinalado pelo absurdo. E, como diria Sheyla Juruna, estranhar é preciso.

(Publicado na Revista Época em 17/10/2011)

A Vida Que Ninguém Vê

Uma repórter em busca dos acontecimentos que não viram notícia e das pessoas que não são celebridades. Uma cronista à procura do extraordinário contido em cada vida anônima. Uma escritora que mergulha no cotidiano para provar que não existem vidas comuns. O mendigo que jamais pediu coisa alguma. O carregador de malas do aeroporto que nunca voou. O macaco que ao fugir da jaula foi ao bar beber uma cerveja. O álbum de fotografias atirado no lixo que começa com uma moça de família e termina com uma corista. O homem que comia vidro, mas só se machucava com a invisibilidade.

Essas fascinantes histórias da vida real fizeram sucesso no final dos anos 90, quando as crônicas-reportagens eram publicadas na edição de sábado do jornal Zero Hora. Reunidas agora em livro, formam uma obra que emociona pela sensibilidade da prosa de Eliane Brum e pela agudeza do olhar que a repórter imprime aos seus personagens – todos eles tão extraordinariamente reais que parecem saídos de um livro de ficção.

A edição que marcou a estréia da Arquipélago Editorial – reúne as 21 melhores colunas de A Vida Que Ninguém Vê acrescidas de textos que revelam o “dia seguinte” de dois personagens emblemáticos da série de reportagens: Adail realizou seu grande sonho, enquanto Antonio sofreu de uma segunda tristeza. Ao final do volume, um texto inédito de Eliane avalia, com o distanciamento que o tempo oferece, o que há por trás dessa vida que (quase) ninguém viu. É mais uma prova da força do trabalho da autora. E uma demonstração de que a reportagem é uma arte.

Informações Técnicas
Ano de Lançamento:2006
Editora: Arquipélago Editorial
Número de Páginas: 208
ISBN: 9788560171002

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Matérias e resenhas sobre o livro:

A arte de tornar visível – Matéria publicada na Revista da Cultura
Jornalismo-arte – Coluna de Diana Corso no jornal Zero Hora
A dor da gente sai no jornal – Matéria publicada no Jornal do Brasil
Olhos da alma – Resenha publicada no Correio Braziliense

Degustação do capítulo: Adail quer Voar

Degustação do capítulo: Enterro de Pobre

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