Cadê a pessoa?

Minha amiga B, os russos, a vida pública e um pato de borracha

“Eu não acho, não acho”. A voz aflita de B no celular me alarma. Há meses eu só uso o aparelho para pegar recados ou ligar para amigos com a mesma operadora. Mas, por esquecimento, ele estava ligado, e o nome dela apareceu na tela, junto com o toque de urgência que me faz detestar celulares. Atendi. E, desta vez, era uma urgência. Passei muito tempo sem ver B, anos, e um dia, neste último fevereiro, nos encontramos em um curso de literatura russa. Isaac Bábel, mais especificamente, nos uniu de novo. “O que você não acha?”, perguntei, com certa precaução na voz. B é talvez mais intensa do que eu e está sempre às voltas com dilemas que não estão nos jornais. “A pessoa”, ela disse. “Eu não acho a pessoa.”

Fui na hora tomada por uma golfada de felicidade. Ela não estava aflita porque perdera o informe do imposto de renda enviado pelo banco, ou seus brincos de pérola, ou um vinil dos Secos & Molhados. Não. B perdera a pessoa.

“Hum”, fiz eu, em boa performance psicanalítica. B explicou-me então que não sabia quando perdera a pessoa, mas podia localizar o momento exato em que descobrira que a tinha perdido. Ela tomava um chocolate quente e tentava ler as notícias do jornal. O Cachoeira, o Demóstenes, a mulher amantíssima do Cachoeira, a votação das cotas raciais no Supremo, a popularidade da Dilma, o Código Florestal…

Neste ponto da leitura, B havia corrido ao Twitter para entrar na campanha “Veta Dilma. Veta Tudo”. Engatou alguns diálogos de 140 caracteres com desconhecidos conhecidos, deu alguns cliques e, quando voltou a tomar um gole de chocolate, percebeu que o leite esfriara. Foi nesse instante, me garantiu ela, que descobriu que tinha perdido a pessoa.

B tinha acabado de ler um conto e um romance russos. O famoso “A dama do cachorrinho”, de Tchekhov, e o “Oblómov”, de Ivan Gontcharov. A combinação dos dois fez com que uma lâmpada se acendesse dentro de B – e, de súbito, ela descobriu o que não estava mais lá. A pessoa.

Em “A Dama do Cachorrinho”, Tchekhov nos mostra, através de uma história de amor, que temos duas vidas: uma visível, assumida, às claras; e outra secreta. Uma “evidente”, “cheia de verdades convencionais e de mentiras convencionais”, exatamente igual a de todos; e outra que transcorre nos vãos.

No caso do personagem de Tchekhov, tudo o que era para ele indispensável, relevante e sincero, tudo o que não era engano, se passava no escuro de si. E tudo o que era “sua mentira, sua casca, na qual ele se escondia para encobrir a verdade”, como seu trabalho no banco, as discussões no clube, os compromissos sociais com a esposa, tudo isso era visto e compreendido como se fosse ele – mas era apenas aquilo que o ocultava.

Neste ponto, B começou a chorar. “Não vale a pena ter uma vida em que o mais importante de mim precise respirar nas sombras”, dizia. “Meus eus devem coincidir.” Havia uma nota tão rascante em seu choro, como uma porta enferrujada por anos que começa a se abrir à força.“Você é tudo isso”, eu disse, numa tentativa de consolo. “Inclusive essa máscara social que você usa para que o mundo não te mastigue.”

B apenas chorou mais. “Você não está entendendo. Eu não estou recusando o contraditório de mim. Eu estou recusando essa máscara que me torna alguém plano e palatável. Vale a pena viver escondendo as verdades que mais me importam?” B agora tinha raiva, e apontava essa raiva para mim. Ela continuou: “Se o mundo quiser me mastigar, que mastigue. Mastigará carne, e não um cupcake.” Desta vez, eu apenas disse: “Estou indo praí”.

Encontrei B estatelada no sofá, olhando para o teto. O rosto inchado de choro, mas já com o peito subindo e descendocom regularidade. Eu não havia lido o “Oblómov”, porque nunca encontrei uma tradução para o português que me animasse. Mas sabia que era uma sátira sobre a imobilidade da aristocracia russa em meados do século XIX, diante dos acontecimentos que precederam e anunciaram a revolução de 1917.

Não para B.

Durante mais ou menos 150 páginas de romance, Oblómov não sai do seu sofá. Incapaz de agir e de escolher, o personagem se imobiliza. Como B, no momento em que me conta sobre ele. Oblómov recebe visitas de pessoas que representam diferentes papéis no espectro da sociedade da época. E, quando essas pessoas lhe contam do mundo, lhe contam do mundo por suas ações e pelas ações de outros, Oblómov só faz pensar: “Cadê a pessoa?”.

Pensei que B estava adivinhando sentidos no romance que só faziam sentido em seu estado delirante. Mas, dois dias depois do enigmático telefonema de B, eu me distraía com um livro bastante delicioso chamado “Os possessos – aventuras com os livros russos e seus leitores” (Leya), quando descobri que a autora, Elif Batuman, tinha lido “Oblómov” com um olhar muito semelhante ao de B.

Em seu livro, Batuman, uma americana de origem turca que hoje vive em Istambul, entrelaça os escritores russos e seus protagonistas com os personagens contemporâneos do mundo acadêmico que inventam sentidos para suas vidas a partir da interpretação de suas obras. E o faz com humor, sensibilidade e sarcasmo. Sorri ao pensar que B e eu também cometíamos um pequeno enredo desatinado, às voltas com os russos que nos uniram por acaso depois de tanto tempo.

Batuman afirma, em um dos ensaios do livro: “Vejo agora que o problema da pessoa era a chave da preguiça de Oblómov. Ele é tão avesso a se reduzir a soma das ações que decide sistematicamente não agir – e desse modo revelar mais inteiramente sua verdadeira pessoa, e deleitar-se nela, não adulterado”. Publicado em 1859, “Oblómov” quase coincide, no tempo, com a obra-maravilha do americano Herman Melville: “Bartleby, o escriturário”, livro que faz parte dos meus amores mais profundos. Como Oblómov, mas diferente dele, Bartleby a tudo apenas dizia: “Prefiro não fazer”.

Assim é descrita uma das visitas recebidas por Oblómov em seu já mítico sofá. “Um antigo colega do serviço público conta a Oblómov da sua recente promoção a chefe de seção, seus novos privilégios e responsabilidades. ‘Com o tempo ele será um figurão e conseguirá um alto posto’, Oblómov pondera. ‘Isso é o que a gente chama de uma carreira! Mas como requer pouco da pessoa: sua mente, seu desejo, suas emoções não são necessárias.’ Esticando os membros, Oblómov sente-se orgulhoso por não ter relatórios a preencher e pelo fato de ali no sofá ‘haver amplo espaço tanto para as suas emoções como para a sua imaginação’. ”

Um século e meio mais tarde, B, no sofá da sala de seu apartamento de classe média paulistana, encarna Oblómov à sua própria maneira: “Cadê a pessoa?”. Ou: “Perdi a pessoa!”. B conta-me que se sente exposta, toda virada pra fora, uma mulher em seu avesso. Nos últimos anos ela se tornara uma personagem das redes sociais. E , desde que nos reencontramos, tenta me convencer a entrar no Facebook. B gosta de viver em rede e está longe de ser uma solitária que achou um jeito de existir na internet. Apenas que ela pensara ter se feito presente ali mais do que em qualquer outra geografia. Mas, de repente, B não mais se reconhece no personagem que criou. “Virei uma prisioneira”, ela diz. “Do quê?”, pergunto eu, a essa altura já bastante perturbada. “Dessa persona pública que me tornei. Todo mundo me conhece, e eu me desconheço.”

B descobrira que era uma pessoa – sem pessoa. “Estou reduzida a ações, a verbos. Virei um noticiário, eu, que nunca acreditei em fatos. Mesmo quando analiso, quando infiro, quando relaciono… são ações. É um eco, só um eco. Não sei mais onde está a voz que o gerou.” Diante dela, eu tentava descobrir a pessoa em mim que poderia resgatar a pessoa de B. Aquilo que me levara a deixar a minha casa no meio de uma manhã de trabalho para ajudá-la a procurar não o passaporte ou o título de eleitor, mas a pessoa que havia se desgarrado dela. Encolhi-me na poltrona, antes de arriscar. “Ninguém te conhece. E você não conhece ninguém”, disse. E minha voz saiu mais aguda do que eu planejara. “São poucos os que podem nos conhecer, o resto é o bando que se alimenta e se protege mutuamente, ferindo quem for preciso para não ter sua posição ameaçada. Você quer ofertar seu corpo verdadeiro para que o canibalizem?”

Eu também estava confusa. “Há uma escuridão, e eu sou essa escuridão”,repetia B. “E lá, em algum ponto desse buraco negro, há uma pessoa que grita, mas ela está presa na nuvem. A conexão se perdeu, eu me perdi.” Percebi que B, minha amiga mais presente, no presente, a mais pública, a mais conectada sentia-se incorpórea. Sentia-se uma pessoa sem pessoa – e também sem corpo.

Quando juntas estudávamos a obra de Isaac Bábel, eu e B havíamos chorado ao tomarmos conhecimento da lista dos pertences encontrados no apartamento do escritor, em Moscou. Bábel fora preso pela polícia de Stálin. Seus manuscritos foram confiscados, seu nome apagado de enciclopédias, dicionários literários e roteiros de cinema, seus óculos quebrados, seu corpo torturado e, até ser executado por um pelotão de fuzilamento, tudo o que ele pedia era: “Deixem-me concluir minha obra”. Os manuscritos de Bábel desapareceram, e ele será sempre um homem inconcluso – como todos nós e, de certo modo, mais que todos. Mas o que fez eu e B nos comovermos para além da brutalidade do regime de Stálin, que executara também as letras de Bábel, foi descobrir no espólio do escritor “um pato de banho”.

Se a pessoa de Bábel estava em algum lugar, pensei, era naquele pato de borracha. Sem saber o que fazer, lançada na claridade pela lucidez excessiva de B, agarrei forte a sua mão. Agarrei para machucar, para que B sentisse as minhas unhas. Eu sabia que, se a “pessoa” de nós estava em algum lugar, era naquele toque que nos impedia de submergir no que o personagem de Tchekhov chamou de “verdades convencionais e mentiras convencionais”.

Não me parece que B seja a única a vagar por aí gritando: “Cadê a pessoa?”. Por isso pedi a ela autorização para contar da sua perda a vocês. B a deu na hora. Mas quando lhe perguntei se poderia colocar seu nome, ela negou com veemência: “Se você revelar meu nome, eu perderei a pessoa para sempre. A pessoa está fora do nome”.

(Publicado na Revista Época em 30/04/2012)

Suprema Humanidade: quando as excelências perdem a excelência

A briga dos ministros do STF nos lembra de que, por baixo da toga, os juízes estão tão nus quanto qualquer um

Désinvolture brega, caipira.

A expressão, usada pelo ministro Joaquim Barbosa para referir-se ao ministro Cezar Peluso, pode ser a síntese dos dilemas expostos pela briga que ganhou as manchetes na semana passada. É o que confere qualidades shakespearianas à troca de golpes abaixo da linha de cintura, a rigor mais adequada a uma pelada de futebol de várzea. É onde mora a tragédia.

Reparem bem no drama. Joaquim Barbosa queria – e chamou – seu colega Cezar Peluso de “brega, caipira”. Brega, portanto, não era suficiente, para o ministro. Ele tinha ainda de adicionar mais um suposto sinônimo – e o suposto sinônimo escolhido demonstra a ira de que estava possuído, porque se esqueceu por completo do politicamente correto ao usar “caipira” com sentido pejorativo. Barbosa ainda chamaria Peluso de “ridículo”, “corporativo”, “desleal”, “tirano” e “pequeno”. Mas o mais interessante é que, antes de “brega, caipira”, ele instalou uma palavra francesa para completar a expressão: “désinvolture”.

Talvez, na intuição do ministro, uma “désinvolture” o salvasse de escorregar na lama das palavras da língua de origem – o salvasse, quem sabe, até mesmo da origem. Escolha que lembra as elites brasileiras do passado, na época em que apreciavam se expressar em francês para marcar também na linguagem a sua pretensa superioridade. Em boa parte do período em que a elite brasileira assim se comportou, porém, os antepassados de Joaquim Barbosa eram escravos – o que torna tudo mais interessante. Como uma volta completa.

Na fala do ministro, as ofensas de conteúdo mais explícito parecem irromper – e, então, de repente, ressurge o homem refinado, que fez mestrado e doutorado em Paris, subiu todos os degraus com seus próprios pés e méritos, e construiu uma biografia digna de aplausos entusiasmados. Mas ressurge como? Pela palavra estrangeira, aquela que o filho de um pedreiro do interior mineiro, o mais velho entre oito irmãos – negro, como ele se não cansa de lembrar a todos (possivelmente com razão) – precisou conquistar, junto com um lugar na elite jurídica do país. O homem ilustrado ressurge com “désinvolture”.

Em outro ponto, Barbosa usa a expressão “supreme bullying”. Refere-se, então, à campanha que Peluso teria capitaneado para desqualificar seus sérios problemas de saúde, que o obrigaram a pelo menos uma cirurgia e a meses de licença médica. Não. Um ministro do Supremo não sofreria um mero bullying. Mero bullying é para mim ou para você. Para ele haveria de ser um “supreme bullying”. Ainda que Barbosa explicite que criou a expressão com um sentido “jocoso”, não é uma expressão qualquer: é um “supreme bullying”.

A certa altura, o ministro faz um comentário quase incompreensível, pelo menos para mim: “Eu aposto o seguinte: Peluso nunca curtiu nem ouviu falar de ‘The Ink Spots’. Isso aí já diz tudo do mundo que existe a nos separar…” Bem, acho que “isso aí” pode separar Barbosa não só de Peluso, mas de boa parte dos brasileiros. Por sorte, o crítico André Barcinski, na Folha de S. Paulo de sábado (21/4), explicou que se trata de um grupo dos anos 30, formado por quatro cantores negros, que influenciaria mais tarde lendas como Elvis Presley e Paul McCartney. Ainda assim, continuei, possivelmente por ignorância, a não entender que tantas léguas separam quem “ouviu falar” de quem não “ouviu falar” do “The Ink Spots”. De fato, o que o comentário parece revelar é o oposto: não há mundos tão vastos a separar um humano do outro.

No vão das palavras revela-se o drama do homem que precisa marcar a sua diferença – quase com desespero. Ler a entrevista que Barbosa deu à repórter Carolina Brígido, de O Globo, na sexta-feira (20/4), era como assistir a um embate entre vários homens dentro de um só. Além de travar uma disputa com Cezar Peluso, o colega que o ofendera de forma vil, Joaquim Barbosa debatia-se em uma furiosa guerra interna que se manifestava na linguagem.

Para quem não acompanhou o entrevero, tudo começou na quarta-feira (18/4), com a publicação de uma entrevista do ministro Cezar Peluso, que deixaria a presidência do Supremo no dia seguinte, a Carlos Costa, do site Consultor Jurídico. Nela, Peluso refere-se a Barbosa nos seguintes termos: “Ele é uma pessoa insegura, se defende pela insegurança. Dá a impressão de que tudo que é absolutamente normal em relação a outras pessoas, para ele, parece ser uma tentativa de agressão. E aí ele reage violentamente”. E, mais adiante: “A impressão que tenho é de que ele tem medo de ser qualificado como arrogante. Tem receio de ser qualificado como alguém que foi para o Supremo não pelos méritos, que ele tem, mas pela cor”.

É importante registrar que, como dizem as crianças ao terem a atenção chamada pelos pais, foi Peluso quem começou. Foi ele quem deu o primeiro chute nas canelas – por trás. Mas há uma parte particularmente interessante no discurso de Peluso nessa entrevista. Ele define-se como um “apaziguador”. Sua gestão como presidente do Supremo teria sido de “apaziguamento”. Nas palavras literais do ministro: “O que me deixa de consciência tranquila é que, de certo modo, o tribunal se apaziguou um pouco durante a minha gestão. Sabemos dos diálogos exacerbados entre os ministros, que aconteceram no passado. Durante minha gestão isso não aconteceu em nenhum momento. Tentei conduzir as reuniões do Plenário de uma maneira tranquila, de alto nível. Não houve nenhum episódio que relembrasse os atritos anteriores. Acho que minha moderação na direção do Supremo ajudou a refrear um pouco o entusiasmo ou o estado de ânimo, permitindo que o tribunal decidisse sem se expor. As brigas anteriores expunham muito o tribunal”.

Não é fascinante? Tanto Cezar Peluso quanto Joaquim Barbosa, nessa guerra de discursos, tornam-se personagens de tragédia, ao serem traídos por demônios interiores. Na mesma entrevista em que se lança como “apaziguador” e “moderado”, Peluso revela-se o mais belicoso e destituído de moderação dos presidentes. Na mesma fala em que se gaba de ter evitado a exposição negativa do tribunal, Peluso provoca a maior – e a mais vexatória – exposição da história recente do Supremo. E Joaquim Barbosa, acusado por Peluso de responder com violência ao sentir-se inseguro, como responde? Violentamente.

Humano, demasiado humano. É aqui que, para além da tragédia, pode haver um aprendizado para todos nós. Não vejo nenhuma ameaça à credibilidade do Supremo, como foi manifestado por alguns. O que vimos foi uma exibição de humanidade, em sua vasta complexidade. Tanto Cezar Peluso quanto Joaquim Barbosa, independentemente de concordar ou não com seus votos, têm evidente saber jurídico. Mas são, também, dolorosamente humanos. Não estamos sempre repetindo que queremos juízes mais humanos?

Aí está. A humanidade, como descobrimos mal botamos o pé na rua – ou mesmo antes, ao nos encararmos no espelho do banheiro –, está longe de ser feita apenas de sentimentos elevados. Alguns votos de ministros do Supremo alcançam o melhor da espécie, ao exibirem um pensamento tão límpido que quase viram arte. Mas, se é humanidade o que queremos, é preciso ter a maturidade de acolher o pacote completo. Não para sermos condescendentes, mas para exigirmos superação e melhoria de quem tem um papel estratégico em questões que envolvem a vida de todos.

É um episódio muito rico, este. E me parece que existe ainda um ponto a mais a observar. Qual foi o palco que ambos elegeram para essa briga mais adequada a um campinho de várzea? A imprensa. Eles poderiam ter discutido a relação, numa tradicional DR, no gabinete de um ou de outro ou ainda na zona neutra de um terceiro, nos corredores do tribunal tomando um cafezinho, ou até no lusco-fusco de um bar discreto de Brasília, bebericando um Dry Martini – ou um uísque cowboy. Mas aí ninguém ficaria sabendo. Não haveria audiência – nem holofotes.

Os ministros queriam que fosse público. Por quê? Houve pelo menos duas mudanças no Supremo que podem ter influenciado esse comportamento. Os julgamentos passaram a ser transmitidos pela TV Justiça, a partir de 2002, transformando em ritual público o que antes era rito privado. Uma demonstração de transparência e uma tentativa de aproximar a Justiça do povo, já que os temas julgados pelo tribunal são do interesse da população. No mesmo período, o Supremo passou a julgar questões cada vez mais cruciais para a vida dos cidadãos comuns, o que também é muito positivo. Esses dois fatos relacionados arrancaram os ministros de uma obscuridade com pompa, mas sem nenhum brilho popular, e os lançaram em um tipo muito particular de celebridade.

Essa troca de lugar simbólico, como sabemos, pode explicitar o melhor, mas também o pior do humano. Neste caso, revelou que tanto Peluso quanto Barbosa confundiram o personagem – que é apenas uma parte de alguém – com o todo. A ponto de se acharem tão importantes que tudo o que diz respeito a eles deveria interessar ao país inteiro. Como aquelas celebridades que postam no Twitter que precisam lavar o cabelo ou que acham que uma celebridade rival exagerou na quantidade de silicone no peito.

A rigor, não foi muito diferente. Na contenda dos ministros, a única informação relevante para o Brasil, se for comprovada, é a de que Peluso supostamente tentava manipular os julgamentos ao presidir a corte. De resto, só cotoveladas no estômago e puxões de cabelo. O que é relevante de fato é o que nenhum deles tinha a intenção de revelar, mas escapou pelas fendas da linguagem: a matéria falha de que todos somos feitos. Inclusive vossas excelências.

É ruim quando um ministro envergonha a si mesmo, por um lado. Por outro, é bom quando um ministro envergonha a si mesmo. Quando ministros chegam ao ponto de dizerem o que Peluso e Barbosa disseram um ao outro, pela imprensa, é porque ambos se colocaram acima do bem e do mal. E este lugar é o único que um juiz não pode estar. É justo, portanto, que despenquem desse lugar indevido com todo o vexame devido.

É importante lembrar, porém, que o episódio está longe de ser o único na história recente do Supremo. Houve outros – e com diferentes protagonistas. Lembro-me de, em 2004, ter ficado estarrecida quando o ministro Marco Aurélio Mello praticamente chamou Joaquim Barbosa para brigar na esquina durante um julgamento em que se desentenderam. Desde que acompanho algumas votações, tanto por obrigação profissional quanto por gosto pessoal, acho curiosíssimo que alguns ministros são capazes de falar as maiores barbaridades para o outro, mas jamais se esquecem de usar o “Vossa Excelência” antes de proferir cada baixaria. O “Excelência” está só um degrau acima do “Doutor”, essa praga que assola o Brasil desde a sua formação.

Numa dessas disputas de guris, Marco Aurélio disse a Barbosa: “Enquanto estiver com a toga sobre os ombros…” Pois é. O “désinvolture” do ministro Joaquim Barbosa é a toga com que ele tentou esconder a nudez do seu discurso. O “Vossa Excelência” é a toga da linguagem usada por todos os outros. Episódios como a briga entre Cezar Peluso e Joaquim Barbosa em nada ameaçam a credibilidade do Supremo. Mas são importantes para que os juízes – todos e também os da corte máxima do país – possam lembrar que, por baixo da toga, eles também estão nus. Acredito que um juiz julga melhor quando conhece o tamanho da sua nudez. E passa a tomar mais cuidado para não voltar a esquecer-se de que é tão nu quanto qualquer um.

Se o nível das desavenças estava mais para um bate-boca numa pelada de várzea do que para um debate público, ouso fazer uma sugestão pueril. Quem sabe alguém não possa organizar um futebolzinho leve aos sábados, misturando excelências e não excelências. Nesse espaço informal, uns empurrões aqui e ali aliviariam a pressão acumulada e seriam interpretados como parte do processo. Para quem tem impeditivos de saúde (e também para quem não tem), terapia tampouco seria má ideia.

Na semana que passou, Cezar Peluso e Joaquim Barbosa deram-nos uma grande lição de humanidade. No que ela tem de pior, é verdade. Mas é importante, tanto para os ministros do Supremo quanto para nós, lembrar o que nunca convém esquecer: ter um “excelência” antes do nome assegura muitos privilégios, mas não garante excelência a ninguém.

(Publicado na Revista Época em 23/04/2012)

A volta do Brasil Grande que pensa pequeno

Ao contar o passado, pela epopeia dos Irmãos Villas Bôas, o filme “Xingu” ilumina o presente. E coloca a plateia diante de uma questão atual e incômoda: omissão também é protagonismo

Xingu, o filme de Cao Hamburger, conta a saga dos três irmãos Villas Bôas em seu confronto com o Brasil que não sabia que era Brasil. Nos anos 1940, Orlando (Felipe Camargo), 27 anos, Cláudio (João Miguel), 25, e Leonardo (Caio Blat), 23, mentiram que eram analfabetos sem profissão para se alistar na Expedição Roncador-Xingu, que desbravaria o centro do país. O que acontece a partir do momento em que três jovens de classe média partem em busca de aventura e encontram de forma brutal não só uma outra civilização, mas também a si mesmos, é História. E, infelizmente, uma história que vai sendo esquecida. Mas, ao iluminar o passado, Xingu, o filme, ilumina Xingu, a vida. E o ilumina para além do Parque Nacional do Xingu, o grande feito dos Irmãos Villas Bôas, consumado em 1961. Ilumina com verdades suficientes para questionar a plateia em outras verdades: por que permitimos, pela omissão da maioria, que a faraônica obra de Belo Monte – aqui, agora – destrua uma das maiores riquezas culturais e biológicas do planeta? Por que, em um governo dito popular, se reedita o autoritarismo para impor um elefante branco da democracia, com a nossa cumplicidade? A plateia que assiste ao filme precisa responder, ao deixar a sala de cinema, a uma pergunta bem incômoda: por que, na vida, não consegue deixar de ser plateia.

O filme termina quando a Transamazônica começa a ser construída. Naquele momento, com uma imprensa censurada pela ditadura e um país dominado pelo ufanismo do “Brasil ame-o ou deixe-o”, do “Integrar para não Entregar”, do “Terra Sem Homens para Homens Sem Terra” talvez só Orlando e Cláudio Villas Bôas – além do governo militar e de seus apoiadores – eram capazes de compreender o que aconteceria quando a estrada rasgasse a selva e literalmente a encharcasse de sangue. Hoje, não. Nenhum de nós tem a desculpa de não saber o que já aconteceu. Nenhum de nós tem a desculpa de ignorar a destruição da floresta e a matança de gente, bicho, planta e cultura consumada no Brasil Grande da ditadura militar. Nenhum de nós tem a desculpa de ignorar a ocupação incompetente e a trilha de mortes que só faz aumentar. Não há desculpa para a ignorância do passado. E penso que não há desculpa para a omissão no presente, diante do futuro.

Quando a Transamazônica se desenhava na tela, era Belo Monte que estava bem ali. Assisti ao filme enxergando o presente, e não apenas o passado – e por isso saí do cinema devastada. Vi o passado enxergando o presente porque o passado tornou-se, de novo, presente. E é com esse presente que temos o desafio de lidar. Quando a Transamazônica foi imposta pela ditadura militar, boa parte dos vivos de hoje nem sequer tinha nascido ou ainda era criança, como eu. Agora, não. Estamos todos aqui.

Conhecer a Amazônia exige um movimento – e um desejo maior. Assistir ao filme é muito fácil. Se puderem, assistam ao Xingu e, na última cena, uma das mais belas do nosso cinema, se enfiem na pele de um dos Irmãos Villas Bôas e percebam que, querendo ou não, é diante desse olhar que nós todos estamos – agora.

Acho que este é o mérito dos grandes filmes: não permitir que nos instalemos no conforto eterno da poltrona de cinema. Tornar impossível o pensamento comodista de que aquilo não nos diz respeito – seja porque já aconteceu, seja porque é a dor de um outro muito diferente. Ou ainda porque não nos convém – e nos acreditamos a salvo. E aqui não se trata da arte utilitarista ou engajada, mas do fato de que os bons filmes, assim como a boa literatura, nos confrontam com pessoas complexas num mundo complexo – e não meros heróis em um mundo plano. Como quando Cláudio Villas Bôas diz, ao perceber que, salvando, ele também destrói: “Somos o veneno e o antídoto”. Ou: “Há uma coisa deles que morre pra sempre assim que a gente encosta”.

É por acolher o conflito que os bons filmes, mesmo que nos contem de mundos e de gentes distantes, ecoam na vida de todos nós. Pescam nossos demônios internos e os fazem dançar diante dos nossos olhos. Os bons filmes, como os bons livros, nos transtornam por dentro, mesmo que ninguém fique sabendo porque só a nós diz respeito; e nos transtornam de dentro para fora, como neste caso, ao percebermos que a omissão também é um tipo de protagonismo. Os bons filmes são como os bons governos: acolhem o conflito e dialogam com o contraditório. Os maus filmes são como os maus governos: calam os conflitos e chamam o contraditório de “fantasia”. Xingu é um bom filme.

Os realizadores de Xingu já tinham deixado explícita a intenção de, ao contar a epopeia histórica dos Irmãos Villas Bôas, criar uma oportunidade para pensar sobre os dilemas do Brasil atual. “Se o filme conseguir trazer a história desses caras para uma discussão do futuro e do presente seria muito legal. Apesar de ser um filme de época, é muito contemporâneo. Uma das coisas que me encantaram nessa história foi essa possibilidade de discutir coisas contemporâneas contando uma história do século passado”, disse à imprensa Cao Hamburger, o diretor, durante o lançamento do filme. E, em outro momento: “A ideia é que a gente repense a maneira como somos. O que é o progresso hoje? Que crescimento a gente quer?”.

Também os atores, ao viverem o Xingu para encenar o Xingu, confrontaram-se com os conflitos vividos por seus personagens – mas também os incorporaram como cidadãos diante da experiência para além da filmagem. “Os Villas Bôas fizeram uma previsão: que o encontro (entre brancos e índios) era inevitável e a civilização ia chegar à fronteira do rio. E eles chamavam isso de ‘abraço da morte’. De avião a gente vê claramente a devastação ao redor. Então esse ‘abraço da morte’ chegou”, contou Caio Blat. “Não teve um dia de filmagem que não vimos fumaça de queimada. Até o set queimou, a equipe toda ajudou a apagar o fogo. E isso acontece sempre: aconteceu quando filmamos, aconteceu no ano passado, vai acontecer este ano de novo”, afirmou Felipe Camargo. “A ecologia não pode mais ser vista como uma coisa bonitinha, ‘vamos preservar a natureza’. Não: vamos preservar a nossa vida.”

Ao refletir sobre a experiência de filmar Xingu no Xingu, Cao Hamburger declarou: “Considero que essa cultura e essa filosofia de vida deles não estão paradas no tempo, elas estão em desenvolvimento, como a nossa. O que está me interessando muito é o que nós podemos aprender com essa cultura. O Brasil tem um tesouro que faz questão de esconder e desprezar, e está perdendo a oportunidade de absorver e aprender com eles. A cultura deles é muito rica, muito sofisticada, e o Brasil tem muito a ganhar”.

O cineasta Fernando Meirelles, produtor do Xingu, foi contundente em suas afirmações ao longo da série de entrevistas sobre o filme: “O que eu acho que vale ressaltar do filme é como ele é atual. Vindo para cá, eu li no jornal que o Megaron Txucarramãe, que era coordenador da Funai no norte do Mato Grosso, tinha sido demitido porque tem uma posição contrária a Belo Monte (outubro de 2011). É a história do filme, da Transamazônica, se repetindo. O filme não poderia ser mais atual, nesse momento em que Belo Monte e o Código Florestal são assuntos muito fortes”. E, mais tarde: “Eu, pessoalmente, acho que Belo Monte é um dos maiores erros atuais. A gente está construindo usinas basicamente para poder aumentar a produção de alumínio. Vai comprometer toda aquela área pra produzir mais alumínio. É esse o progresso que queremos?”.

Em outra manifestação, Fernando Meirelles foi ainda mais direto: “A Transamazônica do filme é a Belo Monte de hoje. Aquele deputado de terninho é a Kátia Abreu (senadora da bancada ruralista pelo PSD/TO). Isso está muito claro”. No filme, há ainda um militar que é a cara desse governo no trato de Belo Monte e das questões ambientais. Só não gritei – “Nossa, é a Dilma Rousseff!” – porque faço uma campanha persistente pelo silêncio no cinema. Quando Orlando Villas Bôas tenta explicar que a Transamazônica vai passar por cima dos Kren Akarore, uma etnia isolada, o militar declara: “Limpe o caminho. Mas tem que ser rápido”.

Há de se eliminar aquilo que “atravanca” o progresso ontem, o desenvolvimento hoje – tirar da frente, custe o que custar. “Resolver”. E rápido. Como a História mostrou, dos 600 Kren Akarore restaram 79 depois da abertura da Transamazônica. Ou seja: o efeito da Transamazônica, apenas sobre uma única etnia indígena, foi um genocídio de mais de 500 seres humanos. E a Transamazônica até hoje é uma picada intrafegável boa parte do ano, apelidada por onde passa de “Transamargura”. As obras de Belo Monte começaram – sem o cumprimento das condicionantes ambientais – e o estrago já é visível.

Entre os desafios que um futuro biógrafo enfrentará ao contar a vida e a obra de Dilma Rousseff está o seguinte paradoxo: como uma mulher que entrou na clandestinidade, pegou em armas para lutar contra o autoritarismo e pagou pela sua coerência o preço altíssimo de ter sido torturada vira uma ministra, primeiro, uma presidente depois, que, em se tratando de políticas para a Amazônia e o meio ambiente, incorpora – e o pior, implanta – a mesma visão da ditadura militar que combateu. De novo, estamos de volta ao Brasil Grande que pensa pequeno – mas em plena democracia e numa imprensa sem censura oficial. Acho o paradoxo fascinante do ponto de vista humano, mas um desastre para o país.

Talvez, hoje, a presidente Dilma Rousseff passasse um pito na guerrilheira Dilma Rousseff: “Não há espaço para a fantasia”. E imediatamente esquecesse que foi essa “fantasia” que tornou possível não só a própria democracia, mas a ascensão de um operário à presidência do Brasil. E também a tudo o que veio depois – inclusive ela. Foi essa mesma frase, em minha opinião a mais infeliz de sua trajetória como presidente, possivelmente de sua vida, que Dilma Rousseff declarou aos ambientalistas que combatem Belo Monte, no início de abril, afirmando que não mudará sua política de “desenvolvimento” para a Amazônia. O que nos faz concluir que, diante dos Irmãos Villas Bôas, os indigenistas de ontem, Dilma Rousseff só poderia dizer o mesmo que diz para os indigenistas de hoje: “Não há espaço para a fantasia”.

Cara presidente, se não existisse “fantasia” não existiria humanidade – não existiria nem mesmo o conceito de nação. Como disse Fernando Meirelles, no site da produtora O2 Filmes: “Sonhe um pouco, presidenta. Ou ao menos escute o sonho dos que conseguem sonhar”.

(Publicado na Revista Época em 16/04/2012)

Chega de torturar mulheres

O que o STF decidirá, ao julgar a permissão do aborto de anencéfalos, é se o Brasil respeita os direitos humanos – ou prefere seguir infligindo dor a mulheres que tiveram a infelicidade de gerar um feto incompatível com a vida

Depois de quase oito anos, o Supremo Tribunal Federal deverá votar nesta quarta-feira (11) uma ação que decidirá se as mulheres grávidas de um feto anencéfalo (malformação incompatível com a vida) poderão interromper a gestação sem necessidade de autorização judicial. Hoje, elas são obrigadas a peregrinar pela Justiça, em geral por meses. Em alguns casos, o juiz dá autorização, em outros não, numa zona ambígua que depende das crenças pessoais de quem julga. Às vezes, quando o juiz dá a licença, já demorou tanto tempo, ocorreram tantas idas e vindas no processo, que o bebê nasceu e morreu. Em parte porque, ao descobrir que uma mulher pediu a interrupção da gestação anencefálica, grupos religiosos usam a estratégia de atrasar o processo com recursos como, por exemplo, um “habeas-corpus para o feto”. A ação, que já é lenta, tarda ainda mais, até que não exista mais o que julgar. Na prática, como todos sabemos (com exceção dos hipócritas, talvez), as mulheres de classe média resolvem a questão buscando clínicas clandestinas de aborto, para não ter de se submeter à demora e às dificuldades de um processo judicial no Brasil. Quem procura a Justiça são as mulheres pobres, que dependem da rede pública de saúde para interromper uma gravidez. Nesta quarta-feira, o STF terá a chance de estancar – com atraso – uma violação sistemática dos direitos humanos causada por um vácuo na lei, que além de desamparar as brasileiras mais frágeis em um momento dificílimo da vida, as condena à tortura.

Divido essa coluna em duas partes. Na primeira, faço algumas considerações gerais sobre a questão que será julgada pelo Supremo a partir do meu olhar sobre ela. Na segunda, conto a história de uma mulher particular, Severina, porque aprendi que só compreendemos a vida – na vida. Em 20 de outubro de 2004, o Supremo derrubou uma liminar que permitia interromper a gestação de anencéfalo sem autorização judicial. Um dos ministros disse, ao votar: “Mas quem são essas mulheres? A gente nem sabe se elas existem”. As mulheres severinas existem. E, como veremos, são, sim, torturadas.

A pergunta que o Supremo responderá nesta quarta-feira é a seguinte: “Uma mulher, grávida de um feto anencéfalo, pode interromper a gestação sem necessidade de autorização judicial?”. Espero que a resposta da corte seja afirmativa. Acompanho o percurso dessas mulheres há quase dez anos e me parece claro que este é um debate de direitos humanos. Impedir uma mulher de interromper a gestação de um feto incompatível com a vida, se ela assim o desejar, é condená-la à tortura. Assim como também seria tortura obrigar uma mulher a interromper essa mesma gestação se ela desejar levá-la até o fim porque, por crença religiosa ou qualquer outro motivo, encontra sentido nesse sofrimento.

Este é o ponto: se o feto é incompatível com a vida, só quem pode decidir pela interrupção ou não da gestação é quem o carrega no ventre. Ninguém mais – nem as feministas, nem os padres, nem eu ou você. Em geral, olhar pelo avesso nos ajuda a enxergar o quadro com maior clareza. Imagine se a lei brasileira determinasse o oposto. Ou seja: pela lei, todas as mulheres grávidas de fetos anencéfalos fossem obrigadas pelo Estado a interromper a gestação assim que o diagnóstico tivesse sido comprovado. Se não quisessem, precisariam entrar na Justiça para impedir o aborto compulsório. Neste caso, a violação de direitos humanos seria a mesma. E eu estaria aqui, defendendo o direito dessas mulheres de levar a gestação até o fim com a mesma veemência.

Ninguém deveria poder decidir por uma mulher como ela vai lidar com a gestação, dentro do seu corpo, de um feto que não poderá viver. Só ela sabe da sua dor – e de que escolha será mais coerente com aquilo que ela é – e acredita. As estatísticas mostram que 100% dos anencéfalos morrem: cerca da metade ainda na gestação, a outra metade após o parto. O que acontece hoje – e é essa desigualdade de direitos que o Supremo vai anular ou cristalizar nesta quarta-feira – é que as mulheres que encontram sentido em levar essa gestação até o fim têm seu direito respeitado. E aquelas para quem é insuportável conviver, dia após dia, gerando a morte em vez da vida, são torturadas.

Nunca cometi a indignidade de julgar uma mulher que decide levar uma gestação de anencéfalo até o fim. O sentido só pertence a ela – e aqueles que a julgarem extrapolam limites de humanidade. Do mesmo modo, lamento aqueles que se apressam a condenar as mulheres para quem a gestação se tornou intolerável. Na tentativa de impor suas crenças para todos, com a soberba de quem acredita deter o patrimônio do bem, cometem barbáries contra pessoas já fragilizadas pela imensa dor que é gerar um filho condenado à morte por uma malformação.

A dor e o luto pelo filho desejado e perdido são inevitáveis, como qualquer mulher ou homem que já testemunhou essa tragédia de perto – ou mesmo de longe – sabe. O outro sofrimento, o de continuar a gerar um filho para enterrá-lo, porque não lhe permitem interromper essa gestação sem futuro, não. Esse martírio pode ser evitado.

De tempos em tempos, grupos contrários à permissão do aborto no caso de anencefalia exibem uma mulher que decidiu levar a gravidez até o fim como uma espécie de heroína – como se ela fosse uma mãe melhor do que aquela que escolheu interromper a gestação. É uma mentira. Não há heroínas nessa história, apenas mulheres que sofrem. Qualquer oposição entre a mulher que optou por interromper a gestação e aquela que preferiu mantê-la é falsa. Ambas são mulheres que, diante da mesma tragédia, fizeram escolhas diferentes. E ambas devem ser respeitadas na sua decisão, seja ela qual for. O que discutimos aqui é por que uma escolha é reconhecida pelo Estado – e a outra não é.

Há algo importante para compreender nessa tragédia, que talvez parte das pessoas deixe de perceber por não ter convivido com ela. A mulher que se descobre grávida de um feto anencéfalo desejou aquele filho. Em geral, ela o planejou. Quando soube que estava grávida, ela comemorou. E então, num exame com 100% de confiabilidade, ela descobriu que seu filho era anencéfalo. Ou seja, uma malformação letal determinou a impossibilidade de seu filho viver.

Não se trata, portanto, de uma criança deficiente, como alguns definem, torturando também as palavras. Trata-se, como disse o ministro Ayres Britto, em 2004: “O que se tem no ventre materno é algo, mas algo que jamais será alguém”. Impor a essa mulher, submersa em desespero, a acusação de “assassina de crianças”, como alguns o fazem, “em nome da vida”, é cruel. Apenas isso: cruel.

Espero que, depois de quarta-feira, não caiba mais a nenhum de nós opinar sobre a escolha de uma mulher numa situação dolorosa como essa. Aquelas que decidirem levar a gestação até o fim continuarão sendo acolhidas em sua decisão – e aquelas que quiserem interrompê-la também serão amparadas pelo Estado. Ponto.

Agora, Severina, que nos conta com o seu viver o que é a vida em tragédia. Em 20 de outubro de 2004, no mesmo momento em que o Supremo derrubava a liminar que permitia o aborto de anencéfalo sem autorização judicial e um dos ministros perguntava se essas mulheres existiam, Severina Maria Leôncio Ferreira internava-se em um hospital do Recife para interromper a gestação. O médico decidiu deixar o procedimento para o dia seguinte – e no dia seguinte foi tarde demais. Severina teve de deixar o hospital carregando sua dor e sua barriga. Era o seu segundo filho. E ele não viveria.

Severina e seu marido Rosivaldo plantavam brócolis em Chã Grande, um pequeno município nas proximidades do Recife. Mesmo pobres e analfabetos, eles decidiram procurar a Justiça em busca de autorização para interromper a gravidez. Aqui talvez valha uma pausa para se enfiar na pele de Severina e imaginar o que é para uma mulher analfabeta, vinda da zona rural, sem dinheiro, buscar a Justiça no Brasil – e isso tudo em um momento em que se sentia despedaçada. Severina só teve a coragem de enfrentar essa enormidade porque continuar aquela gestação para a morte seria um martírio ainda maior.

Acompanhei Severina para contar o longo dia seguinte a que os ministros do Supremo não assistiriam. O documentário Uma História Severina (Imagens Livres), dirigido por mim e pela antropóloga Debora Diniz, mostra que as mulheres severinas existem – e precisam que o Estado reconheça sua existência, sua dor e seus direitos. A longa travessia de Severina é contada em apenas 23 minutos. Quem quiser pode assistir ao documentário na internet, basta clicar aqui. Em 2005, O filme foi enviado a todos os ministros do Supremo.

Não vou repetir o que está contado pelo registro da vida em curso de Severina. Cada um pode ver por si mesmo. Quero contar apenas sobre algumas pequenas delicadezas e grandes brutalidades da trajetória de Severina que podem complementar as imagens – e nos ajudar a compreender o que significa para uma mulher ser condenada a continuar gerando um filho para a morte. Nas últimas semanas do martírio de Severina, eu tirei férias da ÉPOCA, onde trabalhava como repórter especial, e passei a acompanhá-la. Só a deixei depois do enterro do bebê, que nasceu morto.

Se a liminar não tivesse sido derrubada, Severina faria o aborto no quarto mês de gestação. Como foi obrigada a entrar na Justiça, seu sofrimento foi prolongado até o sétimo mês, quando finalmente conseguiu a autorização. Tenho convicção de que Severina não deveria ter vivido o que viveu nesses três meses. Ao testemunhar seu sofrimento, ficou muito claro para mim que aquilo era, sim, um tipo de tortura – uma tortura imposta pelo Estado.

Até o exame revelar que seu filho era anencéfalo, Severina fazia o pré-natal na companhia de outras grávidas da zona rural, numa alegre romaria de mães tecendo roupinhas e planos. Severina queria muito um segundo filho – e Rosivaldo, seu marido, sonhava com uma menina. De repente, os caminhos dessas mulheres bifurcaram-se – também literalmente. Dali em diante, Severina seguiria sozinha, por outra estrada. E no percurso dela, haveria morte – e não vida.

Imaginar como era a cabeça do filho dentro dela foi um dos horrores vividos por Severina nos três meses que se seguiram. Ela tinha, naquele momento, um medo e uma esperança. O medo era o de machucar, com algum movimento mais brusco, aquela cabeça em que o médico disse e o ultrassom mostrou que faltava uma parte. Para ela, era como uma ferida aberta. Numa ocasião, Severina sentiu-se mal e botou para fora um vômito escuro. Pensou que era sangue. E sofreu atrozmente por pensar que tinha machucado a cabeça do bebê.

A esperança, Severina só às vezes confessava. Mas pensava, quase sempre, que algo mágico aconteceria de repente, e a cabeça do filho seria reconstituída dentro dela. A cada sensação diferente, essa fantasia reacendia-se. Severina então me dizia, meio envergonhada: “Eu sei que não pode ser, o médico disse que não acontece, mas será que…?”.

Enquanto esperavam por uma decisão judicial, em horas e horas de cadeira, pilhas e pilhas de papéis que não decifravam, Rosivaldo, o marido de Severina, enfrentava a curiosidade do povo na feira. Já se espalhara na pequena comunidade que ele era “o pai do bebê sem cabeça”. No próprio verbete do dicionário Houaiss, a anencefalia é definida como “monstruosidade”, o que diz bastante sobre como o senso comum percebe essa fatalidade. Na escassez de novidades da vida da cidade pequena, Rosivaldo despontou como o “pai do monstro”. E quando ele alcançava a feira para vender seus pés de brócolis, precisava se conter para não responder com violência física à agressão verbal da vida concreta dos dias.

Só quando a autorização judicial chegou, Severina reuniu forças para uma providência que até então não tivera coragem de tomar: comprar a roupa com que o filho seria sepultado. O ato transformou-se numa violência muito maior do que já era – uma violência que me faltou repertório para prever. Severina queria uma roupinha com capuz para impedir que a cabeça malformada do seu bebê ficasse exposta à curiosidade pública no enterro. Severina desejava pelo menos poder proteger seu bebê na morte. É importante lembrar que, agora, não era mais um aborto, como teria sido no início da gestação. Agora, seria um parto. Haveria um enterro e, para sempre, um filho sepultado. E, no caso de Severina, existiria ainda a insanidade de um bebê sem certidão de nascimento – mas com atestado de óbito.

Como venho do Estado mais frio do Brasil, eu jamais supus que encontrar uma touca poderia ser um problema. Mas, no clima tropical do Recife, Severina não conseguiu achar uma roupinha com capuz. E o inusitado do pedido fez com que ela se sentisse obrigada a explicar, de loja em loja: “Ele não vai viver”. Prometi, então, que depois que ela fosse internada, eu procuraria por ela. Encontrei no dia seguinte, em um shopping, uma roupinha branca com uma touca que ela ficou acariciando no hospital com os olhos afogados. Depois, buscou o álbum de fotografias de seu filho, Walmir, então com 4 anos. Acariciou cada foto em silêncio – cada uma delas uma prova de que ela poderia gerar um filho vivo.

Na rede pública de saúde, desenhou-se a estação seguinte do calvário severino. Ela foi empurrada de um hospital a outro, com a autorização judicial na mão. “Não há vagas”, “meus colegas são contra o aborto”, “tenha paciência”. Não fosse Paula Viana, da ONG Curumim, ajudar Severina a fazer cumprir seus direitos duramente conquistados, sua peregrinação duraria ainda mais tempo, como é mostrado no documentário.

Severina suportou mais de 30 horas de trabalho de parto, a maior parte delas com contrações excruciantes. Quando não tinha mais posição, arrastava-se até o corredor. Era inevitável encontrar-se com uma mãe feliz com seu bebê – vivo – no colo. Nesses momentos, os olhos de Severina gritavam uma dor que eu nunca vi no olhar de outro ser humano. Se a tortura de Severina fosse resumida em uma só cena, seria aquele olhar. Aquele olhar que palavras são insuficientes para descrever. Entre todas as mulheres da maternidade, Severina seria a única ali que, ao final, teria um caixão – e não um berço.
E assim foi.

Severina está longe de ter sido a única mulher torturada nesses anos todos, apenas que sobre a tortura dela há documento. Espero dormir na quarta-feira em um país que não torture mulheres porque tiveram a infelicidade de gerar um feto sem cérebro.

P.S. – Na quinta-feira (12/4), ao final do segundo dia de julgamento, o Supremo Tribunal Federal descriminalizou o aborto de anencéfalo, por 8 votos a 2. Desde então, vivemos em um país que não tortura mulheres por gerar um feto sem cérebro.

(Publicado na Revista Época em 09/04/2012)

Com a boca, ela escreveu uma vida

Aos 38 anos, Eliana Zagui, vítima de paralisia infantil, lança um livro contando como foi crescer e tornar-se mulher na UTI do maior hospital do Brasil

Eliana Zagui tinha 1 ano e 9 meses quando entrou no Hospital das Clínicas de São Paulo. Vinha no colo dos pais, quase morta, numa carona arrumada às pressas, vítima do último grande surto de poliomielite que o Brasil enfrentou nos anos 70. Assim que deixou o município de Jaboticabal, no interior paulista, o agricultor Tercílio Sitta avisou à polícia rodoviária: “Eu vou correr”. E correu. Era 10 de janeiro de 1976. Eliana viveu. Mas nunca mais deixou o hospital. Em 23 de março, ela completou 38 anos – mais de 36 deles passados entre as paredes de uma UTI do Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do HC. Deitada numa cama, sem movimentos do pescoço para baixo, mas com todas as sensações, Eliana descobriu-se Eliana. Reconheceu-se ali, brincou ali, menstruou e virou adolescente ali, viu o melhor e o pior do humano ali. Respirando com a ajuda de equipamentos, com o orifício aberto no pescoço e a cânula da traqueostomia, Eliana formou-se no ensino médio, aprendeu inglês e também italiano, fez curso de História da Arte e tornou-se pintora. Em seu mundo horizontal, Eliana conheceu o amor e também o desespero, tentou o suicídio e testemunhou a morte daqueles que amava. Eliana Zagui fez bem mais do que isso. Criou uma vida.

Eliana, nos anos 70, maquiada para a festa junina do hospital e Eliana, hoje, aos 38 anos, após concluir o livro sobre a vida passada numa UTI (Foto: Arquivo pessoal e Belaletra Editora / Divulgação)

Eliana, nos anos 70, maquiada para a festa junina do hospital e Eliana, hoje, aos 38 anos, após concluir o livro sobre a vida passada numa UTI (Foto: Arquivo pessoal e Belaletra Editora / Divulgação)

É essa vida que Eliana nos conta no livro que será lançado na terça-feira, 10 de abril, pela Belaletra Editora: “Pulmão de Aço – uma vida no maior hospital do Brasil”. Eliana escreveu a maior parte do livro com a boca, agarrando com os dentes uma espátula de garganta na qual é amarrada uma caneta. “Fiz do meu caderno algo como um saco de soco de lutadores de boxe”, disse ela numa pequena entrevista a esta coluna. “Escrever no papel é algo muito íntimo. Pude chorar, gritar, berrar, xingar, rir e gargalhar das coisas ridículas e saudosas.”

O desejo de agarrar suas memórias a alcançou na forma de uma voz do passado. A voz da enfermeira Fininha. Tão obstinada e magra quanto um ponto de exclamação, o que lhe valeu o apelido, Josefina Aparecida Saccani já tinha encerrado seu turno naquela tarde do verão de 1976. Mesmo assim, continuava no corredor do hospital de Jaboticabal, cidade próxima a Guariba, de onde o casal tinha vindo em busca de socorro para a filha. Inconformada, Fininha tentava encontrar uma carona para a menina que morreria naquela noite se não conseguisse chegar ao Hospital das Clínicas, na capital. Não havia ambulância disponível em Jaboticabal, nem em Ribeirão Preto, e o prefeito de Guariba dissera, em resposta ao pedido de ajuda do pai de Eliana: “Não conheço nenhuma família Zagui”.

Depois de muitas tentativas e um número equivalente de “nãos”, a enfermeira esbarrou com seu vizinho Tercílio, que havia levado um funcionário ao hospital para suturar a mão. Implorou por uma carona. E Tercílio, ao contrário do prefeito, escutou. Foi para casa, tomou um banho, avisou a família, botou os Zagui no banco traseiro do Ford Belina e tentou voar pelos 350 quilômetros que separavam Jaboticabal de São Paulo, a morte da vida.

Em setembro de 2002, quase três décadas depois, Eliana atendeu ao telefone e escutou a voz de Fininha. A enfermeira nunca soube o nome da menina cuja vida salvou. Mas jamais foi capaz de esquecer a garotinha loira de olhos tristes. Foi perguntando, perguntando e, 26 anos depois, conseguiu localizar Eliana numa UTI do Hospital das Clínicas. A voz de Fininha devolveu o passado à mulher que Eliana havia se tornado. E ela percebeu que precisava se adonar de sua história para seguir adiante.

Assim começou o livro. E continuou quando os editores Ana Landi e Eduardo Belo, os dois jornalistas que criaram a Belaletra Editora, perguntaram a Eliana: “Você quer mesmo publicar um livro?”. Eliana respondeu: “Quero. E tenho até o título: Pulmão de Aço”. Pulmão de Aço é uma máquina grande, parecida com um forno, onde pessoas com insuficiência respiratória eram colocadas, ficando só com a cabeça de fora.

Eliana foi enfiada lá por cinco dias quando chegou ao HC. Para ela, porém, não funcionou. Teve de fazer a traqueostomia e ligar-se para sempre a um respirador artificial. “Minha capacidade de sobrevivência fora do aparelho de respiração é bem limitada. No máximo três ou quatro horas. Aprendi já crescida a respirar com o que me resta dos pulmões – e isso exigiu grande esforço”, conta no livro. Devagar, porém, foi descobrindo que em seu corpo frágil e insuficiente morava mesmo um pulmão – e uma vontade – de aço. O pulmão resistia aos pedaços – a vontade, por inteiro.

Eliana nunca teve dúvidas sobre o título do livro. Mas tropeçou algumas vezes na escrita. “Estagnei por uns três ou quatro anos, pois o assunto que estava escrevendo era sobre a Eliana mulher, a Eliana desejo, a Eliana apaixonada e a Eliana ‘sexo’”, conta. “Embora o sexo esteja um pouco mais liberal, ainda é um tabu para as mulheres e homens que têm alguma deficiência física. Muitos ainda nos veem como seres assexuados e intocáveis para uma relação amorosa. Não queria que ficasse uma coisa besta e boba de uma menina, adolescente, moça, mulher apaixonada que só vive no mundo da lua e que espera um príncipe, num cavalo preto ou branco, que jamais existirá e chegará ao quintal do HC.”

Eliana só pode contar com a boca para escrever, pintar, virar as páginas dos livros, manusear o celular. Por isso, quando a escrita de suas memórias começou a causar muitas dores nos dentes e no maxilar, o dentista foi peremptório: ela precisava continuar a escrever no computador. Depois de muita briga, Eliana passou a digitar em um notebook. Ainda que seja com a boca, com a ajuda da espátula e da caneta, a pressão sobre os dentes e o maxilar é menor ao apertar as teclas do que ao forjar letras no papel. “Escrever no computador é algo muito frio e mecânico demais, mas, infelizmente, não tive outra opção. Continuar a escrever o livro no computador foi uma droga, no início. Eu não continuei de onde parei no caderno, eu digitei tudo o que já tinha escrito e continuar daí é que foi horrível.” Eliana continuou. Ela sempre continua.

Ao continuar, recuperou mais do que o seu passado. Devolveu uma alma ao que tinha sobrado apenas como estatística. Entre 1955 e o final da década de 70, houve 5.789 internações por pólio no Hospital das Clínicas. De todas as crianças atingidas com severidade, sete restaram na UTI do Instituto de Ortopedia e Traumatologia. Restaram porque não melhoraram o suficiente para voltar para casa, restaram porque não pioraram o suficiente para morrer. Paralisados de quase tudo, em camas lado a lado, estes sete cresceram e adolesceram entre as paredes do hospital: Pedro, Anderson, Tânia, Luciana, Cláudia, Paulo, Eliana. E foram morrendo, não apenas porque o corpo se tornava cada vez mais devastado pela paralisia, pela insuficiência respiratória e pelas infecções, mas porque era brutal se tornar adolescente numa cama.

Em 1996, Cláudia morreu. Era a melhor amiga de Eliana. Quando a noite cobria o hospital com um frio que não podia ser medido por termômetros, as duas meninas pediam às enfermeiras para botar a mão de uma sobre a mão da outra, já que não conseguiam se tocar por si mesmas. E assim atravessavam as madrugadas de gelo e de medo. Desde que Cláudia se foi, sobraram apenas Eliana e Paulo Henrique Machado, hoje com 44 anos.

Paulo Henrique Machado, o melhor amigo de Eliana e o único que sobreviveu além dela, na infância no hospital. Na cama, o pequeno Pedro, que morreria em 1992. Hoje, aos 44 anos, Paulo tornou-se designer gráfico e começa a trabalhar com filmes de animação (Foto: Arquivo pessoal e Vitor Salgado / Divulgação)

Paulo Henrique Machado, o melhor amigo de Eliana e o único que sobreviveu além dela, na infância no hospital. Na cama, o pequeno Pedro, que morreria em 1992. Hoje, aos 44 anos, Paulo tornou-se designer gráfico e começa a trabalhar com filmes de animação (Foto: Arquivo pessoal e Vitor Salgado / Divulgação)

Seguiram os dois, tendo apenas um e outro e uma família mutante de médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem – alguns notáveis, como “Pai Giovani”, “Tia Lu” e Fernando Flaquer, outros desprezíveis, como em qualquer família. Eliana e Paulo prosseguiram agarrados ao fio escorregadio de uma vida em que o ar é garantido por máquinas – decididos a arrancar dos dias uma existência subjetiva. Ainda que dentro – deles e da UTI.

Tanto Eliana quanto Paulo poderiam viver em casa, com o apoio do hospital, se tivessem uma família para onde ir. Essa possibilidade nunca chegou perto de virar realidade. As visitas dos familiares são raras – e sem abraços. “Pulmão de aço” é o livro de Eliana, mas também é de Paulo. Ele está presente na maioria das páginas e, mesmo quando há silêncio, Paulo escorre das letras. Com sonhos de cinema, Paulo tornou-se designer gráfico e hoje começa a trabalhar com animação digital. Agora mesmo, Paulo e Eliana estão lá, a cama de um diante da cama do outro. Entre quatro paredes de uma UTI, enquanto nas salas ao redor a vida de outros se encerra. Juntos, eles desafiam as estatísticas da medicina, a textura de graveto dos ossos, seus pulmões exaustos, o abandono, a falta, as ausências. Eliana e Paulo vivem porque desejam. O ar lhes falta, mas a vida eles engolem às golfadas.

É por isso que este não é um livro de pena. Perguntei a Eliana que repercussão ela esperava de “Pulmão de Aço” e me deparei com uma personalidade forte e um olhar agudo: “O que fica muito latente, em todo ser dito ‘normal’, é o vício de linguagem, ao dizer: ‘Você é um exemplo de vida’. Penso que todo ser humano, além de ser exemplo de vida ao seu modo, tem que viver na prática o exemplo que é. Mas não só para se beneficiar do outro porque se livrou de uma depressão, de uma tentativa de suicídio, das desgraceiras que poderia ter feito caso não tivesse ouvido uma história como a minha e a de Paulo, ou a de qualquer outro deficiente. Não somos bengalas e nem amuletos da sorte”.

Este não é um livro de pena porque Eliana não permite que seja. Ela diz: “O tamanho de minha ansiedade não é possível numerar em grau, pois oscila bruscamente tanto para 0,00000% como para 3.000,000000001%. É uma contagem louca e muitas vezes sem nexo, como tenho brincado nesses últimos tempos. Lançar meu primeiro livro e ainda ser no próprio hospital em que vivo há (quase) 37 anos é uma cesariana megaprogramada. Embora estarei rodeada de médicos, das mais variadas especialidades – enfermeiras, técnicos de enfermagem, todas as especialidades que há dentro desse Instituto de Ortopedia e Traumatologia – o parto será só meu. Como o Paulo disse, outra pessoa não poderia escrever essa história, pois só eu vivi, chorei, gritei, aprendi e cresci junto com ele e com os outros que também foram nossa família, mas Deus levou”.

Eliana e Paulo, sempre às voltas com o comprimento da vida, tornaram-se capazes de dar largura à sua existência. Na apresentação do livro, em letra cursiva, Eliana diz: “Se fisicamente não posso andar, em minha mente sou capaz de voar sem limites”. E ela, assim como Paulo, voa.

Acredito que a escrita, se tem uma função, não é a de apaziguar o leitor. A escrita tem de perturbar, cutucar, às vezes até ferir para lembrar que somos vivos, que sangramos e que nossa história está sempre em curso. Acho que o livro escrito por Eliana Zagui faz isso. Arranca-nos do lugar e nos leva para um universo que, sem a narrativa, jamais alcançaríamos. É por isso que é um bom livro. Porque Eliana Zagui tem uma história (e que história!) para contar. E a contou com verdade.

Os leitores desta coluna terão um pequeno grande privilégio, o de conhecer alguns trechos do livro com exclusividade. Quem quiser conhecer o livro inteiro, pode encomendar a partir de hoje pelo site da editora: www.belaletra.com.br. E, a partir do dia 10/4, também poderá comprar nas principais livrarias do país e, pela internet, nos sites de venda de livros. Escrito na primeira pessoa, com uma tiragem inicial de 5.500 exemplares, o livro deverá ter ainda um segundo lançamento, desta vez numa livraria. Eliana sonha com dar autógrafos entre prateleiras de livros – fora do hospital e além das quatro paredes.

A seguir, alguns trechos de “Pulmão de aço – uma vida no maior hospital do Brasil”:

Das centenas de crianças com pólio severa, que passaram pelo Hospital das Clínicas de São Paulo, sete sobreviveram por 20 anos. Depois, restaram Eliana e Paulo. Na foto, Eliana (na frente), Cláudia e Luciana, ainda na infância, vestidas para uma festa de Carnaval (Foto: Arquivo Pessoal)

Das centenas de crianças com pólio severa, que passaram pelo Hospital das Clínicas de São Paulo, sete sobreviveram por 20 anos. Depois, restaram Eliana e Paulo. Na foto, Eliana (na frente), Cláudia e Luciana, ainda na infância, vestidas para uma festa de Carnaval (Foto: Arquivo Pessoal)

O primeiro espelho

“Claro que não me recordo de quase nada de meus primeiros dias aqui no hospital. Mas tenho vagas lembranças de crianças dentro dessas geringonças. Lembro-me também de espelhos colocados sobre nossas cabeças, presos aos pulmões de aço ou mesmo às cabeceiras de nossas camas. Não sei de quem foi a ideia, mas a achei genial. Por meio dos espelhos pude ver que não estava só. Ao meu lado, dezenas de outras crianças encontravam-se na mesma situação.”

Mudança de endereço

“Com a erradicação da poliomielite, o Instituto passou a se dedicar quase exclusivamente a acidentados graves e doentes com problemas do aparelho locomotor, além de realizar reimplante de membros e retirada de tumores que atingem ossos e coluna. A enfermaria foi transferida do sexto para o primeiro andar. Foi a minha única mudança de endereço nesses quase 40 anos.”

Paulo

“Criada no hospital, eu o considero um irmão mais velho. A primeira pessoa a quem contei que estava pensando em escrever minhas memórias foi ele. Não só porque é meu melhor amigo. Como únicos remanescentes das vítimas da paralisia, somos colegas de quarto e ficamos juntos 24 horas por dia há mais de 30 anos. Não poderia expor minha vida sem que ele fizesse parte do relato. Ele precisava saber e concordar.

Talvez por ter enfrentado momentos delicados desde a infância, de início Paulo não se empolgou muito com a ideia. Demorou a participar deste livro. Tem sido difícil abrir sua caixa de memórias. A dor nos ensina a calar. E Paulo colecionou ao longo desse tempo alguns episódios dolorosos que justificam plenamente seu comportamento arredio.

Durante boa parte da infância, fomos mantidos sob rigorosa disciplina. Paulo conta:

– Quando eu era garoto, sempre fui chamado à atenção. Brigavam comigo porque eu falava alto. Me mandavam esperar minha vez de falar.

Praticamente, fomos educados pelo pessoal da enfermagem. Algumas pessoas foram extremamente sensíveis, doces. Outras, rígidas e frias. Mesmo assim, raramente fomos desrespeitados ou maltratados. O único episódio mais sério e literalmente traumático ocorreu justamente com Paulo.

Na infância, quando sentado, ele tinha o hábito de balançar as pernas. Sem controle da musculatura dos membros inferiores, usava o pouco movimento restante nas mãos para dar impulso às perninhas finas. Elas ficavam balançando de um lado para o outro, como se fossem pêndulos. Era só uma maneira de se divertir e passar o tempo, mas isso deixava uma das atendentes de enfermagem particularmente irritada. Em especial quando a brincadeira era feita perto da hora do almoço. Ela sempre ralhava.

– Pare de balançar essas pernas, Paulo.

Claro que ele não parava.

Um dia, depois de muito brigar e exigir que ele encerrasse a brincadeira, essa moça o viu segurar as pernas e acomodá-las com os pés juntos, em posição de lótus. Parece que isso a irritou ainda mais. Descontrolada, deu-lhe um tapa nos pés. Os ossos fracos, característicos de quem sofre de pólio severa, sofreram fraturas. Paulo passou meses com as duas pernas imobilizadas.

A direção do hospital agiu de imediato. Demitiu a atendente por justa causa.”

O dia em que o palhaço chorou

“Dr. Giovani fazia o possível para diminuir em nós a sensação de isolamento. Sempre com autorização da direção do HC, levou-nos a alguns passeios inesquecíveis.

Providenciava tudo: ambulância, cilindros de oxigênio, respirador portátil. Com ele, os meninos foram a parques e ao zoológico de São Paulo.

Mas nada pode ser comparado a nossa ida ao circo.

Conhecer o circo era um sonho. Dr. Giovani arrumou tudo, preparou a infraestrutura e nos levou — eu, Paulo, Tânia e Pedro — em duas ambulâncias. Mas naquela tarde caiu um temporal, faltou público e o espetáculo foi cancelado. Vendo nossa imensa frustração, o médico procurou o dono do circo, explicou a situação e o levou até nós, nas ambulâncias.

A reação foi imediata. A trupe nos maquiou como se fizéssemos parte do espetáculo e resolveu nos presentear com uma miniapresentação exclusiva. O encontro emocionou os artistas. A choradeira foi geral. Os palhaços conduziram o show sob lágrimas.”

Cláudia e a geografia

“Cláudia tinha a mesma idade que eu. Nascemos no mesmo ano. Eu em março, ela em abril. Só que a poliomielite a atingiu mais tardiamente. Fiquei doente antes dos dois anos, mas ela tinha mais de seis quando apresentou os primeiros sintomas.

(…)

Sentia-se num mundo estranho e, acredito, tinha esperanças de deixar o hospital e retomar o convívio dos pais. Os anos foram passando, e as visitas da família rareando até desaparecer. Depois da fase inicial, por um período de quase duas décadas, sua mãe veio ao HC apenas uma vez.

(…)

Mesmo assim, Cláudia os amava. Procurava justificar a ausência dos pais com o argumento de que moravam longe. Quando crescemos um pouco, já com dez ou onze anos, começamos a ter aulas. Uma das professoras, Elda de Lucca, nos deu as primeiras lições de geografia. Cláudia aproveitou:

— Tia, a casa dos meus pais é no Brasil?

— É sim, Claudinha. Eles são aqui da cidade de Campo Limpo Paulista, próxima a São Paulo.

— Mas isso é muito longe? – perguntou.

— Não, Claudinha. É perto.

— É como a casa da Eliana?

— Não. Pense assim: para virem para cá, os pais da Eliana demoram cinco horas. Saem de manhã e chegam só após o almoço. Os seus pais, se saíssem no mesmo horário, chegariam aqui em uma hora, antes de vocês tomarem banho.

Cláudia chorou durante uma semana.”

O abraço

“Adalberto foi protagonista de uma das minhas histórias mais marcantes. Eu tinha apenas oito anos e chorava desesperadamente. Ele entrou no quarto e perguntou o que estava acontecendo. Eu não sabia explicar. Solidão, tristeza, falta de carinho, dor. Tudo junto.

Tentou me consolar, mas eu chorava cada vez mais. Adalberto então enfiou um dos braços por trás das minhas costas, me ergueu um pouquinho e me enlaçou com força. Foi uma sensação maravilhosa. Jamais havia ganhado um abraço. Até hoje, nem mesmo meus pais jamais me abraçaram.”

Uma vida de partidas – sem poder partir

“Comecei a me dar conta de que a solidão e o sentimento de abandono me incomodavam mais que a própria doença e seus desdobramentos. A ficha começou a cair graças à população flutuante do IOT. Passei a me questionar: por que todo mundo tinha alta e ia embora? E por que a minha família não vinha me buscar também? Nessas horas, chorava muito.

O sentimento de abandono ficava ainda maior exatamente pela saída dos moradores e visitantes temporários. Quem trabalhava aqui, amigos dos amigos, pessoas que prestavam assistência religiosa e outros personagens saíam de nossas vidas da mesma forma que haviam entrado: de repente. Um por um, quase todos desapareceram, depois de termos criado algum tipo de laço.

Sei que a rotina de hospital, ainda mais numa UTI, não é das mais agradáveis… Muita gente nem tem estômago para entrar aqui. Perdi a conta de quantas pessoas desmaiaram na minha frente. Eu as entendo. Mas não consigo compreender por que alguns começam a nos visitar com constância, criam expectativas e depois desaparecem. São dezenas de casos assim. Pessoas a quem passamos a considerar nossas mães, pais, tios e irmãos. Claro que o sumiço, pelo menos da maioria, tem um motivo. Mas, quando nos apegamos a alguém, a dor da perda é muito grande.”

Perspectiva horizontal

“Quem vive numa cama não tem a mesma perspectiva das outras pessoas. Depois de tanto tempo deitados, não conseguimos mais ver o mundo na vertical. No meu caso, principalmente, a perspectiva é toda horizontal. Há anos, por problemas respiratórios, não posso mais usar nem travesseiro. Vejo o mundo de baixo para cima ou de lado. Não sei o que é olhar para baixo.

Paulo, quando criança, conseguia sentar-se um pouco. Em raras oportunidades foi colocado no chão. Por volta dos sete anos, ele cismou de jogar no chão o que estivesse por perto: cobertas, copos, talheres. As tias, intrigadas, perguntaram por quê.

— Quero ver se o chão é duro.

A experiência não aplacou sua curiosidade, e ele resolveu torná-la mais concreta: atirou-se no chão. Descobriu da maneira mais difícil que o chão era mesmo duro: duas pernas fraturadas e meses de imobilização.”

Traqueostomia na boneca

“Próximo à minha cama havia um berço vazio. Eu pedia às tias que o deixassem ao meu lado. Nele ficava minha boneca preferida, a Mechinha, da Estrela. Eu a imaginava como um paciente-bebê, uma filhinha morando comigo no hospital.

As atendentes colaboravam com minha fantasia. Colocavam um suporte com um frasco de soro e prendiam a ‘agulha’ no bracinho da boneca com esparadrapo. Mas eu queria um toque a mais de realismo: traqueostomizei a boneca e dei um jeito de injetar o soro.

Pedi que amarrassem uma cânula com gaze para simular uma traqueostomia. Na aplicação do soro, desviei uma agulha. Usei a boca para arrancar a tampinha. Com uma espátula consegui enfiar a agulha no braço do brinquedo e abrir a válvula. A boneca se encharcou e embolorou por dentro. Perdi o ‘bebê’, mas ganhei a consciência de que podia usar a boca para substituir as mãos em várias atividades.”

Greve de fome – por amor

“A presença de João do Pulo trouxe até o IOT grande número de policiais militares, encarregados de fazer a segurança e impedir o enorme assédio que se fazia ao nosso vizinho ilustre. Os policiais eram um mais lindo que o outro. Pelo menos para Tânia, Cláudia e eu.

Paquerávamos os policiais de modo muito platônico, claro. Sem ter muito que fazer, eles ficavam por lá, zanzando pelo hospital, e nos davam atenção. Ficávamos de papo com eles o dia inteiro e entramos em greve de fome quando a direção do hospital, incomodada com o nosso falatório diuturno, recomendou que os policiais não mais tivessem acesso à nossa enfermaria. O protesto deu resultado.”

Adolescência numa UTI

“A minha pior fase foi logo depois dos 12 anos. Até então, sonhava com o dia em que os médicos entrariam, esbaforidos, anunciando aos gritos a descoberta da cura para a paralisia e que, após algum remedinho ou injeção, em poucos dias estaríamos em pé novamente, correndo de volta para casa.

Na adolescência tivemos a certeza de que isso nunca ocorreria. A cada ano ficava mais claro que a nossa doença era irreversível. E que, mesmo que tivéssemos alta, não teríamos para onde ir.

(…)

Minha vida mudou aos 12 anos, quando menstruei pela primeira vez. Cláudia também, mais ou menos na mesma época e com a mesma idade. Foi um reboliço. Acho que por mais que todos estivessem cientes de que isso iria ocorrer — Tânia, por ser mais velha, já havia chegado à puberdade — foi um marco tão importante quanto ultrapassar a expectativa inicial de apenas dez anos de vida. Deixar de ser criança mudou meus relacionamentos — e também meu jeito de encarar a vida.

Cláudia e eu éramos românticas e sonhadoras. Começamos a nos sentir mocinhas, espécie de cúmplices das auxiliares e enfermeiras em assuntos femininos. Esse foi o lado bom. O ruim foi que começamos a ter a certeza de que não seríamos crianças para sempre e que, crescendo, o tratamento recebido das pessoas e do próprio hospital seria outro.

Quando novinhos, despertávamos compaixão imediata. Os que não apresentavam grande resistência ao nosso estado físico logo ficavam penalizados. Queriam nos consolar, ninar, dar presentes. Depois de crescidos, desajeitados e cheios de vontades — e sem perder totalmente alguns traços da infância, até por falta de contato com o mundo exterior —, a coisa complicou.”

Tentativas

“Algumas vezes pensei em acabar com toda essa dor. Tornei-me obcecada, tinha pensamentos mórbidos. Passei a estudar formas de tirar minha própria vida.

Avaliava as possibilidades: arrancar a cânula da traqueia com a boca, cortar ou furar o pescoço com algum objeto. Já tinha tudo planejado: esperaria um momento de descuido das auxiliares, faria uma prece e me despediria do mundo em silêncio. Quando notassem, seria tarde demais. Meus pais seriam chamados e, desesperados, chorariam – pela perda e pela culpa. Queria muito que eles sentissem minha falta.

Pouco antes dos 13 anos, ganhei um broche de presente, que guardava numa caixa de madeira, junto com outras lembranças. Pedia, todas as tardes, que as auxiliares a deixassem ao meu alcance.

Não imaginavam que, mais do que remexer em meus pertences com a espátula, meu maior objetivo era buscar uma maneira eficiente de usar o alfinete do broche para provocar um ferimento mortal em meu pescoço ou pulso.

Eu pegava o broche com a boca e tentava me furar. Pedia que colocassem meu braço perto do rosto. Alegava que era para poder sentir o toque da caixinha, mas queria mesmo era tê-lo ao alcance da boca para poder me ferir. O máximo que consegui foi espetar o braço. Algumas vezes nem saía sangue. Em muitas ocasiões, os profissionais da enfermagem nem percebiam – ou achavam que eu havia me machucado sem querer.

Também já tentei tirar o tubo de oxigênio. Muitos dos meus amigos aproveitavam uma oportunidade qualquer e se jogavam no chão. Sem êxito. Descobrimos que até para morrer antes da hora precisamos da ajuda de alguém.

Não posso negar que volta e meia essas ideias ainda me visitam. Mas tento me apegar aos estudos e à pintura sem lutar contra o tempo.”

A banalidade do mal

“Viver isolados do mundo nos deixa despreparados para muitas situações e nos torna ingênuos. Alvos em potencial de pessoas mal-intencionadas.

Por carência afetiva, desde pequenos nos apegamos com muita rapidez a quem quer que nos dispense um pouco de atenção. Não importa se médico, enfermeira, funcionário ou visitante. Bastava uma palavra de carinho para enxergarmos aquela pessoa como o nosso pai, mãe, protetor, alguém da família que nunca tivemos.

Nem sempre as pessoas de nosso convívio foram desprendidas e abnegadas, como Tia Lu, Tio Fernando, dr. Giovani. Algumas visitas e alguns funcionários eram extremamente instáveis ou impacientes. Outros simplesmente nos roubavam. Nada tínhamos de muito valor, mas de vez em quando conseguíamos juntar alguns trocados para um lanche. Várias vezes esse dinheiro e os presentinhos que ganhávamos sumiram.

(…)

Quando a desonestidade se misturava ao caráter completamente insensível de algumas pessoas, as decepções eram colossais. Paulo conta:

– Quando tinha uns 20 anos, meu sonho era ter um videogame. Eu e Pedrinho falávamos disso o dia todo. Como não tínhamos dinheiro nem sabíamos fazer algo que nos rendesse uns trocados, resolvemos organizar uma vaquinha entre amigos, médicos e funcionários. Não tínhamos conta em banco, claro, e o Tio Fernando sugeriu que trocássemos o dinheiro obtido por dólar. Pacientemente, ele se encarregou de fazer o câmbio. Juntávamos um pouquinho e dávamos para ele trocar. As notas ficavam numa carteira, a qual eu não largava. Dormia com ela sob o travesseiro. Meses depois — muitos meses depois, é verdade — de começarmos nossa arrecadação, já tínhamos 300 dólares. Dinheiro suficiente para comprar um modelo de última geração. Não nos aguentávamos de felicidade. Eu me agarrava àquela carteira até conseguir uma boa alma que pudesse nos comprar o aparelho, de preferência durante uma viagem ao exterior. Certo dia, me descuidei apenas por alguns minutos. Esqueci de levá-la comigo quando me tiraram da cama para trocar os lençóis. Assim que me colocaram de volta e consegui enfiar minha mão em baixo do travesseiro, soltei um grito de desespero: a carteira tinha desaparecido. Começamos a berrar. Uma das atendentes fez cara de surpresa e achou a carteira no chão. Sem os dólares. Choramos por semanas seguidas. O dinheiro não reapareceu.”

“Éramos sete”

“A perda de Pedro foi sentida durante meses. Abateu-se sobre nós um indescritível desânimo. Tínhamos tão poucos à nossa volta e acabávamos de perder um grande e querido amigo. Menos de um ano depois, o luto ainda estava muito presente quando Anderson exalou seu último sopro de vida.

A primeira perda abalou nossas convicções. Sabíamos que Pedro tinha saúde frágil, mas isso, afinal, não era exclusividade dele. Para nós, era como se fôssemos sobreviventes, achávamos que, passada a fase crítica na infância, estaríamos a salvo. A morte de Pedro nos mostrou que não era assim. A de Anderson nos trouxe a confirmação disso. Agora, a questão era saber quem seria o próximo.

Assistimos à morte repentina de Anderson. Foi traumático. Estava conosco, tranquilo, quando seus pulmões simplesmente entraram em colapso numa tarde de 1993. Sem conseguir respirar, gritava de desespero. Os médicos tentaram de tudo para salvá-lo.

(…)

A última imagem que guardo de meu amigo sorridente e sempre disposto a uma brincadeira é dele agarrado ao colarinho do dr. Takeda pedindo, com o que lhe restava de forças, que o salvasse.

Tânia nos deixaria no ano seguinte. Foi um processo silencioso, precedido de forte depressão. Até hoje acho que ela entregou os pontos. A moça vivaz, extrovertida, cansou de lutar. Simplesmente desistiu de viver. Morreu dormindo em 1994.

A partida de Luciana ocorreu pouco depois, também naquele ano. Estava com a saúde bem comprometida havia meses em virtude de uma séria parada respiratória. Já não nos reconhecia nem expressava reação alguma. Entrou em coma. Em seus últimos dias, só dormia e chorava de modo angustiante.

Diziam que não escutava mais. Tenho minhas dúvidas. Certa noite, todos dormiam. De repente, ela começou a chorar muito alto. Acordei e fiquei ouvindo aquele choro aflito. Sem saber o que fazer, criei coragem e disse em voz alta:

— Pare de chorar, Lu!

Ela parou.

Cláudia se foi em 1996. Depois disso, minha vida nunca mais seria a mesma. Restamos Paulo e eu.”

Independência

“Travei contato com a terapia ocupacional por volta dos oito anos. Mais ou menos quando descobri que era diferente da maioria das outras pessoas, incluindo meus colegas de enfermaria. A paralisia lhes poupara pelo menos parte do movimento das mãos. Eu e Cláudia não recebemos esse benefício.

As terapeutas promoviam brincadeiras, mostravam letras e números, nos faziam cantar musiquinhas. Comigo, testaram alternativas para que eu utilizasse a boca para alcançar objetos próximos. Tentaram com um lápis, mas não funcionava muito bem. O lápis é muito liso, roliço, não serve para ‘pescar’ as coisas.

Testaram uma caneta, também sem sucesso.

Depois de meses de experiências fracassadas, quase sem querer, os profissionais do hospital notaram que a espátula de examinar garganta seria a melhor opção. Achatada, ela facilita o uso, além de existir em abundância em qualquer hospital.

Com o tempo, fui ficando craque na espátula. Aprendi a puxar coisas, cobrir o rosto, empurrar cobertas. Descobri ainda que, fazendo um corte numa das pontas com os dentes, conseguia utilizá la como uma garra. Passei a encaixar as coisas nessa ranhura e manejá las. É minha ‘mãozinha’, como diz Paulo.

(…)

‘O que ela acha que pode me ensinar?’, pensei, várias vezes, durante o aprendizado com a pintura, quando as terapeutas usavam as mãos e tentavam me fazer pintar e desenhar com a boca. ‘Ela já fez alguma coisa com a boca?’ Assim como ocorreu quando aprendi a escrever, durante a adaptação ao uso da espátula nas atividades artísticas, tive momentos de revolta. Era duro aceitar que eu nunca usaria as mãos. Nessas horas, jogava tudo no chão ou rasgava o caderno de tanto riscá-lo com força.

A revolta parou quando percebi que não adiantava nada. Teria de me tornar minimamente independente. Precisava fazer um esforço. É bem isso que sou hoje: minimamente independente. Sei escrever, teclar, pintar, atender telefone, virar as páginas de um livro, mas dependo demais dos outros. Além de cuidarem da minha higiene e alimentação, tenho de esperar que coloquem os objetos ao meu alcance. Então, realizar essas tarefas com a boca é o que me ajuda a me sentir viva e me dá um pouco de dignidade. De outro modo, seria um vegetal.”

O mundo, pela primeira vez

“Depois de minha ida ao circo, com pouco mais de dois anos — e da qual, infelizmente, quase não guardo lembrança alguma — fiquei 12 anos sem sair daqui. Assim, nada mais compreensível que o ataque de ansiedade que tive diante da primeira oportunidade de dar uma voltinha.

Estava com 15 anos. Graças à terapia, já conseguia ficar de duas a três horas sem o respirador artificial. Também estava com a saúde razoavelmente em dia. O convite para um breve passeio partiu de Eleni. Ela me chamou para conhecer sua casa. Disse que faria tudo para obter a autorização do hospital e se responsabilizaria formalmente por mim.

(…)

No dia do passeio estava tão tensa que fiquei com medo de passar mal e abortarem a saída. Fiz de tudo para disfarçar. Lembro-me da emoção que senti quando me colocaram na maca e a desceram ao pátio rumo à ambulância.

Foi a primeira vez na vida em que pude ver as árvores em toda a sua grandeza. Da sacada, só conseguia ver as copas e parte do tronco. Vi também o céu, maior e mais bonito do que na TV. E me espantei com o movimento intenso de carros, ônibus e pessoas pela cidade.

A chegada à casa foi outra emoção arrebatadora. Era assim que era uma casa?”

Mar

“Em 1998, Cleide nos convidou para irmos até sua casa em Praia Grande. Ficamos em dúvida se iríamos ou não até o último momento. O tempo não estava ajudando. A previsão indicava tempo bom, mas o céu estava fechado no dia do passeio.

Os voluntários resolveram arriscar. Acho que Deus, com pena, decidiu abrir o tempo por alguns minutos para que pudéssemos desfrutar da praia.

Ao abrirem a porta da ambulância, tivemos uma das maiores emoções de nossas vidas. Um deslumbramento. Fazia frio, eu e Paulo continuávamos lá dentro, totalmente enrolados em cobertores. Esticávamos o pescoço para não perder um centímetro da paisagem. Um cenário grandioso, aquele encontro do céu com a água no horizonte. Começamos a tremer como loucos. E nem era de frio.

O dr. Maneta, que acompanhava o passeio, temia alguma complicação de saúde. Ele estava em dúvida se deixaria ou não a gente sair da ambulância. Ao final, cedeu:

— Eles vieram aqui para ver o mar, não é? Então vamos descer. Eles vão ver o mar de perto.”

Paulo Henrique Machado, Eliana Zagui - e o mar (Foto: Arquivo pessoal)

Paulo Henrique Machado, Eliana Zagui – e o mar (Foto: Arquivo pessoal)

(Publicado na Revista Época em 02/04/2012)