Doutor Advogado e Doutor Médico: até quando?

Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?

Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como a língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes do nome de um médico ou de um advogado.

Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.

Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”.

Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário, na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.

Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora, intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi este:

– E como os fregueses o chamam?

– Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.

– O senhor chama eles de doutor?

– Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor….

– É esse o segredo do serviço?

– Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.

A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.

Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.

Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?

Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à sua própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa tese estaria num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os médicos em décadas posteriores.

Há, porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D. Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.

Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto do Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a tudo o que veio depois?

O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial, permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a atualidade do “doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade brasileira mudou bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.

É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no qual o título era uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no amplo sentido do termo.

No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título de “doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade patologizada, na qual as pessoas se definem em grande parte por seu diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo, hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo modo, numa época histórica em que juventude e potência se tornaram valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das intervenções cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a defender que a velhice é uma “doença” que poderá ser eliminada com o avanço tecnológico.

O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor, delegado têm cada um suas causas e particularidades na história das mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado, juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos. Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros. Não apenas como representantes de um poder que pertence à instituição e não a eles, mas que a transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.

Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor de uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor, juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto de intervenção.

Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor” permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de classe. Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos mais ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente de defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de desamparo se estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida brasileira.

Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério….” Não conheço em profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.

É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu respeito.

Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo e da produção de conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de professor.

Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral, nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza, os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade da sociedade brasileira.

Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2012)

 

Romualdo, o cachorro que envelhece

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Eu soube que a infância dela tinha acabado quando escrevia no meu escritório e ouvi um ruído atrás de mim. Ela passava com seus novos cabelos cor de laranja pelo corredor, arrastando um saco de lixo. O que você tem aí?, eu perguntei, incauta. Meus bichos de pelúcia, ela disse. Saltei da cadeira de rodinhas, ainda era o tempo em que eu conseguia saltar, e impedi a chacina quando ela já se preparava para descer as escadas do edifício, rumo ao latão de lixo reciclável do térreo, onde desovaria os corpos. Ela se livraria de todos, menos de um.

Menos de um porque ele não era um bicho de pelúcia. Ou era quando foi comprado pelo meu irmão mais velho num supermercado para acompanhá-la em sua primeira viagem além das fronteiras da casa, do país. Mas isso foi antes de descobrirmos que estava vivo. Ela deu a esse cachorro — sim, era um cachorro — um nome tão comprido e composto quanto o de Dom Pedro II. Para os íntimos, porém, e eu me incluo nesse grupo seleto, ele foi sempre Romualdo.

Por que você faria uma coisa dessas?, eu perguntei, chocada, diante do saco de corpos de pelúcia. Porque eu cresci, ela poderia ter me dito. Mas não disse. Eu não gosto de bichinhos de pelúcia, ela falou. É tu que gostas. Eu?

Era eu mesma. Quando ela nasceu, meu irmão mais novo deu a ela um urso peludo. Eu era tão criança que a larguei no berço e fiquei penteando o urso que nunca tive. Naquela época, o urso tinha mais cabelo do que ela, que se limitava a um par de olhos bem azuis entre duas bochechas que fariam inveja ao pão de açúcar. Depois, ela ganhou um cabelo loiro em que eu fazia penteados dos anos 80 que até hoje a constrangem nas fotos.

Ela não reparava que eu era criança. Contra todos os prognósticos, sempre teve certeza de que eu era a mãe dela. E me amou com um amor incondicional. Era a única a aprovar meus cabelos azuis, amarelos, rosas, verdes, com penas de pavão ou mesmo quando eu raspei a maior parte deles. Eu olhava para ela e sabia que ela me achava linda. Eu era a mãe dela. E, aos poucos, ela me provou que não havia nada melhor para ser na vida do que mãe dela.

Não sei o que ela fez com os bichos de pelúcia que eu salvara tantos anos atrás. Acho que se livrou deles em algum momento dos muitos em que eu não estava olhando. Livrou-se de todos, menos de um.

Tampouco sei precisar quando descobrimos que Romualdo era vivo. Mas não chegou a nos causar maior espanto. Tínhamos essa naturalidade com o mistério e uma série de gestos em comum, eu e ela. Achávamos normal quase tudo. Romualdo era tão amoroso que sabíamos que jamais se transformaria em Chuck, o boneco assassino. Bastava olhar para ele para que, de imediato, o mundo voltasse a ser um lugar que ambas podíamos habitar. Muitas vezes, foi ele que a protegeu quando eu não o fiz. Em outras, quando eu me esfarinhava por aí, ela me emprestava-o por alguns dias, para que ele pudesse cuidar de mim. Depois, resgatava-o de repente, sem nenhuma explicação.

Romualdo testemunhou toda a vida dela, dos 8 aos 30.  Sabe mais dela do que eu. Jamais a decepcionou, como eu. Esteve sempre lá, eu não. Uns dois anos atrás percebemos que Romualdo envelhecia. Seu pelo marrom perdera o viço e começara a ficar grisalho. As sobrancelhas, assim como os cílios, tornaram-se finas e brancas. Seu topete rareava. Nem tentamos uma explicação mágica, nós sempre soubemos que a velhice também chegaria para ele. Ao nosso redor, as pessoas se assombravam, desfiando justificativas lógicas. Nós não.

Hoje, ela me entregou Romualdo para que eu cuide dele — ou ele de mim — por um ano. Ela vai para longe, viver aventuras de adulta. Eu fico, sem saber como foi que ontem ela nem tinha cabelo para pentear e agora me olha com sua primeira ruga quase invisível embaixo do olho esquerdo. Ela ainda tem bochechas, mas não gosta que eu mencione o fato. Sei que ela vive sem mim, não sei se consegue viver sem Romualdo. Ela está insegura, eu sinto. O que significa deixar Romualdo? Entendo por que ela me deixa, mas o Romualdo?

Restamos eu e ele, vendo nossa menina partir com pose de mulher, com um outro que chegou ontem e já a carrega embora. Romualdo, eu ralho, como você permitiu isso? Ele me olha, ternurento e cheio de paciência, me conhece bem e sabe que em algum momento a razão haverá de retornar. Mas logo em seguida se distrai e esquece que eu o observo. Vejo então uma pequena lágrima suicidando-se ao lançar-se da ponta de um cílio do seu olho esquerdo. Ele jamais tinha sido deixado para trás antes e sabe que isso significa algo.

Restamos eu e ele, sem saber como se pode amar tanto alguém, sem saber o que foi que aconteceu nesses anos todos, como foi que de repente ela partiu sem nós. Eu penteio os cabelos ralos de Romualdo, mas ela não está mais nem no berço, nem em parte alguma que possamos ver. Perdidos de tudo, porque quase tudo era ela, dormimos abraçados para que ela possa nos encontrar na volta e nos contar de um mundo aonde jamais iremos. De agora em diante, será assim. E é assim que tem de ser. É o que digo a Romualdo quando peço a ele que arranque um fio branco que aponta na minha cabeça marrom.

Você quer ser pessoa ou paciente?

A resolução do Conselho Federal de Medicina nos devolve uma decisão que nunca poderia ter deixado de ser nossa: a escolha de como viver o fim da nossa vida. Como nos alienamos tanto a ponto de permitirmos que chegasse a esse ponto?

É um avanço profundo a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), divulgada na semana que passou, que devolve ao paciente a decisão de escolher como quer viver o fim da sua vida. Para relembrar: quem estiver com uma doença crônica ou degenerativa pode escolher se quer ter sua vida prolongada, à custa do que tem sido chamado de “tratamentos fúteis”, ou quer que respeitem seu tempo de morrer, beneficiado pelos “cuidados paliativos”. Tratamentos fúteis são todos aqueles que apenas adiarão a morte, mas sem dar qualidade para a vida – aumentando e estendendo o sofrimento. Procedimentos como submeter alguém a uma cirurgia quando já não há como curar a doença, ressuscitar quem está em estado terminal e teve parada cardíaca, ligar alguém a aparelhos quando tudo o que se conseguirá é uma existência vegetativa. Cuidados paliativos são tanto físicos quanto psíquicos e envolvem não só médicos, mas uma equipe multidisciplinar. Os profissionais estão lá para amenizar a dor, mas sem espichar nem abreviar a vida. A ideia é respeitar o tempo de morrer e usar o conhecimento científico e também de outras áreas para que se possa viver da melhor maneira possível até o fim. A qualquer momento, qualquer um de nós pode escrever e até registrar em cartório um documento, que pode ser chamado de “testamento vital” ou de “diretiva antecipada de vontade”, no qual determinamos o que permitimos – e o que não permitimos – no caso de sermos levados a um hospital ou precisarmos de cuidados médicos.

Passei a preparar meu testamento vital desde que acompanhei as duas grandes possibilidades do fim de uma vida, anos atrás, quando ela se dá no palco de um hospital. E percebi que, para mim, uma amante do cinema e da literatura de terror nas obras de ficção, não haveria terror maior na vida real do que morrer numa UTI, amarrada a fios, entubada e sozinha. Não mais uma mulher, uma vida em curso, mas um objeto de intervenção médica. Quero morrer sem dor física, ou pelo menos com o mínimo de dor possível, de preferência na minha casa, rodeada por aqueles que eu amo. E espero conseguir viver da melhor forma possível até o fim – o que inclui viver a minha morte com dignidade.

Se a resolução do Conselho Federal de Medicina (leia aqui) é uma boa notícia, vale a pena pensar também sobre o que ela nos diz para além do texto. Uma resolução do CFM não é uma lei, mas uma regulamentação da prática médica feita pelo órgão de classe, responsável por fiscalizar e normatizar o exercício da medicina no país. É importante, sem dúvida que é, mas há muito ainda a lutar para que recuperemos nosso direito de escolha. E podemos começar com a seguinte questão: em que momento delegamos aos médicos a decisão sobre o nosso morrer? Que é, em última instância, uma decisão sobre o nosso viver?

Dando alguns passos para trás, para enxergarmos o quadro maior, poderíamos pensar no quanto é curioso ser preciso uma resolução do CFM para dizer que é aquele que vive e aquele que morre quem tem o direito de escolher sobre a sua vida e a sua morte. Como alguém, nós ou os médicos, fomos capazes de pensar que essa decisão pudesse pertencer a outra pessoa? A que ponto chegamos para que seja preciso que os médicos nos devolvam algo que sempre foi nosso? Como foi que nos alienamos do processo da vida, tanto que aceitamos ser transformados em sujeitos passivos de intervenção e de decisão médica num momento tão crucial de nossa existência?

O fato é que, desde o século XX, a morte tornou-se marginal na nossa sociedade, algo a ser escondido dentro dos hospitais, em ambiente asséptico. E o morrer tornou-se um ato quase obsceno, que nos lembra de nossos limites num momento histórico obcecado pela juventude e pela potência. Nossa crescente impossibilidade de lidar com a certeza da morte produziu pelo menos duas distorções: médicos que abusam do poder e extrapolam limites e pessoas infantilizadas no momento de tomar uma das decisões mais importantes da vida.

Reparem que escolho a palavra “pessoas” – e não “pacientes”, nosso nome a partir do momento em que entramos num hospital, clínica ou consultório médico. Como pessoas, temos uma história, um percurso, uma teia de sentidos. Como pacientes, como a etimologia da palavra nos prova, tanto quanto a prática cotidiana, somos esvaziados de nossos sentidos e de nossa história para nos tornarmos um sujeito passivo. A palavra “paciente” vem do latim patientia, que significa “virtude que consiste em suportar os sofrimentos sem queixa”.

Somos “pacientes” com relação a um outro, que tem poder sobre nós. E não é obra do acaso que, tanto na posição de doentes quanto na de velhos, médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, fisioterapeutas etc seguidamente nos tratam por diminutivos, como se fôssemos crianças pequenas. É difícil quem não tenha vivido ou testemunhado esse tratamento num hospital, clínica ou consultório. Parece apenas trivial, alguns consideram até carinhoso, outros vagamente irritante, mas a escolha das palavras desvela nosso lugar – e também um processo histórico e um embate no campo da ética.

Na prática, a relação com a doença e com a morte é vivida por boa parte dos médicos, acredito que a maioria, como uma guerra. Perder um “paciente” é decodificado como derrota. Logo, o médico passa a acreditar que tudo é permitido para prolongar a vida e seguir no combate. Nessa lógica, pessoas além da possibilidade de cura têm sido submetidas a tratamentos invasivos e dolorosos que apenas encolhem a qualidade dos seus dias. Muitas delas são impedidas de viver o fim da sua vida da melhor forma que lhes é possível, perto das pessoas que fazem parte da sua história e dos objetos que a contam. E gente demais tem morrido sozinha e aterrorizada numa UTI.

Se o médico vê a si mesmo como um comandante em armadura branca, é ele quem tomará as decisões. De um “paciente”, como de um soldado, espera-se apenas que colabore, cumpra ordens. O bom “paciente” é aquele que aceita de bom grado as determinações médicas, mantendo-se no seu lugar de passividade diante daquele que detém o poder e sabe o que é melhor para ele – e qual é a melhor estratégia para vencer cada combate. Recuar parece ser mais difícil para alguns médicos do que foi para muitos dos grandes generais da História.

Mas o médico é apenas um dos protagonistas desse enredo – não o único. Tornou-se o que é não apenas porque o poder é tremendamente sedutor, mas porque permitimos que exerça esse poder. Como todos nós, os profissionais da saúde fazem parte dessa sociedade e desse momento histórico, no qual o corpo de uma pessoa doente é visto como um campo de batalha. Parte de nós espera de um médico que, diante da nossa fragilidade, diga: “Não se preocupe, vamos lutar com todas as armas da medicina”. Em troca, ele só espera nossa completa obediência. Muitos não têm sequer paciência para explicar a estratégia e os danos colaterais do tratamento – e há aqueles que se ofendem quando questionados. Do mesmo modo que não há enterro de pessoas que viveram uma doença prolongada, como câncer, em que familiares e amigos não comentem diante do caixão: “Foi um guerreiro. Lutou até o fim”! A escolha das palavras é, mais uma vez, reveladora. Todos nós colaboramos e cumprimos nosso papel nesse jogo de ilusões. Assim, todos somos responsáveis pelos abusos que aí estão.

Desde os anos 60 do século passado vozes dissonantes começaram a ser ouvidas, questionando a mentalidade reinante. Afinal, muitas vezes a maior coragem é reconhecer os limites e parar de lutar. Ou, dito de outra maneira, aceitar o fim da vida e tentar viver da melhor maneira possível os dias que restam – o que certamente não inclui tratamentos dolorosos e invasivos, ampliados pelo avanço tecnológico. Se você tem pouco tempo de vida, vai querer gastá-lo em hospitais, amarrado a fios ou fazendo exames e cirurgias, com estranhos que o tocam com luvas? É possível que não.

Já escrevi esta frase aqui, mas vou repeti-la mais uma vez: “A morte não é o contrário da vida, a morte é o contrário do nascimento. A vida não tem contrários”. Ou seja: morrer é parte da vida, não seu oposto. Precisamos aprender a viver também a nossa morte, por mais difícil que seja – e, com certeza, é muito. De certo modo, o morrer será a última grande novidade na vida de todos. Querendo ou não.

Como a morte por doença e por velhice, a morte da maioria, tem sido calada entre nós, temos perdido uma grande chance de pensar sobre a vida. E como tudo que é silenciado e reprimido, também a morte tornou-se apenas horror. Assim, nada mais prático do que delegar a tarefa de decidir sobre esse momento crucial ao médico. O medo é tanto que preferimos abdicar da nossa autonomia e nos colocar na mão de alguém que espera ser chamado de “doutor” – outra palavra que no Brasil diz muito sobre as relações de classe e de poder, tanto nas leis quanto na medicina. Diz tanto sobre o lugar do médico quanto sobre o nosso lugar diante dele. Se os médicos acreditam ter controle absoluto sobre as decisões da nossa vida e da nossa morte, a ponto de fazerem cirurgias em nosso corpo até mesmo contra a nossa vontade, é só porque podem contar com a nossa cumplicidade. E a tem porque nos é conveniente.

O que o Conselho Federal de Medicina está dizendo aos seus é o seguinte: “Vocês não têm mais o aval da instituição para abusar do seu poder”. Decisões tomadas à revelia do “paciente” não poderão mais ser ocultas atrás da obrigação de empreender todos os esforços para supostamente salvar uma vida. Nesses casos, sabe-se que não há como salvar uma vida, só há como espichá-la a um preço altíssimo – o sequestro da qualidade dos dias que restam. O CFM está lembrando também algo que parece ter sido esquecido: nem sempre um médico pode curar, mas sempre pode cuidar.

Quem decide sobre como viver e como morrer é quem vive e quem morre. E é triste que seja preciso o CFM nos dizer isso, quando cada um deveria ter dito a cada médico que tenha tentado tomar uma decisão em seu lugar. Ao médico cabe esclarecer todas as alternativas, da forma mais clara e didática possível. À família cabe compartilhar, trocar ideias e dar apoio à decisão tomada. Mas a escolha sobre como viver o fim da vida é pessoal e intransferível. Não é do médico e também não é da família, que muitas vezes toma para si o poder de decidir sobre a vida de quem morre, com a justificativa sempre bem vista socialmente do amor extremado.

Se o CFM deu uma boa resposta ao debate travado na sociedade sobre o viver da morte, na prática essa realidade só vai mudar se mudarmos nós. Quem levou essa discussão adiante, desde a segunda metade do século passado, foram os movimentos de vanguarda, liderados por profissionais da bioética e dos cuidados paliativos. Mas a vida muda de fato na prática cotidiana. Muda quando mudar nosso comportamento dentro de consultórios, clínicas e hospitais. Muda quando a morte voltar a ter seu lugar central na vida – abandonando a posição marginal na qual a relegamos.

Não se iluda. Fugindo ou não dela, é a morte que dá sentido à vida. É diante da possibilidade do fim que criamos uma existência que valha a pena. Sem ela, deixaríamos tudo para um amanhã que nunca chegaria, presos a um presente tão repetitivo quanto infinito. Calar a morte é uma burrice, já que inútil, mas é principalmente a perda de uma grande oportunidade para viver uma vida mais viva.

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Encerro esta coluna com a sugestão de uma aventura pelo universo da morte, através do cinema, da literatura e da reportagem. Cada um vive o seu percurso a partir de suas próprias experiências, mas duvido que alguém saia dele menor do que entrou. As obras indicadas a seguir fazem parte de minha trajetória para compreender essa questão – e também deixo aqui alguns dos meus trabalhos sobre o tema. Há muito mais do que isso, escolho apenas o que me pareceu mais interessante. Seria ótimo se cada leitor pudesse acrescentar, nos comentários desta coluna, suas próprias descobertas, compartilhando aquilo que o ajudou na sua busca.

Livros:

– O homem perante a morte, de Philippe Ariès (obra em dois volumes, na qual o historiador francês mostra como a morte foi vista ao longo da História – é um livro fascinante e até hoje o que existe de mais completo sobre o tema);

– A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói (uma pequena obra-prima da literatura russa);

– O ano do pensamento mágico e Noites Azuis, dois livros de Joan Didion (a escritora americana perdeu o marido e depois a filha, o que a levou a uma longa reflexão sobre a fragilidade, a velhice e a morte – escrevi sobre o último aqui).

Filmes:

– Hanami, cerejeiras em flor, de Doris Dorrie (este é o meu filme preferido sobre a vida e sobre a morte e um dos melhores filmes que vi na vida – totalmente delicado e imperdível);

– Poesia, de Lee Chang-Dong (escrevi sobre esse filme aqui);

– A Partida, de Yojiro Takita (o olhar da sociedade sobre as pessoas que lidam com a morte);

– Ensina-me a viver, de Hal Ashby (um diálogo criativo e revelador entre o jovem Harold e a velha Maude).

– Mar adentro, de Alejandro Amenabar (sobre um homem lutando pela eutanásia, um direito que ainda não temos).

Algumas reportagens que fiz sobre o tema (basta clicar no nome para lê-las):

A enfermaria entre a vida e a morte, A mulher que alimentava, Minha vida com Ailce (nesta reportagem, dividida em três textos, discuto nosso olhar sobre a morte e conto o cotidiano de uma enfermaria de cuidados paliativos, acompanho os últimos 115 dias da vida de uma mulher com um câncer além da possibilidade de cura e, por fim, reflito sobre como foi viver essa experiência);

O filho possível (aqui, acompanho uma unidade neonatal de cuidados paliativos);

Testamento Vital (nesta coluna, abordo o início da discussão dessa resolução do CFM e entrevisto José Eduardo de Siqueira, um médico humanista que tem muito a nos dizer);

Profissão Repórter (neste programa de TV, Thaís Itaqui, Caco Barcellos e eu contamos a rotina de uma enfermaria de cuidados paliativos).

Boa jornada!

(Publicado na Revista Época em 03/09/2012)

 

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