Entrevista, em formato videocast, concedida ao Portal Cronópios.
Arquivos anuais: 2012
Vestiu a camisa do Corinthians e foi à formatura da filha
Amanda, filha de Estela e de Hustene, tornou-se enfermeira diplomada – um marco na história da família Costa Pereira, da Grande São Paulo. Eles estão entre os cerca de 40 milhões de brasileiros que ingressaram na classe C entre 2003 e 2011. Este é mais um capítulo da saga brasileira que acompanho há uma década
Hustene Pereira, 52 anos, nunca tinha visto lugar tão chique. A casa de espetáculos Skyline fica em Alphaville, um condomínio fechado nos arredores de São Paulo que tenta imitar um daqueles subúrbios americanos com grandes casas e ruas bucólicas que vemos nos filmes de Hollywood. Nos filmes e seriados, é lá que as piores coisas acontecem. Aqui, a história é muito menos óbvia. Na segunda-feira, 16 de janeiro de 2011 – datas históricas exigem completude –, houve certo burburinho quando aquele homem entrou no salão vestido com uma camisa do Corinthians. “Não a do time, mas uma de gala”, Hustene explica. Entre engravatados e mulheres de longos brilhantes, ele era uma aparição inusitada. Ao seu lado, sua mulher, Estela Costa, 45 anos, três quilos e meio mais magra para a ocasião, exibia uma elegância clássica em um vestido doado por uma quase parenta, e teria se harmonizado com a etiqueta do entorno, não fosse o marido em “Corinthians-gala”. Hustene e Estela estavam ali para testemunhar algo inédito na história da família: a primeira Costa Pereira, entre todas as gerações, a receber um diploma universitário. Amanda, 27 anos, sairia dali enfermeira.
É tão grande, mas tão grande, que Hustene, a quem nunca faltam palavras, só encontrou uma para descrever: “indescritível”. É Estela, que só pôde estudar até a quinta série, quem traduz com uma metáfora: “Eu nunca sonhei que um dia pudesse ver uma filha formada, nunca pensei que algo assim pudesse acontecer com pessoas como nós. Quando eu vi minha filha lá, recebendo o diploma, para mim era um outro parto. Um ainda mais gostoso do que o primeiro. Era a minha criação que estava ali”. Estela chora. Chora com soluços fundos. E só quem viu Estela chorar por tanta falta de comida, por tanta falta de saúde, por tanta falta de tudo, consegue não alcançar, mas ao menos chegar perto, da exorbitância daquela cena: Amanda no palco, com o chapéu de formanda na cabeça, e Estela, sempre tão contida, gritando seu nome, de pé. Hustene olha para Estela e também vira água. Não é pouco chorar de felicidade.
Gente como Hustene e Estela faz parte da maioria de brasileiros que há séculos constrói o Brasil, dia após dia, mas não é contada na História. Até pouco tempo atrás, eles só existiam como estatística. Desde que entraram no mundo do mercado ao virar classe C, respondendo por 46% do consumo no Brasil, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, tornaram-se um desafio para marqueteiros, publicitários e ólogos de todo tipo. De que carne são feitos?, é a pergunta do mercado e da academia.
Acompanho a família Costa Pereira há uma década – desde o último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, quando Hustene era mais um chefe de família desempregado. Quando nos encontramos pela primeira vez, na virada de 2001 para 2002, eles pertenciam à outra classificação: “excluídos”. Graças à generosidade dessa família, ao me abrir as portas da casa e da vida, testemunhei pelos seus olhos as mudanças ocorridas ao longo de todo o governo Lula. E, agora, também no de Dilma Rousseff.
Quem tiver interesse pode acompanhar os principais capítulos do percurso dos Costa Pereira neste século nos seguintes textos, por ordem cronológica: “O Homem-Estatística”, “Ao amigo presidente”, “Hustene chorou baixinho”, “Uma família no governo Lula”, “A história dentro da história”. Acredito que a saga dessa família vai muito além de uma transição da classe D, às vezes E, para a classe C. Este é apenas um recorte. A história humana transcende as classificações e, encarnada na vida, tem natureza imprevista.
No capítulo mais recente, Hustene exibe um peito estufado embaixo da camisa do Timão. Topetudo como sempre, motivo pelo qual ganhou na juventude o apelido de “Pankinha” (originado do substantivo “panca”), ele assim descreve sua entrada triunfal no salão para assistir à colação de grau da filha: “Eu era o mais bem trajado”. Horas depois, a família trocaria a latinha de cerveja de “absurdos” 7 reais da casa de Alphaville por uma comemoração na rede de lanches árabes Habib’s. “É muito melhor do que o McDonald’s”, garante Estela.
A formatura, o vestido e o cardápio
A formatura de Amanda, cujo nome foi dado por Hustene em homenagem à música de Taiguara, há algum tempo vem mudando a rotina da família. Ao ingressar na universidade, Amanda progressivamente passou a ocupar um novo lugar na estrutura familiar: o de quem detém um saber que ninguém mais tem. É Amanda quem orienta os pais, os irmãos e a sobrinha nas questões de saúde e alimentação. É também ela que é chamada para socorrer nos embaraços do mundo feminino. Como quando Estela começou a sofrer com o aquecimento global da menopausa e, há pouco, quando a neta Gabriele, de 11 anos, “ficou mocinha”. Envergonhada, Gabi não contou a ninguém. Só quis conversa com Amanda.
Quando Estela enfiou na cabeça que devia emagrecer para fazer bonito no vestido da formatura, tinha comprovado que a ascensão social poderia ser medida não só em renda – mas em quilos. Nos últimos anos, o carrinho de supermercado passou a se encher de produtos industrializados e apenas Hustene alargou em mais de 20 quilos. Segundo sua própria versão, adquiriu um porte de Ronaldo Fenômeno.
A família passou a identificar as fotos do passado recente, em que estavam todos “magrinhos”, como “nós no tempo do Fernando Henrique”. Nos anos de desemprego, Estela já era uma cozinheira criativa, que fazia milagres com ovo e farinha. Com o acesso à internet, ela passou a pesquisar, com afinco de exploradora, novas receitas nos sites de gastronomia, povoando a mesa de delícias e calorias. “Agora, até a Pantera está gorda”, resume Estela. Pantera é a cachorra.
No final de 2011, a obstinação de Estela em ficar elegante no vestido da formatura da filha deflagrou uma mudança na mesa dos Costa Pereira. Estela nem lembra quanto tempo faz que sentiu na boca a textura de um pão francês. O açúcar dos doces e bolos foi substituído por frutas e gelatina. As frituras diminuíram, e a carne passou a ser cozida. Duas vezes por semana, Estela troca a “mistura” (carne vermelha) por peixe, aproveitando as promoções que espia nas caminhadas diárias que faz com uma prima. Granola, linhaça e iogurte natural também entraram no vocabulário e no menu. A tudo, Hustene grita, só para implicar: “Prefiro ovo frito!”.
Ao tentar botar na mesa da família um cardápio mais saudável, Estela descobriu que não seria tão fácil. A garantia de alimentação foi uma conquista enorme, mas os melhores produtos ainda estão fora do alcance da “nova classe média”. Deixar de correr o risco da obesidade, um problema crescente no Brasil, como mostra a experiência cotidiana de chefes de família como Estela, depende da educação e das mudanças de hábito, mas depende também de preço. Estela bem que tentou trocar o óleo de soja por óleo de girassol. Mas, enquanto encontra óleo de soja por R$ 2,59 – e até R$ 1,58 nas promoções –, o de girassol custa mais do que o dobro. “E o de canola é mais caro ainda.” Estela também substituiu o arroz branco pelo integral, mas os preços a obrigaram a recuar. “Eu gasto R$ 4,30 por 1 quilo de arroz integral – e compro 5 quilos do branco por R$ 5,80”, exemplifica. “Numa família que consome 1 quilo de arroz por dia, entre o almoço e a janta, não dá.” Estela faz o que dá e até mais, patrulhando Osasco, na Grande São Paulo, semana após semana em busca de promoções.
O caminho privado da nova classe média
Uma terceira novidade colaborou para a mudança no cardápio. Hoje, apenas Hustene, Estela e a neta Gabriele, criada na casa dos avós, dependem do SUS. Os filhos trabalham com carteira assinada e têm plano privado de saúde como benefício das empresas. Foi pela facilidade de acesso médico que Diego, 24 anos, descobriu uma infecção no fígado causada pelo excesso de consumo de gordura, e Rodrigo, 29 anos, passou a ser acompanhado por uma nutricionista. Depois de perder 10 quilos e achá-los um por um, Rodrigo acabou concluindo que é mais fácil emagrecer fazendo uma cirurgia de redução do estômago.
Nesse aspecto, os Costa Pereira começam a se parecer cada vez mais com a classe média tradicional. Na família, apenas Hustene torce o nariz para a saúde privada. Ele, cujo corpo é uma denúncia ambulante da deficiência da saúde pública, acredita que o SUS precisa persistir e melhorar para que os brasileiros tenham acesso à assistência de qualidade. A convicção revela a força do caráter de Hustene: ele teve o primeiro dos dois derrames por falta de atendimento no posto de saúde, encontra-se há oito meses sem conseguir consulta no cardiologista e vive sob a ameaça de ficar cego por uma doença degenerativa nos olhos para a qual nunca encontrou tratamento. Mesmo assim, acha que é seu dever de brasileiro insistir – e obrigação do Estado melhorar. É o único.
O confronto de Hustene com a saúde pública levou Amanda a querer se tornar enfermeira. Um querer tão forte que, contra todas as probabilidades, ela conseguiu. “Eu sei o que é descobrir que o médico mandou seu pai embora do posto de saúde quando seu pai estava tendo um AVC. Mandou seu pai de volta para casa dizendo que ele só precisava de repouso, e ele estava tendo um AVC. Eu conheço o sentimento de impotência de quem precisa de ajuda e não tem, de quem é leigo e não sabe o que está acontecendo. Eu quis me tornar enfermeira naquele momento”, afirma. “Aquela roupa de formatura era muito quente, mas foi a melhor roupa que eu vesti na minha vida.”
Amanda estudou em uma faculdade privada. Pagou o curso com a ajuda do marido, que para isso manteve dois empregos nos últimos anos. Formou-se com uma dívida pendente de mais de um ano de mensalidades atrasadas. Como a maioria das mães de classe média, ela quer garantir escola particular à filha Rafaela, de 6 anos. “Não quero que minha filha passe pelas dificuldades que eu passei por ter recebido um ensino de má qualidade. Quero que ela estude em colégios privados e possa competir para entrar em uma universidade como a USP”, diz. “Eu estudei em escola pública a minha vida inteira e, apesar de sempre tirar boas notas, não tinha condições de competir com quem estudou nas escolas privadas. Também tive muita dificuldade no primeiro ano de faculdade. Eu não tinha o hábito de leitura e tive de aprender a interpretar os textos. Foi um esforço enorme, mas consegui. Agora eu leio bastante, porque sei que vou precisar me manter atualizada e também sei que hoje só a faculdade não basta. Assim que pagar as dívidas, eu vou fazer pós-graduação na área da saúde mental.”
É possível apalpar no relato de Amanda a diferença que a ampliação do acesso à universidade poderá fazer na vida cotidiana do país, ao levar para o mercado de trabalho especializado homens e mulheres que conhecem as dores dos mais pobres e que tiveram de arrancar o conhecimento com as unhas. A voz de Amanda sobe um tom ao afirmar: “Pode faltar tudo em um hospital ou em um posto de saúde, mas não pode faltar humanidade. Pode faltar material, mas ainda assim você pode parar e conversar. Às vezes, tudo o que alguém precisa é que pergunte como está se sentindo. Eu não quero ser mais uma enfermeira, eu quero fazer a diferença. Eu vou lidar com vidas humanas, tenho obrigação de ser a melhor profissional possível. É uma questão de dignidade”.
A távola redonda fica na cozinha
Na manhã do último sábado, os Costa Pereira se reuniram em torno da mesa da cozinha. Desde que a mudança de classe permitiu uma sequência de melhorias e a aquisição de eletrodomésticos e eletrônicos, a casa na periferia de Osasco foi batizada de “Complexo do Pankinha”. E, desde a formatura de Amanda, virou “Complexo Superior”. “Uma filha formada é outro naipe”, explica Hustene.
É na “távola redonda”, como chamam a mesa da cozinha, que tomam as decisões importantes. Naquela manhã, discutiam quanto cada um daria para comprar uma churrasqueira para o terraço. Mas este não era o tema principal da pauta. O principal era decidir o que cortariam para que Diego e Jade, 19 anos, pudessem usar seu salário apenas para pagar a faculdade que iniciam neste ano, sem precisar contribuir com as despesas domésticas. Diego, na área da administração, e Jade na de marketing.
Não são escolhas de utopia. Se fossem, Diego faria um curso que o levasse à carreira de arqueólogo, seu sonho desde sempre. E Jade pensava em fazer fisioterapia. Para ambos, as opções são determinadas pelo pragmatismo, e os cursos contemplam as necessidades das empresas em que já trabalham. Depois, é deles a tarefa de ajudar Gabriele a fazer universidade quando chegar a hora. “Meus filhos preferiram fazer vestibular e pagar do que fazer o ENEM, que está uma vergonha, todo ano com alguma enrascada”, diz Hustene. Ele costuma criticar os programas de bolsas do governo, seja o Bolsa Família ou o Prouni. “Um trabalhador tem de ganhar o suficiente para se sustentar. O resto é esmola.”
Hoje, a renda da família gira em torno de R$ 5 mil. “Em torno de” porque Diego adquiriu um hábito típico de classe média e anda preferindo ocultar o valor do salário. Nem para a mãe ele conta. “Tô cismada que o cabra está ganhando mais do que R$ 1.200, porque sempre tem dinheiro”, diz Estela. “Paga a água e a luz e colabora com os tickets no total de R$ 330 com que eu compro a mistura. E todo mês guarda um pouco do salário para comprar uma moto ou um carrinho.”
Tudo indica que a família cortará a TV por assinatura para que mais dois Costa Pereira possam cursar universidade. Mas ainda haverá nova rodada de negociações. Hustene, por exemplo, além do futebol, pouco vê a TV aberta. Aposentado em 2011 por causa da saúde, ele acorda pela manhã e vai para o “escritório”. Primeiro checa os emails e as redes sociais no computador. Ele participa do Orkut, do Facebook e do Twitter. Em seguida, passa algumas horas em busca de notícias, na seguinte sequência de sites: “Globo, Band, Terra e R7”. Caso se indigne com alguma delas, dispara alguns comentários virtuais. Só compra jornais e revistas de papel para montar seus álbuns do Corinthians. “Depois de me informar na internet, eu já sei que os telejornais só terão notícia velha. Então, já deixei de assisti-los, porque não acrescentam nada ao que eu já sei. Prefiro passar o restante do tempo vendo documentários”, conta. “Gosto muito do Animal Planet.”
Mesmo assim, Hustene está disposto a abrir mão da TV paga. Na verdade, está disposto a abrir mão de qualquer coisa que for preciso para ser convidado de novo para “uma festa daquelas”. “Essa família pegou gosto por canudos”, fala sério brincando. “Eu sentia claramente que, para as pessoas ao nosso redor, era normal ver a formatura de um filho. Estavam contentes, mas a formatura não tinha o mesmo significado que tinha pra gente. Para nós, ver a Amanda com aquela roupa preta, aquele negócio verde, aquele chapéu de formanda era tudo na vida. É um marco. Antes, só quem tinha poder aquisitivo tinha diploma. A gente se equiparou, sabe? Agora, eu posso até morrer.”
A próxima camisa do Corinthians
Na noite da formatura, Hustene demorou a dormir. Ele, que tanto sonhou com a universidade, foi interrompido pelo primeiro derrame quando faltava uma prova para concluir o supletivo do ensino médio. “Vi o filme da minha vida na cabeça. Meus sonhos todos. Lembrei dos professores que me ensinaram tudo o que eu sei. Faço questão de dizer o nome deles, porque acho que ser professor é a coisa mais bonita do mundo: a Maria Gomes Batalhone, do Colégio Espiridião Rosa, no Jaguaré, me ensinou a ler e a escrever; a dona Etelvina foi a melhor professora de português que eu tive, ela elogiava a minha letra e o capricho dos meus cadernos; tinha o Manuel, de História, o professor Luís, de Ciências… Fiquei imaginando se fosse eu que recebesse aquele diploma lindo, escrito em letras douradas. Eu agradeceria a todos os meus mestres. Ainda preciso perguntar pra Amanda se ela se lembrou dos dela.”
Hustene faz uma pausa molhada. Depois continua: “Sabe, nem o Lula, nem a Dilma agora, nem o Fernando Henrique, que era professor, entenderam a importância da educação. Nenhum deles conseguiu entender de verdade. Por isso a educação nunca foi prioridade, os professores ganham tão pouco e a escola pública ficou tão fraca, prejudicando meus filhos e netos. A educação nunca foi prioridade porque nenhum deles consegue entender, entender mesmo, como a gente entende, o que a educação faz com a vida de uma pessoa.”
Na noite da formatura, o segurança da casa chique de Alphaville entendeu um pouco. “Vai, Corinthians”, brincou com Hustene. “É ‘nóis’ na fita”, respondeu Hustene. Quem não entendeu nada foi o garçom. Amanda nem mesmo tinha sido chamada ao palco quando ele insistiu para que os Costa Pereira pagassem a conta. “É por causa da camisa do Corinthians?”, intimou Hustene. “Não, imagina, é que eu preciso começar a cobrar por aqui”, defendeu-se o garçom. Nervoso, mas plantado ao lado da mesa. Hustene não se abalou. Para as próximas formaturas, ele pretende comprar uma “camisa polo do Corinthians”. Segundo ele, mais “de gala” ainda.
Desde aquela noite, Hustene saracoteia pela vizinhança anunciando para “os quatro cantos da terra de Osasco”: “Sabe, fui na formatura da minha filha”. Assim, como quem não quer nada, entre o preço do pão e a última façanha do Neymar. Mais estufado que um chéster, Hustene explica: “Eu achava que só os imortais tinham filha com diploma. Fiquei pensando…. Agora sou imortal também”. Como ainda é um pouquinho mortal, na manhã seguinte à formatura jogou o número da mesa da cerimônia – “627” – no bicho.
(Publicado na Revista Época em 23/01/2012)
Pedro e João: a história de dois meninos gays e uma infância devastada
Um homem adulto narra seu percurso de dor para assumir sua sexualidade. E conta como, para se proteger, participou de atos de bullying na escola contra seu melhor amigo
Da infância, somos todos sobreviventes. Alguns mais do que outros. Esta é a história de um homem em busca de compreender a si mesmo. E de tentar, como adulto, ser diferente do menino pelo poder da narrativa. Esta história é contada aqui porque foi a nossa ignorância – a minha e também a sua – que destroçou a vida dessas duas crianças. E tem destroçado – às vezes em brutal literalidade, com tiros e pancadas – a vida de muitos – demais.
Antes, a história de como nos conhecemos. Ele me enviou o primeiro email no início de dezembro. Um amigo dele acabara de ser assassinado por homofóbicos, e ele tinha se deparado com uma campanha na internet que arregimentava pessoas a se unirem para executar homossexuais. Ele tinha medo de sair de casa. Estava assustado. E também com raiva. Pedia que eu denunciasse a campanha nesta coluna.
Respondi que escrever sobre esse tipo de manifestação era amplificar uma voz de ódio. Afinal, o sonho de quem divulga algo na internet é ser acessado, replicado, comentado, seguido, citado. Em vez disso, propus a ele que me contasse a sua história para – talvez – publicá-la aqui. Contar uma história que nos aproxime é a melhor resposta que podemos dar a quem usa as palavras para aumentar as distâncias.
Desde então, iniciamos uma correspondência. Chequei a sua identidade, mas respeitei sua decisão de ocultar seu nome. Nessa narrativa real, vamos chamá-lo de Pedro. Filho único de uma família de classe média do interior de Minas, Pedro tem 28 anos, é engenheiro ambiental e hoje vive sozinho em Goiânia. Um brasileiro como tantos outros, que trabalha duro e paga seus impostos. Todo ano ele participa da parada gay, mas não é o que se poderia chamar de um militante do movimento. Em Goiânia, assume sua homossexualidade em todos os espaços – e também no trabalho. Mas preferiu se afastar da família a contar que era gay. Neste Natal, como veremos mais adiante, ele fez um pequeno grande gesto.
Aos poucos, ao longo da nossa troca de cartas virtuais, percebi que não se tratava apenas da história de Pedro. Mas da história de Pedro e de João. Quando era criança, o melhor amigo de Pedro era João. E era João quem não conseguia esconder dos colegas de escola que era gay. Pedro posicionou-se ao lado dos mais “fortes”, como tantos de nós a vida toda, e mais ainda na infância. Alinhou-se ao lado dos pequenos machos quando eles tornaram a vida de João um inferno humano. Tão humanamente infernal que ele acabou mudando de cidade no início do ensino médio. Como acontece ainda hoje em muitas escolas, nem professores, nem pais, nem colegas, ninguém fez gesto algum na direção de João. Todos permitiram, por ação ou omissão, que João fosse agredido, acuado, encurralado e, por fim, exilado.
Essa memória assombra Pedro até hoje. Como a maioria de nós, ele queria ter sido mais forte na infância. Não mais “forte” como os pequenos machos, tão atrapalhados com sua sexualidade que precisavam “denunciar” a do outro. Pedro queria ter sido tão forte quanto João, que ousava ser. Se tivessem sido os dois, talvez pudessem ter resistido mais. Mas, por muito tempo, Pedro mal pôde consigo mesmo. E então, quando ele já tinha sua própria vida adulta e independente, um de seus melhores amigos foi assassinado porque era. Gay. E Pedro, de novo, sentiu-se muito impotente.
Contar sua história talvez seja a forma encontrada por Pedro para inverter o curso dessa memória dentro de si. Pronunciar o que virou silêncio sem ser – e por assim ter sido tanto o feriu. A ele e a João, antes que ambos pudessem se defender. Quando pergunto sobre esse círculo que se fecha, Pedro escreve: “Acho que vai me incomodar pelo resto da vida”.
É espantosa a quantidade de dor que pode caber numa vida apenas por causa da ignorância. Da nossa ignorância. A história de Pedro – e também a história de Pedro e de João – é assim.
O começo: ou como Pedro expôs João para que não o descobrissem
“Nasci numa cidade do interior de Minas com 80 mil habitantes. Pequena, conservadora, cheia de falsos moralismos. Desde muito cedo eu percebi minha orientação sexual. Desde criança achava os meninos mais interessantes do que as meninas. Sempre pensei que no órgão sexual feminino faltava alguma coisa. E tinha curiosidade para ver o órgão sexual dos meus amigos. Mas nunca fui muito sexualizado na infância e nem mesmo na adolescência. Talvez evitasse a sexualidade pela consciência da minha orientação sexual.
Ainda no colégio, eu era uma pessoa extrovertida e comunicativa, mas quando percebi que havia algo de diferente, tornei-me recluso. Sempre estudei no mesmo colégio, com a mesma turma. Desde o início, tinha um colega que conseguia disfarçar menos sua homossexualidade e, para continuar pertencendo ao grupo, eu participava de ataques de bullying homofóbico. Estes eram os momentos nos quais eu me sentia pior.
João sempre estudou na mesma turma que eu. Éramos muito amigos na infância, nossas mães eram amigas e ambos éramos filhos únicos. Ele frequentou a minha casa e eu a dele, brincamos muito na infância, éramos os melhores amigos. Apesar de ser um ano mais velho do que eu, João não aparentava, porque sempre foi muito sensível e delicado. O fator ‘não jogar bola’ influencia muito o que as crianças pensam quanto à sexualidade de outra. E João não jogava.
É engraçado. Nunca trocamos uma palavra sequer em relação ao sexo. Ao menos, não que eu me lembre. Jogávamos muito videogame juntos, e geralmente ele passava pela manhã em minha casa para irmos ao colégio. Não sei bem explicar como, mas nossa relação e encontros foram tornando-se esparsos, até que nos tornamos meros colegas de sala. Ele passou a ser um garoto solitário, menos risonho. Aproximou-se mais das garotas e adquiriu ‘trejeitos’, que talvez sempre tenha tido, mas que somente com o amadurecimento e a consciência do mundo eu e os outros garotos começamos a perceber.
Eu tinha 12 ou 13 anos nessa época. Acho que, por pertencer a uma família que preserva bastante as tradições mineiras, na qual era comum escutar comentários homofóbicos e até mesmo racistas, eu tinha o preconceito internalizado de que a homossexualidade era algo errado. E é muito estranho ser ‘errado’. Eu não tinha com quem conversar, eu não tinha com quem dividir meus desejos. E acho que foi a fase na qual eu tive mais medo na minha vida. Era um medo de tudo, um medo de mim.
Adquiri repulsa por alguém que eu imaginava ser a pessoa que mais se assemelhava a mim. Julgava-o sujo. Era como se o distanciamento que criei com ele disfarçasse a minha sujeira. Não sei bem ao certo, mas em virtude de suas maneiras mais delicadas, nós, os meninos, simplesmente deixamos de conviver com ele. Não sei como surgiram os primeiros episódios de bullying. Mas, aos poucos ele começou a ser motivo de chacota na sala e, em pouco tempo, de todo o colégio.
Crianças e adolescentes têm uma maldade que eu não entendo. Todos os dias escrevíamos no quadro seu apelido: “João viadinho”. A situação de bullying era clara. Ele sofria muito, era perceptível. Quando cruzávamos com ele, ríamos e imitávamos trejeitos femininos. Os meninos da sala não o tocavam, pois, caso isso ocorresse, pegariam ‘viadice’. Imagino o quanto isso foi dolorido para ele.
Logo, ele começou a permanecer todo o recreio dentro da sala de aula. E as agressões passaram do campo das palavras para o físico. Em suas tentativas de revide, ele levava tapas, socos e pontapés. Eu não cheguei a fazer isso. Mas, os outros garotos, sim. Quando ele passava pelo corredor, próximo ao grupinho dos ‘machos’, além de um ‘E aí, viadinho?’, ele levava sempre uns bons tapas, e sempre havia algum engraçadinho para sair rebolando atrás dele. Eu nunca o olhava nos olhos. Sentia muita vergonha.
É uma dinâmica estranha. Você tem que pertencer a um grupo, e ser diferente te exclui. Hoje, entendo que muita daquela repulsa estava relacionada a um certo grau de atração que eu sentia por ele. E aquilo para mim era errado. Os professores nunca tomaram nenhuma atitude. Ninguém nunca tomou nenhuma atitude. Escutei trechos de uma conversa de minha mãe com a mãe dele em relação à sua sexualidade, mas não consegui entender muito e não fui capaz de tocar no assunto. Até hoje não consigo compreender como fui capaz de ter feito tudo aquilo. Sei que fui muito covarde. Porque, no fundo, eu sabia pelo que ele estava passando. E nunca lhe estendi a mão.
Quando você se descobre gay – o que faz você se sentir diferente da maioria –, isso faz com que, de uma maneira inconsciente, você lute para ser igual. É uma resistência interna, uma forma estranha de luta entre o ‘você aparente’ e o ‘você real’. Eu tinha aversão ao meu corpo, a toda e qualquer coisa relacionada à sexualidade. Qualquer programa de TV, livro ou texto que se referisse à sexualidade me causava pânico. Eu não passei pela fase comum aos adolescentes, na qual a masturbação é uma atividade comum. Eu sentia medo, pois era nessas ocasiões que eu tinha a certeza de que realmente era homossexual.
Não é somente seu ciclo social que é quebrado através da fase de reclusão. Dentro de você é como se o fator sexualidade também fosse rejeitado. Sexo assusta. O que não se aceita é melhor que fique escondido. Acho que senti repulsa por João ao perceber que alguém tinha uma aceitação maior consigo mesmo do que a que eu tinha para comigo. Eu conseguia reprimir, então era difícil aceitar que aquela pessoa não conseguisse.
Eu nunca o defendi. Tinha medo de que toda aquela repulsa se voltasse contra mim. João saiu da escola e da cidade no final do primeiro ano do ensino médio. Mudou-se para Uberlândia (MG). Nesse meio tempo, acho que até mesmo por um grande peso na consciência, foi a minha vez de me afastar. Tranquei-me no quarto e não queria sair de lá.”
Pedro se esconde – até de si mesmo
“No segundo ano do ensino médio, minha consciência da orientação sexual atingiu seu ápice. Eu não conseguia mais me esconder muito e tinha muito medo da reação das pessoas. Forçava-me a pensar somente em meninas, mas já não conseguia mais fazer isso. As Playboys, compradas escondidas pelos amigos, não me interessavam nem um pouco. Eu me excitava justamente pensando na excitação dos meus amigos diante daquelas imagens.
Foi uma fase muito difícil. Eu inventava um monte de histórias para não ir ao colégio, me afastei de tudo e de todos. Minha vontade era ficar trancado no quarto para que ninguém pudesse me ver. Acho que, no fundo, eu estava me punindo pelo meu comportamento errado frente à sexualidade de João. Não sei bem o que seria depressão, mas, se por algum momento da minha vida passei por isso, foi justamente nesse ápice de consciência.
Lembro que chegava a me mutilar. Tinha raiva de mim, de minha imagem. Tinha nojo do meu órgão sexual e de qualquer ereção eventual. Eu evitava levantar da cama, tinha muito sono, não queria conviver com ninguém. Lia bastante, muito, mas muito mesmo… Nessa época li tudo de Dostoiévski, Tolstói. Um personagem em especial me acompanhou pela vida inteira: Kirilov, do livro ‘Os Demônios’, de Dostoiévski. Ele dizia algo como: ‘Deus é o medo de depois da morte’.
Foi nessa época que minha mãe percebeu que tinha algo de errado comigo e me mandou para um psicólogo. Mas não tive nenhuma afinidade com ele. Não podia confiar em alguém que minha mãe pagava. Ali, no consultório, eu ajudei a moldar ainda mais meu personagem, pois tinha que tentar me desvencilhar de alguém que, teoricamente, estaria preparado para fazer uma leitura das pessoas. Lembro vagamente de que, na primeira consulta, ele afirmou: ‘Sua mãe me disse que você tem andado triste e tem ficado muito tempo trancado no quarto. E aí, o que está acontecendo?’. Senti-me pressionado. Depois dessa experiência, nunca mais voltei a psicólogos.
Aos 15 anos, eu estava tão solitário que pensei em parar de estudar ou mudar de colégio. Se as pessoas que conviviam comigo soubessem de alguma coisa, meu mundo poderia acabar. Não frequentei nenhuma das festinhas de 15 anos de minhas amigas, não fui à festa alguma, não fui adolescente. Nesse período de reclusão, eu passava o fim de semana todo trancado no meu quarto. Por um lado foi bom: estudei muito e não tive nenhuma dificuldade para passar no vestibular. Acho que é essa reclusão, causada pela dificuldade de autoaceitação, que faz com que muitos dos gays sejam bem sucedidos nos estudos. É como se perdêssemos um período da vida social e buscássemos nos livros um afago.”
Pedro tenta fugir – mas não há fuga de si mesmo
“Passei em três universidades federais. A minha escolha foi pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), não porque era meu curso predileto, mas sim porque Ouro Preto era a cidade mais distante da casa de meus pais. Com 17 anos mudei-me para Ouro Preto, pensando que tudo seria diferente. Não foi. Cursei engenharia numa cidade que priva pelo tradicionalismo, convivendo em repúblicas com cerca de 15 homens. Todos, ao menos aos olhos da comunidade universitária, heterossexuais.
Bem no início do curso, eu presenciei uma cena que me trancou ainda mais dentro do armário: um dos moradores de uma república vizinha à minha, líder estudantil, influente no meio acadêmico, foi flagrado contando à empregada da casa que tinha um caso com outro estudante. O apelido dele tornou-se sinônimo de gay no ambiente universitário. Os outros moradores da casa nem pestanejaram: jogaram todas as coisas dele para fora da casa. Nem se deram ao trabalho de ouvir um cara que havia morado com eles nos últimos quatro anos. Foi muito estranho ver as coisas dele jogadas no chão da famosa Rua Direita.
Eu era um adolescente exemplar. Nunca tinha bebido, nunca tinha usado drogas. Era virgem, nunca beijara ninguém. Nessa época, comecei a viver em uma história inventada. Para me inserir em um grupo, eu comecei a usar um disfarce. O ‘porra-louca’ heterossexual. Beijava meninas, mas tinha muito medo de que alguma delas quisesse algo mais. Comecei a beber muito e a ser usuário de maconha e, mais tarde, de cocaína. Era uma fuga, era um jeito de ser querido por um grupo, era uma forma de estar inserido. Era ser comum. E assim foi durante cinco anos. Anos lentos, intermináveis.
Uma colega de sala foi a primeira pessoa que soube de minha homossexualidade, já no final do curso. Foi uma explosão. Era como se eu estivesse tirando o maior peso do mundo de minhas costas. Só consegui dizer: ‘Sou gay’. E comecei a chorar sem parar. Era um misto de medo da reação e de alívio indescritível. Pela primeira vez eu tirava a minha máscara para um outro ser humano.
Formei-me na universidade em 2006, com 22 para 23 anos. Era virgem, escolado no submundo do álcool e das drogas. Antes de me mudar de Ouro Preto, reuni todos os 15 rapazes que moravam comigo na república. Eu não queria sair daquela casa tendo omitido quem eu realmente era. Nessa reunião, completamente drogado, eu vomitei, com certa raiva de mim e de tudo, que eu era gay e que aquilo era o mínimo que eu podia fazer por pessoas com as quais eu convivi.
Logo após um silêncio, nada convencional, eu presenciei as mais distintas reações. De ódio a apoio. Há pessoas com as quais nunca mais troquei palavras. Mas também recebi um carinho que eu não imaginava que fosse possível. Descobri que, apesar dos revezes, eu encontraria pessoas que não encaravam aquilo como aberração. Acho que aquele momento foi fundamental para que eu pudesse encarar a vida. Eu nunca tinha encostado em um homem, eu nunca tinha tido uma relação verdadeira. Na verdade, acho que toda a minha felicidade era falsa.”
Pedro tira a máscara – arranca-se de si
“Passei em um concurso público estadual e fui trabalhar em Uberlândia. A independência financeira é muito importante para um homossexual, significa o primeiro momento em que não é preciso dar satisfação a ninguém sobre o que você sente. Fui para Uberlândia com a pretensão de viver.
Logo no primeiro fim de semana, resolvi ir até uma casa noturna GLS. Era 4 de agosto de 2006. Recordo a data porque até hoje mantenho o folder (propaganda da casa). Esse folder é como se fosse a minha Lei Áurea. Representa a minha liberdade.
Minha noite foi tragicômica. Hoje dou muita risada ao lembrar. Eu era um gay ‘não gay’. Logo, fui com uma roupa inadequada, social demais. Não conhecia nenhuma música, afinal vivia ouvindo rock e nem imaginava quem era Britney Spears. Não consegui disfarçar minha surpresa ao ver todas aquelas pessoas descoladas e felizes, de mãos dadas. Era como se aquelas mãos dadas me hipnotizassem, era absolutamente sensacional cada flagra de beijo. Os transexuais, travestis e drag queens me assustavam, era como se tivesse que manter distância. Afinal, até aquele dia, era isso que a vida tinha me ensinado.
Cheguei bem tarde, depois de ter dado várias voltas no quarteirão, por medo de ser identificado nas proximidades daquele ambiente. No lounge, sozinho, atento aos diálogos alheios, me impressionava o caos relativo ao gênero: ‘amiga’, ‘bicha’. Minha primeira visita ao banheiro foi hilária. Entrei e saí correndo. Era um misto de medo, tesão, tensão, apreensão e uma felicidade doida. Nem imagino o que as pessoas pensavam daquele cara que passou a noite inteira sentado numa cadeira do balcão, atento a tudo, surpreso e com um sorriso estampado no rosto. Quando se aproximavam de mim ou percebia um flerte, eu me esquivava e de certa forma corria. Lembro que naquele dia nem dormi direito relembrando cada momento.
Na noite seguinte, não resisti e voltei à mesma casa noturna. Nessa segunda noite, mantive um diálogo com o bartender. Talvez, pela ansiedade, tenha bebido muito e isso tenha feito com que baixasse a guarda e permitisse que as pessoas se aproximassem. Fiquei até muito tarde. O bartender veio, então, conversar comigo. Não lembro ao certo, mas acho que falei muita besteira. Eu suava frio, tremia. Acho que, percebendo meu estado alcoólico, e depois de saber que aquela era a minha segunda noite num ambiente gay, ele arriscou um beijo. 5 de agosto de 2006: aos 22 anos, eu fui beijado pela primeira vez por um homem.
Aquilo foi muito para mim. Afastei-o, não me despedi e saí o mais rápido que pude daquele lugar. Senti repulsa pelo meu corpo, senti nojo de mim. É estranho, mas foram sensações completamente antagônicas, uma oposição entre o meu desejo e o que a sociedade me imprimiu. Ao mesmo tempo que era prazeroso, eu sentia rejeição pelo fato de estar beijando um homem. Apesar de ser meu maior desejo, era algo que eu tinha aprendido ser inaceitável.
Em casa, escovei os dentes diversas vezes. Como se aquilo pudesse apagar meu ato, como se fosse possível redimir o meu ato. Por quê? Porque eu fui ensinado assim. Porque fui criado num berço católico no qual minha recente atitude era pecado. Eu era uma aberração.
Como filho único, eu também sentia vergonha por ser uma decepção muito grande para a minha mãe, que sempre teve a expectativa de ter netos. Naquela manhã, eu era o maior lixo do mundo. Abusei ao extremo do uso de cocaína, associada ao uso de ansiolítico. E o que me deixava pior era a sensação: ‘Tinha sido muito bom’. Chorei muito.
Não sei ao certo, mas acho que por dois ou três meses retornei à minha reclusão. Passava os finais de semana em casa, reprimindo meus desejos. Mas nada pode ser reprimido para sempre.
Depois de uma festinha de aniversário de uma colega de trabalho, num local próximo à casa noturna que já tinha frequentado, eu criei coragem e, após contornar diversas vezes o quarteirão, entrei. Receoso, troquei olhares com o bartender. Encarei, flertei, fui retribuído. O tempo demorou a passar e já era quase dia quando ele pôde sair do bar e vir ao meu encontro. Dessa vez, fui eu que tomei a iniciativa e o beijei. Dessa vez, eu não fugi e aquela meia hora em que ficamos juntos foi a primeira vez que um cara de 23 anos estava aceitando a si mesmo. Era a primeira vez que eu podia dizer que estava realizado, feliz.
Depois daquela noite, passamos a nos encontrar em todos os finais de semana. Mas, sozinho em casa, depois dos beijos, eu ainda me sentia angustiado e estranho. Tive a sorte, porém, de ter encontrado uma pessoa fantástica, que respeitava as minhas restrições. E elas eram muitas. A primeira vez em que permiti algo mais íntimo foi após dois meses de encontros, fim de semana após fim de semana. Meu namorado só começou a frequentar a minha casa após três meses de relacionamento. Ele compreendia, mas não deixava de ficar chateado com tamanho recalque. Cobrava sexo, mas eu tinha muito medo. Estávamos juntos havia cinco meses quando, pela primeira vez, ele foi dormir comigo. E foi a primeira vez que tivemos uma relação sexual. Era também a primeira relação sexual da minha vida.”
Pedro descobre que não o perdoam por ser
“Mesmo trabalhando para um órgão que, a princípio, deveria privar pelo cumprimento das leis, eu já sofri homofobia. Sinto um certo afastamento por parte de algumas pessoas simplesmente pelo fato de eu não querer me esconder mais. Minhas opiniões e minha qualidade técnica são diminuídas por causa da minha orientação sexual. Por quê? Ser gay me tornou menos competente?
Sinto raiva de uma sociedade que tem medo de ver beijo gay na novela das oito, mas que se delicia assistindo às piores atrocidades nos noticiários sensacionalistas. Fico me perguntando: por que eu incomodo tanto? Por que gostar de alguém traz tanta violência? De onde vem esse ódio?
É muito difícil compreender por que a comunidade evangélica, por exemplo, é capaz de perdoar a assassinos ou bandidos que se converteram à religião e não aceitam que eu caminhe de mãos dadas com meu namorado pela rua. Qual é o crime de se caminhar de mãos dadas pela rua?
Há pouco perdi um de meus melhores amigos e sei que seu assassinato ficará impune. Estamos no Brasil e não vai ser a primeira vez que um crime ficará impune. Pior ainda se são crimes de homofobia ou crimes que a nossa homofobia internalizada não permite que sejam investigados.
Uma vez eu fui vítima de um golpe conhecido como ‘Boa Noite Cinderela’. Apesar de todos os protestos de que não devia fazer um B.O. (boletim de ocorrência), fui até uma delegacia. E lá realmente desisti de fazer o B.O.. Nunca fui tão humilhado em toda a minha vida. O policial que me atendeu teve uma crise de riso enquanto eu relatava o caso. Aposto que não seria esta a reação caso o evento tivesse ocorrido com um macho alfa. Eu desisti de denunciar, voltei para casa e me senti a pessoa mais impotente do mundo.
Em outra oportunidade, vi um grupo de adolescentes na saída de uma festa GLS agredindo um garoto que aparentava estar muito bêbado. Novamente, apesar dos protestos de um namorado da época, interferi e acabei me dando muito mal. Apanhei um pouco, pois nem tenho porte físico para enfrentamentos e, quando a polícia chegou, os três adolescentes foram protegidos, e eu quase fui parar na delegacia. Segundo os policiais, eu estava gerando desordem.
Já perdi a conta de quantos amigos, em Goiânia ou em Uberlândia, já sofreram agressões na rua por serem gays. Ao tentar denunciá-las, as vítimas foram ridicularizadas, e os agressores liberados. Eu não tenho mais coragem de procurar a polícia para denunciar qualquer forma de preconceito. Vivemos no nosso mundinho, disfarçados. Vivemos num ‘gayto’.”
Pedro aproxima-se dos pais – que não sabem (ou fingem não saber) que é
“Distanciei-me dos meus pais há muito tempo. E continuei cada vez mais distante. Morando há três anos e meio em Goiânia, eles nunca tinham vindo me visitar. Neste final de ano, pela primeira vez, eu convidei-os a passar o Natal na minha casa. E eles vieram. Acho que minha pequena atitude abriu uma brecha para novamente possuir uma família, possuir um colo de mãe.
Não que meu Natal tenha sido maravilhoso. Na verdade, foi cheio de conflitos. Eu e minha mãe nos desconhecemos por completo. Eu e meu pai nem nos falamos, e então surgem diversas divergências. Eles chegaram no dia 23 de dezembro, à noite, e foram embora no dia 25, pela manhã.
Na tarde de Natal, descobri uma cartinha que minha mãe tinha deixado sobre o sofá. Transcrevo aqui um trecho: ‘O que mais queremos é a sua realização em todos os sentidos, pois, de qualquer forma, você é nosso único tesouro e não queremos continuar dessa forma. Infelizmente, precisamos te conhecer melhor. E saiba: seja qual for a circunstância, estaremos com você. Você sabe que não podemos adiar o que queremos, ainda mais que já estamos em contagem regressiva. Espero que leia umas várias vezes essa recomendação. Se não quiser comentar sobre ela falando, me escreva e me conte um pouco de você. Beijos. Te amamos muito. Mãe e pai’.
Tenho passado esses últimos dias pensando em qual seria a melhor forma de contar tudo de mim para meus pais. Mas ainda não descobri como. Já tentei escrever uma carta umas dez vezes, mas, ao final, rasgo tudo. Como se o que estivesse escrito ali fosse algo que tivesse o poder de torná-los extremamente infelizes.”
O meio: ou como Pedro reencontra João no gesto possível
“Eu era só um menino, mas foi com João que senti remorso pela primeira vez, que tive consciência do que é covardia. Voltei a encontrá-lo em nossa cidade do interior mineiro em algumas poucas oportunidades. E em todas elas não fui capaz de me reportar a ele. João assumiu sua homossexualidade, e não posso esquecer os comentários maldosos de minha mãe, com suas amigas. Eu sentia raiva.
João tornou-se arquiteto. Quando me mudei para Uberlândia, vivíamos na mesma cidade e ainda hoje temos alguns amigos comuns. Mas nunca dividimos uma roda de amigos. É um somatório de minha vergonha e da sua mágoa. Para alguns dos amigos em comum, eu contei toda a história. Segundo eles, ele nunca mencionou o assunto.
Uma noite, identifiquei-o numa boate GLS. João havia se tornado um homem extremamente efeminado, mas muito lindo. Estava rodeado de amigos e, assim que tive oportunidade, eu o abordei. Entendo completamente as poucas palavras que ele dirigiu a mim. Havia mágoa na forma como ele me tratou, e eu compreendo a sua postura. Não toquei no assunto. Senti muita vergonha e, assim que pude, me afastei. Não consegui pedir desculpas. Algum tempo depois eu soube que João havia se mudado para a Austrália. Não sei se um dia voltarei a vê-lo”.
(Publicado na Revista Época em 16/01/2012)
A língua que somos, a língua que podemos ser
O que é pior: ser visto como um clichê ou ser ignorado? Como os outros não nos veem – e como nós não vemos os outros de nós. Uma reflexão sobre o Brasil, a literatura e o poder
A alemã Anja Saile é agente literária de autores de língua portuguesa há mais de uma década. Não é um trabalho muito fácil. Com vários brasileiros no catálogo, ela depara-se com frequência com a mesma resposta de editores europeus, variando apenas na forma. O discurso da negativa poderia ser resumido nesta frase: “O livro é bom, mas não é suficientemente brasileiro”. O que seria “suficientemente brasileiro”?
Anja (pronuncia-se “Ânia”) aprendeu a falar a língua durante os anos em que viveu em Portugal (e é impressionante como fala bem e escreve com correção). Quando vem ao Brasil, acaba caminhando demais porque o tamanho de São Paulo sempre a surpreende e ela suspira de saudades da bicicleta que a espera em Berlim. Anja assim interpreta a demanda: “O Brasil é interessante quando corresponde aos clichês europeus. É a Europa que define como a cultura dos outros países deve ser para ser interessante para ela. É muito irritante. As editoras europeias nunca teriam essas exigências em relação aos autores americanos, nunca”.
Anja refere-se ao fato de que os escritores americanos conquistaram o direito de ser universais para a velha Europa e seu ranço colonizador – já dos brasileiros exige-se uma espécie de selo de autenticidade que seria dado pela “temática brasileira”. Como se sabe, não estamos sós nessa xaropada. O desabafo de Anja, que nos vê de fora e de dentro, ao mesmo tempo, me remeteu a uma intervenção sobre a língua feita pelo escritor moçambicano Mia Couto, na Conferência Internacional de Literatura, em Estocolmo, na Suécia. Ele disse:
– A África tem sido sujeita a sucessivos processos de essencialização e folclorização, e muito daquilo que se proclama como autenticamente africano resulta de invenções feitas fora do continente. Os escritores africanos sofreram durante décadas a chamada prova de autenticidade: pedia-se que seus textos traduzissem aquilo que se entendia como sua verdadeira etnicidade. Os jovens autores africanos estão se libertando da “africanidade”. Eles são o que são sem que se necessite de proclamação. Os escritores africanos desejam ser tão universais como qualquer outro escritor do mundo. (…) Há tantas Áfricas quanto escritores, e todos eles estão reinventando continentes dentro de si mesmos.
Esta conferência de Mia Couto faz parte de um livro de ensaios belíssimo chamado “E se Obama fosse africano?” (Companhia das Letras). Indico com vários pontos de exclamação. Os ensaios de Mia Couto são tão inspiradores quanto seus romances. E o que ele diz sobre a África talvez pudesse ser dito sobre o Brasil, este país que é também um continente. E sobre todo um pedaço do planeta do qual se espera que seja de uma determinada forma.
Se ler um livro é ousar se abrir para o outro, exigir que o outro seja como você o imagina é o avesso da experiência literária. Se os editores europeus esperam que sejamos os outros que querem que sejamos, já não somos os outros, mas o estrangeiro domesticado que mora dentro deles. E assim, com um estrangeiro de estimação habitando o seu imaginário, já não precisam nos estranhar. E com isso perdemos todos. Os leitores europeus – que como nós nada têm de homogêneo e contêm tantas diferenças quanto possível – porque abrem mão de estranhar. E nós porque perdemos a chance sempre rica de que nos estranhem.
Nos Estados Unidos, apenas 3% de todas as obras publicadas foram escritas em outras línguas que não o inglês. Esta ínfima parcela abarca todos os outros idiomas e todos os gêneros, de livros técnicos à ficção. Se formos pensar apenas em literatura e poesia, o porcentual baixa para 0,7%. Não sei se existem estatísticas sobre qual é a fatia da língua portuguesa neste quase nada, mas parece evidente que é insignificante. Na tentativa de reverter o que chama de “shame” (vergonha), a Universidade de Rochester criou, em 2007, um site chamado Three Percent, para debater e divulgar todos esses universos literários que têm quase tanta dificuldade de ultrapassar as fronteiras dos Estados Unidos quanto os imigrantes ilegais. E, mesmo quando superam as barreiras, pouco ou nenhum espaço encontram na imprensa americana.
Uma língua não é apenas um amontoado de palavras que serve para se comunicar, mas um jeito de ser e de estar, de compreender o mundo e a si mesmo, o fora e o dentro. Em cada língua há um universo inteiro, e cada falante a recria a partir de sua experiência. É por isso que a língua é viva e mutante. Se o português falado no Brasil tivesse permanecido o mesmo de cem anos atrás é porque já estaríamos todos mortos. Como disse Fernando Pessoa, nós não habitamos um país, mas uma língua. E aqueles que são os últimos falantes de uma língua morta, porque para ser viva é preciso de um outro que também more nela, tem de renascer em outro idioma para que a vida seja possível. Ninguém vive para além das fronteiras da linguagem.
Saber que apenas 3% dos livros publicados nasceram em imaginários outros diz mais dos Estados Unidos do que de todos aqueles que não são vistos por eles. Na grande potência mundial – ainda que em crise – não se trata apenas de uma exigência de estereótipos, como na Europa, já que não há nem mesmo o interesse pelo clichê do outro. No caso dos Estados Unidos, não é necessário fingir estranhamento, já que parecem desconhecer que estranhar é preciso. A experiência de se abrir para a experiência do outro é ignorada. Ignorada como um não saber que há algo ali que vale a pena. Mesmo que faça todo o sentido por qualquer ângulo que se olhe, de Hollywood à política externa americana, ainda assim me parece espantoso que a língua que se impõe sobre o mundo seja também aquela que é fechada para o mundo de (quase) todos os outros. E isso, com certeza, explica muita coisa.
Não saberia dizer o que é pior: se a exigência de um clichê de Brasil também na literatura – o “suficientemente brasileiro” com que Anja Saile se depara no contato com os editores europeus – ou a indiferença até mesmo pelo clichê. Acho que a segunda realidade é mais nefasta, porque ao buscar o outro, ainda que seja pelo lugar comum, existe ao menos o risco de encontrar algo que subverta as expectativas e vire os mundos de ponta-cabeça.
E aqui, mais um pouco de Mia Couto:
– O mesmo processo que empobreceu o meu continente está, afinal, castrando a nossa condição comum e universal de contadores de histórias. (…) O que fez a espécie humana sobreviver não foi apenas a inteligência, mas a nossa capacidade de produzir diversidade. Essa diversidade está sendo negada nos dias de hoje por um sistema que escolhe apenas por razões de lucro e facilidade de sucesso. Os autores africanos que não escrevem em inglês – e em especial os que escrevem em língua portuguesa – moram na periferia da periferia, lá onde a palavra tem de lutar para não ser silêncio.
Quem já viajou à Europa e aos Estados Unidos sabe que é quase impossível encontrar um guia de cidade, museu ou local histórico em português. É preciso se virar com o espanhol, se não souber inglês. No final de 2011, a imprensa deu destaque ao fato de que os brasileiros gastam o dobro do que os outros turistas em Nova York, e muitas lojas já mantêm um vendedor que fala português para facilitar a venda a clientes tão promissores. A economia está colocando a nossa língua pelo menos na boca de garçons e balconistas pelos circuitos turísticos do mundo rico em tempos de crise.
Será que o lugar de potência emergente conquistado pelo Brasil vai aumentar o interesse pela nossa literatura ou pelo nosso modo de ser? A nova posição do país no cenário internacional já começa a produzir novos clichês não só do mundo sobre o Brasil – mas do Brasil sobre si mesmo. O marketing e a propaganda estão aí para provar como se transforma imagem em verdade. Acredito que o estudo dos novos clichês que estão sendo produzidos fora e dentro do Brasil, sobre o Brasil, seja um caminho bem fascinante para compreendermos o momento vivido.
Isso me faz virar o olhar pelo avesso para que possamos enxergar melhor. Como qualquer um sabe, não somos apenas um Brasil, mas muitos. Só de Amazônias temos dezenas, talvez centenas e até milhares. Não há um semiárido, mas uma profusão deles. Assim como são muitos e diversos os Rios de Janeiro e é necessário mais de uma vida para alcançar todas as São Paulo só para descobrir que elas mudaram. Me parece que o Brasil se mantém unido pela sua diversidade – e pela forma de olhar para a sua diversidade. Neste percurso, a música foi bem mais importante do que a literatura.
Me preocupa, porém, a forma com que temos olhado para os outros de nós em um momento com tantas decisões em curso. Em geral, a partir do próprio umbigo e com as fronteiras eletrificadas. Uma parte significativa do que chamamos de brasileiros parece misturar o olhar europeu e o olhar americano, aqui explicitados pela literatura, ao se relacionar com tudo o que compreendemos como o outro. Sejam os miseráveis do Bolsa Família, classificados por uma categoria de renda que anularia suas diferenças; sejam os índios, que são vistos como se fossem todos iguais e, em geral, como um “entrave ao progresso”.
Talvez os indígenas sejam a melhor forma de ilustrar essa miopia, forjada às vezes por ignorância, em outras por interesses econômicos localizados em suas terras. Parte da população e, o que é mais chocante, dos governantes, espera que os indígenas – todos eles – se comportem como aquilo que acredita ser um índio. Portanto, com todos os clichês do gênero. Neste caso, para muitos os índios não seriam “suficientemente índios” para merecer um lugar e para serem escutados como alguém que tem algo a dizer.
Outra parte, que também inclui gente que está no poder em todas as instâncias, do executivo ao judiciário, finge que os indígenas não existem. Finge tanto que quase acredita. Como não conhecem e, pior que isso, nem mesmo percebem que é preciso conhecer, porque para isso seria necessário não só honestidade como inteligência, a extinção progressiva só confirmaria uma ausência que já construíram dentro de si.
O modelo de desenvolvimento com que vamos alcançar o futuro depende de como olhamos para os outros de nós e de que lugar ocuparão os outros de nós. Se não acolhermos a diversidade e a usarmos para sermos um Brasil mais igualitário – onde todos sejam igualmente diferentes – não acredito que exista muito futuro para nós, mesmo que o presente pareça promissor. O “Milagre Econômico” da ditadura militar também parecia muito promissor à parcela da sociedade brasileira que dele se beneficiou – e sabemos muito bem como isso terminou.
Para sermos grandes – com um conceito de grandeza que não se mede apenas em cifras – será vital inaugurarmos um jeito de olhar diferente tanto para o nosso próprio continente – onde começamos a nos impor como uma espécie de “Estados Unidos da América do Sul”, como ouço com tristeza cada vez que coloco os pés nos países vizinhos – como na forma como olhamos para dentro de nossas fronteiras. Inaugurar não um olhar condescendente – mas um olhar de quem sabe que tem algo a aprender com o outro.
O que seremos, me parece, será definido pela resposta que daremos a três impasses:
1) Se vamos conseguir construir um modelo de desenvolvimento baseado no século XXI – e não no século XX, como me parece que é o atual;
2) Se vamos acolher os conflitos e dialogar com as culturas dos vários Brasis que nos compõem ou vamos exterminá-los à força, ainda que seja pela força da manipulação da lei;
3) Se vamos conseguir vencer o desafio da educação, mas não só isso: se a inclusão pela escrita será capaz de abarcar a riqueza da nossa oralidade em lugar de silenciá-la.
O que o Brasil será vai depender da sua capacidade – ou não – de incluir todos os outros de si.
No desafio que nos espera, é preciso lembrar que nós não temos língua – somos língua.
Como disse Mia Couto, de forma magistral, na conferência já citada:
– O que advogo é um homem plural, munido de um idioma plural. Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar. De outro, um idioma que nos faça ser asa e viagem.
Para “ser asa e viagem” é preciso acolher todos os outros de si. Não tolerar o outro, mas ser o outro.
Veremos.
(Publicado na Revista Época em 09/01/2012)
O que aprendi com o pior jornalista do mundo
Somos livres para escolher o mal? Somos livres para escolher o bem? Uma pequena reflexão sobre o livre arbítrio a partir do encontro com um personagem real que parece saído da literatura
Na primavera de 2000, entrou na minha vida um personagem da literatura. Um repórter de um jornal europeu me procurou, por intermédio de uma colega, porque viria ao Brasil e queria fazer uma reportagem sobre prostituição infantil. Expliquei a ele que, para fazer algo que valesse a pena nessa área, ele precisaria de tempo e bastante trabalho. Por considerar a pauta relevante e uma repercussão no exterior importante, abri todas as minhas fontes e fiz contatos com outros jornalistas que trabalhavam com o tema em capitais nordestinas. Fiz, praticamente, uma pré-produção para que ele pudesse fazer a reportagem quando chegasse ao país. Mas ele não a fez. Passou uma semana entre São Paulo e Rio de Janeiro e, para meu espanto, publicou em seu jornal uma reportagem sobre meninas leiloadas em jogos no centro-oeste do Brasil, onde jamais havia colocado os pés. Não precisei investigar. O próprio jornalista me contou que havia copiado um texto publicado anos antes em um jornal do interior daquela região como se fosse seu. Segundo ele, com a anuência do autor. Publicou como se fosse o retrato do momento e como se tivesse estado lá.
Eu sabia que coisas assim aconteciam mesmo na melhor – e às vezes entojada – imprensa europeia. Mas jamais testemunhara. Até então eu e o jornalista nunca tínhamos nos visto. Fiquei tão indignada que marquei um encontro para dizer o que pensava olhando na sua cara. Quando cheguei ao bar, ele já estava lá, no longo balcão. Tinha em torno de 50 anos, talvez menos, um físico de mercenário e os olhos mais azuis que eu já tinha visto. Pedi uma taça de vinho e fiz de imediato o que tinha ido fazer. Disse que gente como ele fazia mal não só ao jornalismo, mas ao mundo. E que conhecê-lo tinha sido um desprazer.
O jornalista me ouviu como se eu estivesse contando o enredo de uma comédia romântica. Me provocou, com um sorriso de Humphrey Bogart: “Então, você sempre faz o que é certo?”. Em seguida, me contou que na guerra do Golfo foi tirado do banho do hotel, em Paris, para dar um boletim ao vivo na rádio – e deu, descrevendo a violência que não transcorria diante dos seus olhos. Enquanto o vinho encolhia na garrafa, ele foi desfiando uma longa lista de pecados jornalísticos. Acho que no início queria apenas me chocar, por me considerar uma espécie de virgem da imprensa dos trópicos. Aos poucos, porém, foi trocando a ironia pela amargura. E começou a parecer um homem perigoso de outras maneiras.
Nesta altura, algum leitor pode estar se perguntando por que eu permaneci lá, sentada ao seu lado. É uma boa pergunta. Acho que fiquei porque aquele personagem me fascinava. Ele parecia saído da literatura – e era da vida. E manipulava a vida real que deveria contar. Em certo momento, voltei a habitar o meu corpo e disse que sentia um profundo desprezo por pessoas como ele e que o mundo seria melhor se ele mudasse de profissão. E que, sim, estava na hora de eu ir embora.
Ele então me olhou com aqueles olhos quase transparentes e disse:
– Vou te fazer uma proposta. Só por um dia, eu vou fazer o bem desde o momento em que acordar até a hora de dormir. Em troca, você vai fazer o mal em todas as oportunidades. Amanhã, um dia apenas, viveremos este pacto.
(Pare de ler por um momento, agora, e pense por pelo menos um minuto nessa proposta, como se ela fosse feita a você. Pense com a mente aberta e com a honestidade que só temos com nós mesmos, na sala privada, trancada à chave, de nossas reflexões secretas.)
Disfarçando meu desconcerto, respondi que ele soava como um péssimo Mefistófeles e que seria um ator ainda pior do que era jornalista. Pagamos a conta, e o vi desaparecer na escuridão da rua. Naquele momento, ao vê-lo meio curvado e atormentado sobre o próprio corpo, ele parecia mais o Mister Hyde, de Stevenson, do que o personagem imortalizado por Goethe. Peguei um táxi e fui para casa. Naquela época eu morava sozinha e passei a noite de olhos estalados sobre a cama feita. Ele tinha me perturbado.
Enquanto atravessava a madrugada em uma espécie de transe, eu imaginava como seria levantar no dia seguinte e escolher fazer o mal. Nada muito complexo e com muitas nuances, apenas o mal mais trivial. O que talvez pudéssemos chamar de pequeno mal, amplamente praticado e pouco confessado. Chutar em vez de acariciar o gato, apontar o bigode que a colega de trabalho descoloria no esforço de que ninguém o descobrisse ou a calvície que um amigo se esforçava por disfarçar, humilhar os que estavam abaixo na hierarquia, disseminar comentários cruéis sempre que tivesse oportunidade. Por escolha.
Era como se embriagar de liberdade. É claro que, como todo mundo, eu já havia praticado pequenos atos de maldade. Mas raramente como opção consciente. Em geral meu histórico de maldades, maior na infância e na juventude, contém deslizes e omissões – seguidas por um sentimento de culpa que me impingia bolas de ferro no espírito ao perceber o que havia feito. Pensar que eu podia escolher fazer o mal era algo perturbadoramente sedutor.
No dia seguinte, entorpecida de sono, eu já sabia que seguiria tentando ser a melhor versão de mim mesma. Mas jamais me esqueci desta história – e da inquietação com que ela me assinalou. “Olhos Azuis” – é assim que eu chamo esse enigmático personagem que assaltou meu sossego numa noite da primavera de 2000 – me fez enxergar algo sobre mim. Não algo como tema de um debate filosófico, onde as palavras nem sempre se sujam com as tripas, mas algo como uma possibilidade encarnada na vida. Suas palavras deformadas me deram um vislumbre da liberdade. E eu corri dela o mais rápido que pude.
Eu soube ali que não poderia escolher praticar o mal. Eu só poderia escolher praticar o bem – o que implica descobrir a cada passo o que isso significa. Se eu não sou livre para escolher praticar o mal, então eu seria livre para escolher praticar o bem? Não. Ou há escolha – ou não há escolha. Não pode haver escolha só para um lado. Desde então, marco esta noite como aquela em que eu perdi a ilusão da liberdade graças a um dos piores jornalistas de todos os tempos.
Penso que nossa liberdade é limitada e que, como dizia Nietzsche, o livre arbítrio não existe. Explico, do meu jeito. Temos arbítrio, mas ele está longe de ser totalmente livre. Cada escolha nossa é não só baseada em prós e contras, mas também em influências externas e internas. No lado de fora, a cultura e os valores da época em quem vivemos, o meio onde nascemos e onde nos fizemos adultos, os desafios materiais que a sobrevivência nos impõe. No interior, nosso vasto inconsciente nebuloso, nossas pulsões, o dentro que está além do nosso controle.
Nosso estar no mundo – e em nós mesmos – elimina a possibilidade do livre arbítrio. Mas a imperfeição desta liberdade não nos absolve do arbítrio. Se, ao contrário, caíssemos no outro extremo, o de que nossas escolhas são totalmente determinadas pela cultura ou pela genética ou pelas nossas necessidades de fins que permitem todos os meios, nos colocaríamos além de qualquer responsabilização. Seríamos como marionetes de uma guerra de desrazão por almas que não temos.
Como aquelas pessoas que bochecham a boca com o discurso da liberdade de prateleira e, sempre que possível, responsabilizam o chefe pelo mal que fazem, com a justificativa de que estão cumprindo ordens. Delegam a responsabilidade pelos seus atos, quando mesmo o mais cativo entre nós ainda tem uma estreita margem de escolha. Nossa vizinhança está cheia de gente como Adolf Eichmann, o oficial nazista responsável pela logística do extermínio dos judeus. Em seu julgamento, o nazista surpreendeu o mundo porque, em vez de um monstro sanguinário, se revelou um humano medíocre e mais semelhante do que diferente daqueles que o assistiam. O episódio foi analisado com brilhantismo por Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal” (Companhia das Letras).
Penso que a resposta não está nos extremos. Se a liberdade é tão fugidia que nos escapa a cada momento, maior deve ser a nossa ânsia de buscá-la. Desde que Olhos Azuis tentou me provar que eu tinha tão pouca escolha de fazer o bem quanto ele de praticar o mal, ainda que nossos imperativos fossem opostos, passei a perseguir com muito mais empenho um jeito de viver que tornasse minhas escolhas mais minhas, mesmo sabendo que jamais serão totalmente minhas.
Quando tratamos a liberdade como um bem adquirido ou um direito consolidado, penso que corremos o risco de perdê-la lá onde ela efetivamente está: nas bordas. Se a aceitamos como mercadoria – como uma velha calça azul e desbotada, ainda que novíssima, com rasgões de fábrica e com uma etiqueta que lhe multiplica o preço – nos perdemos dela porque deixamos de procurá-la. Quanto mais fácil e dada a liberdade está, mais nos afastamos dela.
A liberdade é uma coisa séria – e muito mais séria é porque jamais a teremos por completo. Ao contrário do que Olhos Azuis insinuou, a liberdade não se torna algo menor porque inalcançável – mas maior e mais vital porque nos escapa. A liberdade exige – e cobra – nossos melhores esforços.
Penso que a melhor forma de tornar nossas escolhas mais nossas é também a mais difícil: duvidar o tempo todo de nossas certezas. Duvidar de nossos porquês mais óbvios. De nossa rotina estabelecida, de nossos velhos hábitos, de afirmações como “eu sou assim” ou “fulano nunca vai mudar”. Duvidar de que a vida tenha de ser de uma determinada maneira ou de outra. Duvidar de nossas crenças mais profundas, duvidar de nossas necessidades de consumo. Duvidar de que não exista um outro jeito de viver nem um outro mundo melhor que este a ser construído. Duvidar de gente que diz que está fazendo algo para o nosso bem. E mais ainda se essas pessoas estão em lugar de poder. Duvidar quando a gente diz que está fazendo algo para o bem do outro. Assim como a liberdade, o bem não tem respostas óbvias.
Duvidar não é um exercício fácil. É um ato de resistência internamente tão exaustivo – e tão perigoso – quanto atravessar o Atlântico num barco a remo. Escolher duvidar como caminho para alargar nosso estreito espaço de liberdade é uma boa meta para 2012. Só os escravos de espírito têm certezas de concreto armado. Quem anseia pela liberdade, ainda que imperfeita, escolhe tornar-se um colecionador de dúvidas.
Com o passar dos anos, Olhos Azuis foi perdendo sua aura de personagem clássico da literatura em minha memória. Bem aos poucos, ele tornou-se uma figura triste, quase patética. Que, como muitas figuras tristes, quase patéticas, tinha um bom emprego e o pequeno poder de mentir em larga escala. Nunca mais ouvi falar no seu nome. Mas sou grata a ele por ter me arrancado algumas certezas. Ao escolher duvidar dele e de mim, simultaneamente, acessei uma experiência mais profunda. Escolher o que fazer com nossas lembranças é um flerte com a liberdade. É arbítrio, quase livre.
(Publicado na Revista Época em 02/01/2012)