Sensação de insegurança?

O que acontece no nosso lado de dentro quando a violência passa a ocupar espaços cada vez mais largos da vida cotidiana

Nesta primeira segunda-feira de dezembro, percebi com muita clareza que a violência não era mais uma exceção no meu cotidiano, mas algo que atravessava todo o meu dia com uma banalidade persistente e insidiosa. Tenho uma razoável folha corrida como vítima de assaltos e outros crimes ao longo da vida, mas soube de repente que um limite havia sido transposto em algum momento deste ano. Trago essa reflexão para cá, porque a realidade me mostra que não sou a única a ter os dias contaminados nos pequenos gestos.

Percebi de repente que a violência não era mais algo sobre o qual eu pensava ou escrevia – mas algo que havia ganhado um tamanho preocupante não só fora, mas dentro de mim. Eu estava havia minutos demais pesquisando onde levaria uma amiga de infância para jantar, não com base na qualidade ou no preço, mas porque temia expô-la ao risco de um assalto. Quase todos os bares e restaurantes que eu costumava frequentar sofreram arrastões neste ano, até mesmo um japonês que era apenas uma porta, um balcão e umas poucas mesas, levado com muito esforço e lucro escasso pelos proprietários. Surpreendi a mim mesma tentando fazer um cálculo bastante absurdo sobre quais deles teriam mais chance de sofrer um segundo ataque naquela segunda-feira. O que eu estou fazendo?, me questionei a certa altura, ao não me reconhecer nesse ato. E escolhi o que gosto mais.

Marquei cedo – 19h15 – para sair de casa com claridade, graças ao horário de verão, e voltar quando ainda tivesse algum movimento nas ruas. Coloquei na bolsa apenas o suficiente para pagar o táxi e um cartão para pagar o restaurante. Na hora de sair de casa, meu marido ponderou: “Mas se você levar só o dinheiro do táxi, em caso de assalto os caras vão se irritar e você pode levar um tiro”. Pensei um pouco. Talvez ele tivesse razão. E, ao concordar, de novo me senti esquisita. Peguei o dinheiro que tinha tirado do banco para fazer um pagamento no dia seguinte e coloquei na bolsa, como redução de risco.

Meu marido carrega na carteira todas as senhas do banco, em código. Quando sofreu um sequestro relâmpago, anos atrás, ele foi levado a um caixa eletrônico e teve a sorte de se lembrar da senha, mesmo com uma arma na cabeça. Como conseguiu lembrar, os assaltantes ficaram com o carro, um Gol, mas deixaram-no ir embora. O episódio deixou nele a marca de um pânico retroativo: e se não tivesse lembrado, o assaltante teria apertado o gatilho? Desde então, ele guarda todas as senhas na carteira.

Sempre diz que devo fazer o mesmo, mas eu me recuso. E, neste início de noite, tivemos mais uma vez essa discussão. Saí de casa ainda com sol, mas com a sensação de uma sombra no meu lado de dentro. Não tenho carro. Ando de táxi, metrô ou ônibus, conforme o horário e a circunstância. Caminhei um pouco e comecei a descer a Teodoro Sampaio, em Pinheiros, um bairro de classe média de São Paulo. Tentava encontrar um táxi, já esquecida de meus temores. Depois de alguns minutos, um carro parou ao meu lado. O motorista perguntou se eu ia longe. Supus que ele queria saber se a corrida valeria a pena antes de decidir se me levaria, o que me deixou irritada no primeiro instante. Em seguida, porém, descobri que o motivo era outro.

O taxista explicou que na zona dele tinha toque de recolher – e que ele já estava passando da hora de chegar em casa. Como eu ia a um bairro próximo, na direção da casa dele, aceitou me levar. Entrei no carro de um homem que precisava fazer mais corridas para pagar as contas, mas preferia não arriscar a vida. “Eles me conhecem, moro ali a vida toda, mas acho melhor não facilitar”, explicou. Eram mais ou menos 19h30. Eu tinha atrasado porque minha amiga ligara avisando que estava parada no trânsito. Se eu tivesse saído no horário que pretendia, possivelmente teria testemunhado o espancamento de André Baliera, homossexual agredido por dois homens no cruzamento da Teodoro Sampaio com a Henrique Schaumann, ao voltar para casa depois do trabalho.

Cheguei ao restaurante no mesmo horário que a minha amiga. Ela tem uma loja no interior do Rio Grande do Sul e estava em São Paulo para comprar roupas para o Natal. Costuma vir de ônibus, numa espécie de excursão montada para lojistas por empresas de turismo. São cerca de 17 horas de viagem, 34 ida e volta, uma jornada iniciada no domingo por gente que trabalha duro de segunda a sexta no balcão. Mas naquele dia minha amiga tinha vindo parte de ônibus de linha, parte de avião, por medo dos assaltos que tinham se tornado cada vez mais frequentes. Ela tinha feito a escolha certa.

Quando me encontrou, já tinha sido avisada de que o ônibus no qual ela estaria fora assaltado na noite anterior, junto com outros dois que viajavam em comboio. Vestidos de policiais, os ladrões entraram nos ônibus, mandaram os passageiros tirar as roupas, que jogaram na estrada, e entregar os celulares. Depois, as vítimas foram trancadas no bagageiro. Minha amiga, como eu, se surpreendia nos últimos tempos com cálculos bizarros antes de cada viagem de trabalho. No caso dela, lembrar de vestir uma lingerie nova, preparando-se para a hipótese de ser trancada com outras pessoas num bagageiro, só de calcinha e sutiã, totalmente humilhada e exposta.

Na manhã seguinte, terça, fui à minha aula de pilates logo cedo. Ao chegar à escola, percebi que uma das colegas estava abatida, com olheiras fundas. Estranhei a princípio, porque desde que a conheço ela me chama a atenção pelo bom humor e o riso fácil, mesmo às 7h da manhã. Lembrei-me então de que sua casa tinha sido assaltada pouco tempo atrás, num dia de semana, no início da tarde. Os bandidos entraram com metralhadoras e uma granada. Com seu vizinho, foi ainda pior: ele foi obrigado a segurar a granada durante todo o assalto. Mas só na aula seguinte, dias depois, eu tive coragem de perguntar como ela se sentia. Ela explicou que, desde o assalto, não consegue dormir à noite, escuta barulho por todo canto. A outra colega – só somos três por aula – contou que havia passado por um arrastão, quando voltava de Santos, na rodovia Imigrantes, em outubro. Em novembro, seu filho fazia o mesmo percurso quando, de cima de um viaduto, jogaram uma pedra no carro. O vidro frontal foi estilhaçado, mas ele seguiu em frente e escapou.

Quando voltava a pé para casa depois da aula, encontrei uma amiga que chegava para o trabalho. “Continua o toque de recolher no teu bairro?”, perguntei. E só ao perguntar percebi o quanto a pergunta deveria soar absurda – e o problema é que não soava, nem para mim, nem para ela. O toque de recolher continuava, ela respondeu. Havia começado semanas antes, desde a execução de três homens – dois por terem estuprado uma garota, um por ter roubado um tênis. Há bastante tempo essa mulher não sai mais à noite, nem deixa o filho adolescente sair. O último toque de recolher só aumentou restrições que ela já tinha incorporado na sua vida. Mesmo assim, ela me garante que está tudo bem: “Eu cresci com essas pessoas, elas não vão fazer nada comigo. É só ficar em casa à noite e não correr o risco de ver o que não devia. Eu recolho até a cachorra, para ela não ficar latindo no portão, e fico tranquila, bem quietinha dentro da minha casa”.

Conheço essa mulher há 12 anos e sei que ela já perdeu um sobrinho morto pela polícia, numa execução que ficou para sempre impune e mal explicada. Como o taxista da véspera, ela vive na parte da cidade em que falta tudo, especialmente justiça, na qual a população há muito está espremida entre a facção criminosa e uma polícia violenta. Aquilo que contamina minha vida só recentemente, assinala a dela há muito mais tempo. Assim como o filho dela tem várias vezes mais chance de ser assassinado do que a minha jamais teve. Agora, ela me assegura, já se acostumou a viver na luz do sol e me dou conta de que não percebe mais que lhe roubaram as noites.

Essa série de pequenos episódios e diálogos casuais que acabei de relatar aconteceu no espaço de 12 horas, uma noite no meio, na qual acordei várias vezes em sobressalto. A violência tinha me alcançado em todos os meus contatos com o mundo de fora e também com o de dentro. Em todos os meus encontros, ela havia sido o tema principal. Me sentei diante do computador para trabalhar e me descobri triste. Por que estou triste?, ralhei comigo mesma. Não havia motivo aparente para eu estar triste. Mas como não?

Percebi então que tudo havia se tornado tão banal, que eu nem mais registrava como uma perda. É perigoso quando assimilamos aquilo que não pode ser assimilado, a ponto de deixar de estranhar. Como imaginar que essa violência, que nos alcança de várias maneiras e também pelos pequenos gestos, não nos muda? Como supor que não há efeito sobre a vida? Talvez possa parecer a alguns que eu esteja falando o óbvio, mas o que tento dizer é que a violência nos afeta com uma intensidade muito maior do que pode nos parecer a princípio, mesmo quando não somos nós as vítimas diretas de um ato violento.

O que tento perceber aqui é o efeito sobre a vida cotidiana daquilo que autoridades e pesquisadores têm chamado de “sensação de insegurança”. E que sempre me pareceu uma expressão bastante curiosa. Como mencionei no início do texto, eu tenho uma experiência razoável como vítima de crimes – só de assaltos foram cinco, fora e dentro de casa, com e sem agressão física. Carrego a marca de todas as violências que vivi. Mas há uma diferença para o que experimento agora – e foi isso que só percebi uma semana atrás.

Até então, eu percebia a violência como exceção. Havia uma quebra da lei e também uma quebra da rotina. A cada episódio, familiares e amigos se mobilizavam, eu recebia atenção e ajuda, e principalmente o reconhecimento de que algo importante havia acontecido. Algo tinha se quebrado, eu teria de lidar com as sequelas, principalmente as psicológicas, mas aquela não era a minha vida. Eu sabia que, com mais ou menos tempo, o tecido dos meus dias seria recomposto. Agora, não. Como mostra esse relato de 12 horas, a violência tornou-se a linha que costura o meu cotidiano.

Ao perceber isso, passei o restante da semana conversando com pessoas, tanto dos bairros mais nobres quanto das periferias, para saber o que sentiam, como decodificavam essa sensação e como lidavam com ela. Os relatos me surpreenderam pela intensidade das pequenas grandes mudanças. Como uma família que está matriculando a menina mais nova numa escola militar porque na pública ela é discriminada por ser filha de um soldado da PM, uma decisão privada para uma guerra pública e não declarada, na qual, como sempre, os mais frágeis caem primeiro. Minha ideia inicial era trazer os depoimentos para esta coluna, mas acabei concluindo que, desta vez, era mais significativo contar o que eu tinha vivido nestas primeiras 12 horas, quando a violência ainda não era o meu foco, quando eu nem pensava em procurar por ela.

Naquelas 12 horas, percebi que em algum momento eu havia deixado de perceber pequenas mudanças que outros haviam feito na minha vida e algumas que eu mesma tinha feito, todas elas ocorridas neste ano: que passo por grades e gaiolas para entrar e sair do meu prédio; que os entregadores de qualquer coisa foram proibidos de entrar no edifício, o que faz com que trabalhadores sejam tratados como se bandidos fossem por decisão de reuniões de condomínio onde sou sempre voto vencido; que eu coloco a bolsa no chão ao sentar num táxi para que não seja vista e me sobressalto a cada moto com duas pessoas que passa ao meu lado; que eu deixei de levar o notebook para todos os lugares que ia, por medo de que ele seja roubado; que a cada notícia de arrastão eu me sinto aliviada porque poderia estar naquele bar ou restaurante e não estava; que eu ando me achando privilegiada porque a última vez em que fui vítima de violência (com direito a tiros e carro incendiado) foi há três anos, enquanto ao meu redor as pessoas lidam com traumas contados por semanas, dias e horas; que eu me sinto quase culpada porque o meu toque de recolher é só introjetado e ainda pode ser violado, enquanto o da maioria é determinado por uma lei fora da lei, o que faz toda a diferença.

Nos últimos meses, autoridades têm repetido que a “sensação de insegurança” é maior do que as estatísticas da criminalidade. Como se a “sensação” fosse menos real do que os números – que, é preciso lembrar, no caso de São Paulo têm se mostrado assombrosos. Ou que as estatísticas teriam mais valor do que a decodificação da experiência, aqui traduzida em sensação. Ou ainda, como se “os números” fossem mais legítimos para aferir a realidade do que a experiência de quem a vive. E, no limite, ainda que isso apareça travestido de eufemismos, a população estaria vivendo uma espécie de delírio coletivo – ou fantasia compartilhada – de que vive numa cidade mais violenta, num estado mais violento – e num país mais violento – do que efetivamente é.

Ainda que aceitássemos por um momento essa “sensação de insegurança” que não corresponderia aos números/fatos, poderíamos nos perguntar o que é afinal a violência. Viver com “sensação de insegurança” já é uma tremenda violência. E maior ainda quando o que a população sente, experimenta, vivencia não é reconhecido pelas autoridades, sejam elas de que instância forem. Porque a “sensação de insegurança” é justamente o que alinhava o cotidiano, o que se enfia nas frestas dos dias, o que nos faz vítimas não na exceção, mas na regra.

A violência é também tentar escapar da violência. E a tragédia é também a banalidade desse ato contínuo. É quando deixamos de perceber as paredes do labirinto. E restamos com esse mal estar difuso, essa tristeza sem nome que nos corrói por dentro enquanto as horas escorrem pelos muros.

(Publicado na Revista Época em 10/12/2012)

 

Um repórter ameaçado de morte

André Caramante, um dos mais respeitados jornalistas brasileiros na área da segurança pública, foi obrigado a mudar de país e esconder-se. Em entrevista, ele conta o que a situação de exceção vivida por ele e por sua família revela sobre a intrincada relação entre poder e violência

Em 14 de julho, André Caramante, repórter da Folha de S.Paulo, assinou uma matéria com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”. No texto, de apenas quatro parágrafos, o jornalista denunciava que o coronel reformado da Polícia Militar Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, candidato a vereador em São Paulo pelo PSDB nas eleições do último domingo, usava sua página no Facebook para “veicular relatos de supostos confrontos com civis”, sempre chamando-os de “vagabundos”. Em reação à matéria, Telhada conclamou seus seguidores no Facebook a enviar mensagens ao jornal contra o repórter, a quem se referia como “notório defensor de bandidos”. A partir daquele momento, redes sociais, blogs e o site da Folha foram infestados por comentários contra Caramante, desde chamá-lo de “péssimo repórter” até defender a sua execução, com frases como “bala nele”. Caramante seguiu trabalhando. No início de setembro, o tom subiu: as ameaças de morte ultrapassaram o território da internet e foram estendidas também à sua família.

O que aconteceu com o repórter e com o coronel é revelador – e nos obriga a refletir. Hoje, um dos mais respeitados jornalistas do país na área de segurança pública, funcionário de um dos maiores e mais influentes jornais do Brasil, no estado mais rico da nação, está escondido em outro país com sua família desde 12 de setembro para não morrer. Hoje, Coronel Telhada, que comandou a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) até novembro de 2011, comemora a sua vitória nas eleições, ao tornar-se o quinto vereador mais votado, com 89.053 votos e o slogan “Uma nova Rota na política de São Paulo”.

O que isso significa?

Os 13 anos em que André Caramante cobre a área de segurança pública são marcados pela denúncia séria, resultado de apuração rigorosa, dos abusos cometidos por parte da polícia no estado de São Paulo. A relevância do seu trabalho foi reconhecida duas vezes pelo Prêmio Folha de Jornalismo. Caramante já denunciou sete grupos de extermínio formados por policiais militares e civis, assim como por ex-policiais. Mantém sua própria planilha na qual registra os mortos pela polícia. E faz a denúncia sistemática da figura amplamente difundida da “resistência à prisão” como justificativa para execução, em geral dos suspeitos mais pobres. Por sua competência, Caramante ganhou o respeito da sociedade interessada em uma polícia eficiente, com atuação pautada pelo cumprimento da lei – e o ódio de uma minoria truculenta, os maus policiais, tanto militares quanto civis, e daqueles cujos interesses e projeto de poder estão ligados a eles.

Antes de ser jornalista, Caramante quis ser jogador de futebol. Morador da periferia de São Paulo, comprou a primeira chuteira vendendo papelão. Era “um meia-direita dedicado”, na sua própria avaliação, e usou a chuteira com brio nas peladas de várzea e nas peneiras na Portuguesa, no Novorizontino e no Palmeiras, clubes nos quais chegou a treinar nas categorias de base. A necessidade de ajudar com as despesas da casa o despachou para a arquibancada. Em especial a da Vila Belmiro, por um amor incondicional pelo Santos herdado do pai.

Aos 11 anos, Caramante começou a trabalhar como camelô, vendendo chocolates e sacolas no Brás, em São Paulo. Mais tarde, aos 17, o estudante de escola pública pagou a faculdade de jornalismo da Uniban com o salário de office-boy e com os vales-transporte que economizava fazendo o serviço a pé. “Não sabia se a faculdade era boa ou ruim, não entendia dessas coisas, apenas sabia o que queria fazer”, conta. “O livro Rota 66, de Caco Barcellos, tinha me mostrado o que era jornalismo.”

Em seu livro Rota 66 – a história da polícia que mata (Record), Caco Barcellos, um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro, hoje na TV Globo, investigou o trabalho da Rota entre as décadas de 1970 e 1990. E provou que ela atuava como um aparelho estatal de extermínio, responsável pela execução de milhares de pessoas. A reação às denúncias obrigou o repórter a passar um período fora do Brasil, devido a ameaças de morte. Duas décadas depois do lançamento do livro que o inspirou, Caramante vive uma situação semelhante.

A notícia de que ele estava vivendo escondido, com a família, vazou na semana passada, em matéria da Revista Imprensa. Até então, Caramante pretendia manter o fato em sigilo. A decisão de esconder-se com a família foi difícil para o repórter que nunca quis virar notícia – e que sempre evitou ser fotografado. Enquanto era alvo único das ameaças de morte, Caramante manteve uma rotina normal. O jornalista só aceitou se mudar para um destino secreto quando sua família passou a ser ameaçada. Mesmo assim, para ele é ponto de honra seguir com seu trabalho de reportagem. Pela internet, envia informações ao jornal com frequência. E segue assinando matérias na área da segurança pública.

Quando um repórter é obrigado a mudar de país e se esconder com a família por fazer bem o seu trabalho e prestar um serviço à população, ao fiscalizar os órgãos de segurança pública, este não é um problema só dele – mas da imprensa, que tem o dever de informar, e da sociedade, que tem o direito de ser informada. É disso que se trata.

Na entrevista a seguir, feita por e-mail entre sexta-feira e domingo, André Caramante, 34 anos, fala sobre a situação de exceção que ele e sua família estão vivendo, mas principalmente sobre as complexas relações entre violência e poder que a tornaram possível.

Em 14 de julho, você publicou na Folha de S.Paulo uma matéria com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”. Você se referia ao coronel reformado Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, que comandou a Rota, em São Paulo, até novembro de 2011, e, nestas eleições, disputou uma vaga para vereador pelo PSDB. O que aconteceu a partir desta matéria que o levou a, dois meses depois, ter de esconder-se com a família?
André Caramante – Cubro segurança pública há 13 anos, então, muito dessa situação não é exatamente novidade. Nestes 13 anos, sempre mantive minha lupa sobre os abusos cometidos por policiais, especialmente no que diz respeito à letalidade. Considero legítimo que a sociedade possa fiscalizar o Estado, especialmente seu braço armado. Não podemos considerar eficiente uma polícia que mata tanto quanto a do estado de São Paulo. Entre 2006 e 2010, a Polícia Militar de São Paulo matou nove vezes mais do que todas as polícias dos Estados Unidos juntas. A cultura da nossa polícia militarizada permite que se mate sem que se conheça sequer a identidade do “oponente”. É tão normal e aceitável quanto utilizar uma figura jurídica inexistente para preencher o boletim de ocorrência – a “resistência (à prisão) seguida de morte”. A morte do empresário Ricardo de Aquino por policiais militares no bairro Alto de Pinheiros (em São Paulo) colocou a questão na agenda da mídia e das autoridades alguns meses atrás. Como ele, vários outros foram vítimas dessa cultura e do mau treinamento. É óbvio que alguns policiais agem na ilegalidade e a maioria age dentro da lei. Também faço um trabalho consistente de denúncia de grupos de extermínio formados por policiais militares e civis e ex-policiais civis e militares, tendo revelado ao menos sete deles. São grupos que, ao exemplo das milícias do Rio, tentam controlar as atividades ilícitas na cidade – máquinas caça-níquel e tráfico de drogas, às vezes cruzando o caminho do PCC – e geram mortes. Há grupos bem estruturados e com braços de inteligência. Um deles, inclusive, planejou a morte de um integrante do alto escalão do governo paulista, sem que tenha conseguido levar a cabo a ação.Meu trabalho de denúncia também abrange a corrupção na Polícia Civil. Hoje, as coisas se dividem mais ou menos assim no Estado de São Paulo: alguns integrantes da PM cometem violência e alguns da Civil escorregam na corrupção. São questões totalmente relacionadas a poder e dinheiro. Em dezembro do ano passado, publicamos uma investigação da Polícia Federal que mostrava policiais civis cobrando grandes valores para liberar da prisão suspeitos de tráfico de drogas. Somadas, as propinas chegavam a R$ 3 milhões. É uma conduta isolada? Esquemas assim não surgem do nada. É da cultura da instituição, e são as pessoas que constroem a cultura organizacional. Mudar não é uma questão de ser fácil ou difícil, mas de não ser interessante para as pessoas que estão lá.

Você vem denunciando essa situação há bastante tempo, mas só agora teve de esconder-secom sua família por causa de ameaças de morte. O que aconteceu?
Caramante – O que houve foi não digo o surgimento, mas a publicidade e o crescimento exponencial de um clima favorável à intimidação, no qual pessoas sentiram-se à vontade, ou mesmo incitadas, a disseminar “avisos”. A partir da matéria sobre o que estava acontecendo no Facebook houve um acirramento dos ânimos de quem antes já me via como inimigo, além do crescimento quantitativo dos que mantêm os olhos em mim e no meu trabalho de uma forma negativa.Houve uma onda de comentários no Facebook, no Twitter, em blogs e no site da Folha que foram desde “péssimo repórter” até “bala nele”. Era só “ativismo de sofá”, de gente que só despeja frases no teclado do computador? Provavelmente.Depois, alertas de caráter dúbio – “Quando acontecer algo com alguém da sua família…”, “Quando você for sequestrado…” – surgiam nos espaços de comentários do site da Folha em qualquer reportagem que eu escrevesse e até naquelas em que não tive participação, mas que traziam denúncias contra membros das polícias. Também orquestraram o envio de diversas cartas contra mim, enquanto profissional, para a Folha.Após pouco mais de um mês de bombardeio digital, as ameaças tornaram-se mais concretas, com fatos atualmente sob investigação das autoridades competentes.

Que fatos são estes?
Caramante – Não falo de um fato, mas de uma série, que se iniciou dias após aquela onda nas redes sociais. Foram ligações, comprovações por fontes altamente confiáveis,de que estavam levantando informações de familiares, motos em trajetos curiosamente iguais aos meus. Não acho possível dimensionar a gravidade do risco, e também chegou-se a um ponto em que não valia mais a pena ficar avaliando. Decidi ouvir gente mais experiente do que eu e, em conjunto com o jornal, foi tomada uma decisão: trabalho à distância.
Não estou fisicamente na redação desde o início de setembro, sem que tenha saído da ativa. Esta é uma situação em que o risco físico toma a cena, mas certamente ele não é o único. Venham de onde vierem, a ameaça e a intimidação têm o objetivo de desestabilizar, tirar de cena. Jogam com o risco psicológico também, testam quão boa é a sua cabeça e quão forte é a sua corrente.

Qual é o papel do Coronel Telhada, ex-comandante da Rota, nesta série de ameaças?
Caramante – Em sua página, o coronel reformado começou a divulgar relatos de confrontos entre PMs da Rota e civis – estes sempre chamados de “vagabundos” –, além de divulgar fotos de pessoas que, segundo ele, eram suspeitos de crimes. Fiz um texto objetivo, relativamente curto, sobre isso. No dia da publicação no jornal, 14 de julho, ele postou no Facebook uma mensagem na qual me acusava de “defender abertamente o crime” e pedia uma mobilização contra mim. A conduta desse senhor deflagrou uma onda de tentativas de intimidação, de incitação à violência contra um jornalista – um profissional que apenas retratou o que o próprio coronel reformado registrou publicamente na rede social. Não estou dizendo que ele quis ou que ele não quis incitar atos violentos. Estou dizendo que acabou incitando.

Quem efetivamente está ameaçando você? E quais foram as ameaças?
Caramante – De onde vejo, apontar um ou outro possível autor pode dar grande margem a erro. Tenho minhas suspeitas, mas não cometeria o equívoco de acusar sem provas. Creio que haja dois tipos de ameaça. A primeira se aproxima do “ativismo de sofá”, de quem escreve no computador algo que jamais cumprirá. Os autores deste tipo de ameaça não são tão desconhecidos assim, e não é tão difícil encontrá-los nos canais digitais. A segunda, esta sim grave, é a ameaça de quem considera a possibilidade de agir. Aqui estão desde admiradores de policiais alvos de reportagens, pessoas que pouco têm a perder e vivem com parâmetros de raciocínio e moral diferentes dos nossos, até outros que há tempos me têm como um inimigo e podem aproveitar justamente esta visibilidade do caso do Facebook para tentar algo e “colocar na conta” de outro. O caso do Facebook, além de ser apenas uma parte da história, pode ser usado por outros para acobertar eventuais retaliações. Mas, veja, isto é o que eu deduzo com base na minha experiência, não há qualquer base de pesquisa ou de investigação científica.

O que você está dizendo é que pessoas que se ressentem há muito tempo com suas denúncias de abusos cometidos pela polícia estariam se aproveitando do caso do Facebook para se vingar e desviar a responsabilidade para o Coronel Telhada?
Caramante – Sim, é uma possibilidade.

Quando as primeiras ameaças se tornaram públicas, você disse que continuaria a fazer o seu trabalho. Imagino que deve ter sido difícil tomar a decisão de se afastar da redação. Como esta decisão foi tomada?
Caramante – É importante esclarecer que o termo “afastamento” não é apropriado para o meu caso. Continuo exercendo minhas atividades profissionais, onde quer que eu esteja. Não estar fisicamente na redação me causa impedimentos que são irrisórios frente à necessidade atual de garantia da integridade, minha e da minha família.

Quando você deixou de trabalhar na redação?
Caramante – Desde o início de setembro. Os advogados do jornal encaminharam às autoridades uma solicitação de investigação sobre as ameaças. Alterei completamente minha rotina e minha localização.

Foi difícil?
Caramante – Sou trabalhador desde os 11 anos e não tenho dúvidas quanto à profissão que escolhi. A decisão de estar fisicamente ausente da redação não foi nada fácil. Particularmente, via este passo como um sinal de recuo, um erro do ponto de vista do meu ideal e mesmo de estratégia em relação a quem tenta enfraquecer o trabalho da imprensa. O que fizemos, então, foi arquitetar uma ausência que fosse apenas física, com uma operação que permitisse que seguíssemos em frente. Existem inúmeras maneiras de fazer reportagem.

Qual foi a reação da sua família e como eles estão vivendo esse momento?
Caramante – Estão todos cientes e bastante atentos. Não é fácil estar ausente, mas não creio que seria muito melhor estar presente e vivendo com sombras. Meus filhos percebem a situação incomum que vivem atualmente, mas ignoram essa história toda. Felizmente, eles sentem-se seguros onde pai e mãe estão – não importa onde. Minha rede familiar está permeada pelo estresse, mas ela é muito forte. Sempre foi, desde muito antes de toda essa situação. Além disso, a corrente formada por colegas de profissão e entidades daqui e de fora também deixou claro que este não é um problema só meu. Entidades como Repórteres Sem Fronteiras, Knight Center of Journalism (vinculado à Universidade do Texas), Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, Instituto Sou da Paz, coletivo Sindicato É Pra Lutar e movimento independente Mães de Maio se manifestaram publicamente em apoio à minha atuação e ao direito de informar.

É isso que está em jogo, o direito de informar?
Caramante – É uma questão ligada ao direito de informar e de ser informado, e meus companheiros de profissão sabem do que falo. Há, atualmente, no estado de São Paulo, uma grande preocupação por parte de autoridades da segurança pública de tentar evitar que muitos fatos sejam tornados públicos pela imprensa. Por conta disso, funcionários públicos que as autoridades acreditam manter contato com jornalistas passam a ser alvo de perseguição nas instituições às quais pertencem. Muitas vezes, essas perseguições são feitas com base apenas no “achismo”.

Que fatos são estes, que as autoridades da segurança pública não querem que se tornem públicos?
Caramante – Qualquer dado que não conste do relatório oficial publicado mensalmente no site da secretaria. Não é exagero. Falo de qualquer dado mesmo. Basta perguntar a quem cobre a área. Não é de hoje. Sempre foi assim. No estado de São Paulo, jornalistas são impedidos de consultar boletins de ocorrência, um documento público. Tudo – absolutamente tudo – tem de passar pelas canetas das assessorias de imprensa da Secretaria e da Polícia Militar. É uma operação extremamente centralizada e que visa impedir o repórter de ir a uma delegacia e obter informações sobre uma ocorrência.

Por quê?
Caramante – Vejo como uma tentativa de construir uma realidade que não existe aqui, como se vivêssemos na Suécia. A proibição do acesso a boletins de ocorrência integra uma estratégia de forte controle de informações. “Só sai o que eu quero.” Não importa a relevância do dado, esta é a diretriz. Delegados só dão entrevistas mediante autorização de assessores de imprensa. É meio estranho que uma autoridade seja submetida a esse tipo de imposição para tentar controlar a informação.

Esta foi a primeira vez que você foi ameaçado de morte?
Caramante – Não. Como vários outros colegas, já passei por situações semelhantes. Ouvi pelo telefone frases como “Cuidado, muita gente morre em assalto por aí”, seguida por meu endereço completo. Tempos atrás, policiais à paisana fotografaram minha família durante um passeio.

Você costuma denunciar os abusos cometidos pela polícia, especialmente contra os moradores das periferias de São Paulo e da Grande São Paulo. Você se considera, hoje, nesta situação, uma vítima da polícia?
Caramante – Não me considero vítima de nada. Tenho plena consciência de que não posso e não quero ser notícia. Sou contratado por um jornal para contar as histórias das outras pessoas, para fiscalizar um determinado segmento do poder público. E a minha preocupação é sempre esta: contar a história do próximo, registrar os fatos, levar a notícia para quem lê a Folha de S.Paulo. As páginas de um jornal marcam a história de um país. Eu sou uma peça dessa engrenagem que imprime a história no papel do jornal. A exposição desses últimos fatos me trouxe tristeza porque não é o que busco como repórter. Aí vão perguntar: “E por que você está dando entrevista?”. Estou dando entrevista porque, do muito que foi dito sobre a minha pessoa, pouco foi dito por mim. Porque quero esclarecer que não estou “afastado”. Afastamento dá a ideia de punição, de suspensão, e nunca houve nada nesse sentido da parte do jornal. Pelo contrário: sanamos a demanda urgente relativa à garantia da integridade e ao mesmo tempo planejamos a continuidade do trabalho. E mais: não existe isso de perseguir a Polícia Militar ou a Polícia Civil com meu trabalho. O que penso é que ninguém quer ter nessas instituições pessoas que não façam jus à condição de representantes do Estado.

Já entrevistei muitas pessoas ameaçadas de morte, algumas delas ameaçadas de morte por policiais, de diferentes estados. Minha percepção é de que estas últimas sentem um nível de desamparo maior, na medida em que, se aqueles que deveriam protegê-las, em vez disso ameaçam a sua vida, para quem então pedem ajuda? Sem contar que membros da polícia, por disporem do aparato do Estado, têm meios para comprometer a credibilidade da vítima, “plantando” falsas provas. Como você percebe isso?
Caramante – Quando você tem indicativos de que alguns dos representantes armados do Estado querem te desestabilizar, com certeza, a reflexão é sempre essa: para quem recorrer, como agir? Muitas vezes, essas mesmas pessoas tentam desmoralizar seu trabalho e sua conduta fora do campo profissional, mas tenho tentado me manter centrado. Converso com repórteres amigos para dividir alguns pensamentos e pensar em maneiras de me manter firme na caminhada.

Por que o estão ameaçando? Que “ameaça” você representa para que ameacem a sua vida? E por que agora, neste momento?
Caramante – Como te falei, não é de agora. É uma coisa que ficou mais acentuada. Pode ser que tenha alguma relação com o período eleitoral ou com outros interesses que ainda não consigo afirmar quais são. Um deles, por exemplo, pode ser a necessidade que muitos têm de manter o poder ou de chegar até o poder.

Quem? Pode explicar melhor?
Caramante – Não posso nomeá-los, pois aí já entraremos em informações referentes aos bastidores das polícias, e esses meandros estão muito ligados às minhas fontes e às minhas apurações. Hoje, em São Paulo, a questão da polícia vai além dos muros dessas instituições. A cidade nunca esteve, em período democrático, tão militarizada. Trinta das 31 subprefeituras ganharam comando de PMs da reserva na gestão Kassab. Com a criação da operação delegada, os policiais militares hoje atuam oficialmente não apenas para a corporação, mas também para a prefeitura – é o bico legalizado. Vemos então que as frentes de poder estão crescendo, e há muita gente na disputa. Sem contar os cargos na Câmara Municipal.

Por que isso está acontecendo? Por que, por exemplo, 30 das 31 subprefeituras de São Paulo ganharam comando de PMs da reserva nesta gestão?Como você caracterizaria esse projeto de poder?
Caramante – Esse processo ganhou corpo quando o coronel (agora reformado) da PM Álvaro Batista Camilo, também candidato a vereador, pelo PSD, se aproximou do prefeito Kassab, na época em que era comandante-geral da PM. Como é sabido, Kassab vem marcando sua gestão com uma postura de cerceamento. Já são notórias as tentativas de proibição de sopões a moradores de rua, de saraus na periferia, da feira da praça Roosevelt, no centro de São Paulo, e outras mais.

O que o fato de um repórter de um dos maiores jornais do país ser ameaçado de morte revela sobre a violência no estado de São Paulo?
Caramante – É uma questão que não diz respeito somente à violência. Esta é a parte tangível de todo o contexto que citei anteriormente. A relação polícia X poder é atualmente um ponto muito importante. Desde a abertura política, talvez seja este o momento em que São Paulo mais tenha a influência de policiais militares. Com poder em jogo, os ânimos se acirram, em qualquer área.

Por que agora? E o que está em jogo?
Caramante – Estamos em um momento propício por conta da já citada aproximação sem precedentes (da polícia) com outras esferas do poder público. Muitos oficiais da PM notaram, e agora tentam dar vazão a isso, que há outras e importantes áreas para onde estender seu campo de atuação – e de poder.

Você cobre a área policial há 13 anos. Documentou, como repórter, a ascensão do PCC. Você costuma dizer que vivemos numa guerra. Por quê? Como é essa guerra e em que momento dessa guerra estamos hoje?
Caramante – É uma guerra entre o grupo criminoso PCC e as forças de segurança do Estado. O PCC é forte porque controla o tráfico de drogas no estado de São Paulo. É inegável o fato de o estado de São Paulo, desde 1999, ter conseguido baixar suas taxas de homicídios dolosos (intencionais). Essa queda, porém, é fruto de controle duplo: se deve tanto a progressos na Segurança Pública quanto ao comando do PCC. Em muitas situações, é o PCC quem decide quem morre em São Paulo, nos chamados tribunais do crime. Hoje, outubro de 2012, a guerra está mais acirrada entre o PCC e os policiais militares da Rota, considerada uma tropa de elite da PM paulista e que conta com 820 integrantes. Investigações contra o PCC antes feitas pela Polícia Civil, que tem essa atribuição pela lei, foram remetidas à Rota, que tem função de policiamento preventivo, ou seja, trabalhar para evitar que o crime ocorra.Estou dizendo isso porque defendo criminosos e quero dar uma chance a eles? Não. Falo porque é ilegal. Quem investiga é a Polícia Civil. Há aí uma nítida tentativa de empoderar ainda mais os integrantes da Rota. É o Estado agindo ilegalmente.

Por quê?
Caramante – Isso é um reflexo da atual cúpula da Secretaria da Segurança Pública, que tem um histórico de relacionamento intrínseco com a Rota. Nos primeiros escalões da segurança pública paulista, também, impera uma certa desconfiança quanto à atuação de parte da Polícia Civil nas investigações sobre o PCC. Fala-se em corrupção.

Na semana passada, a Folha publicou que arquivos da facção PCC revelam atuação em 123 cidades de São Paulo, com 1.343 homens em todas as regiões do estado. O governo de São Paulo tentou minimizar o impacto das informações e o poder do PCC. O governador, Geraldo Alckmin, afirmou que “há muita lenda” sobre facções criminosas no estado de São Paulo. O secretário da Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, declarou: “A facção é bem menor do que dizem. Não chega a 30 ou 40 indivíduos que estão presos há muito tempo e se dedicam ao tráfico. Nós temos asfixiado esse tráfico com grandes prisões”. O coronel da Polícia Militar Marcos Roberto Chaves da Silva, comandante do policiamento da capital, disse que existe “folclore” nas informações sobre o PCC. Qual é a verdade?
Caramante – Curioso como esse folclore é alinhado à realidade. No mês passado, por exemplo, a Rota matou nove pessoas envolvidas em um “tribunal do crime”, um julgamento no qual um homem suspeito de estuprar uma menina teria sua vida decidida pelos criminosos do PCC. Um dos nove mortos pela Rota era o “réu” do partido do crime, como os policiais chamam o PCC. Para justificar a ação, o governo disse que todos eram muito perigosos, que integravam o PCC. Passado o calor do acontecimento, o governo voltou à postura habitual de minimizar a importância, o tamanho e o poder do grupo. Se são apenas 30 ou 40 indivíduos, as oito mortes no mês passado reduziram significativamente o PCC. É isso o que vemos quando policiais militares são mortos quando estão de folga, como tem ocorrido constantemente em São Paulo? Será que o PCC deixou de decidir quem vive ou quem morre durante um “tribunal do crime”, quase sempre via telefones celulares usados por criminosos que estão presos e, na teoria, deveriam estar sem comunicação com as ruas? Quem vive na periferia de São Paulo sabe bem como as coisas são.

E como as coisas são? Como é o cotidiano de quem vive na periferia com relação ao PCC e à Rota?
Caramante – O PCC domina os pontos de tráfico de drogas em São Paulo. Para evitar a presença das polícias, tenta corromper alguns de seus integrantes e também busca evitar crimes nas redondezas dos pontos de tráfico, principalmente homicídios. No meio disso, quem não é nem do PCC, nem da polícia, assiste a tudo em silêncio, esperando que não “sobre” para si.

O governador Geraldo Alckmin trocou o comando da Rota, no final de setembro. Entre as razões, estaria a divulgação de que o número de pessoas assassinadas pela tropa aumentou 45% nos primeiros cinco meses deste ano, comparado ao mesmo período do ano passado. Qual é a sua opinião sobre a Rota? Ela deveria acabar?
Caramante – Não só a Rota, mas toda a Polícia Militar. A PM tem uma estrutura que desconhece meritocracia e privilegia uma variação do nepotismo. Policiais dos escalões mais baixos são usados como degrau para filhos de oficiais que estão no topo da pirâmide. É como se o filho do coronel fosse, desde sempre, o coronel de amanhã, e o filho do praça já nascesse sabendo que jamais será oficial. Há exceções que o governo pode vir a bradar, claro, mas a regra é mais ou menos essa.Quantos oficiais foram mortos pelo PCC?Nenhum. É óbvio que não tem de morrer nem o official, nem o praça. Mas, hoje, só morre aquele trabalhador que está na linha de frente e também vive na periferia de São Paulo.Quem cobre segurança pública em São Paulo também sabe que os policiais da Rota saem às ruas com um ímpeto diferenciado e, às vezes, alguns deles cometem excessos. É o caso da morte do representante comercial Paulo Alberto Santana Oliveira de Jesus em Osasco, na Grande São Paulo, em setembro de 2011. Ele foi morto em casa, desarmado e com as mãos para trás. Em maio deste ano, das mortes de seis suspeitos de integrar o PCC na zona leste de São Paulo, um deles foi levado a uma rodovia e executado. Em ambas as situações, foi forjado um confronto armado, segundo dados apresentados por promotores. As seis mortes na zona leste são tidas como estopim para o atual acirramento da violência entre PCC e Rota.

Me parece curioso, para dizer o mínimo, que um repórter tenha de se esconder para proteger sua vida após ter denunciado que um candidato a vereador pelo PSDB e ex-comandante da Rota disseminava a violência no Facebook e ninguém, de nenhum partido, tenha falado disso durante a campanha. Você tem alguma hipótese para esse silêncio?
Caramante – No fim de setembro, um candidato a vereador em São Paulo, assim como esse ex-chefe da Rota, pediu a impugnação da candidatura dele e alegou que esse senhor aparecia em sua propaganda política fardado, o que não é permitido pela lei eleitoral. Esse mesmo candidato também foi alvo da ira dos simpatizantes do ex-chefe da Rota e recebeu ameaças. A promotoria eleitoral também pediu, na semana passada, a impugnação da candidatura desse PM reformado e alegou que ele utilizou sua página no Facebook para incitar a violência.

Por que você se tornou repórter de polícia?
Caramante – Porque quem tem a obrigação de nos defender não pode, sob hipótese alguma, atentar contra nós. Também queria que meu pai tivesse o orgulho de ver seu sobrenome no jornal por uma causa justa.Sempre admirei o trabalho de repórteres como (Caco) Barcellos. Há histórias e situações que precisam ser contadas. Admiro muito, também, José Hamilton Ribeiro, mestre na arte de contar histórias. Ouvi palavras de apoio dos dois recentemente. As de Barcellos recebi com reverência. O tenho como meu maior exemplo. As de seu Zé Hamilton, com emoção. Me pegou desprevenido. Me marcou.Quero agradecer cada mão estendida e cada palavra de apoio que foi dita em nome da garantia do direito de informar e ser informado.

“Repórter de polícia” ainda é uma boa definição para jornalistas como você?
Caramante – Acredito que o termo “repórter de polícia” deixou de existir. Hoje, cobrimos segurança pública e, por conta de uma evolução da cobertura nessa área, que deixou de ser tão vinculada às autoridades, como era no passado, somos repórteres de segurança pública.

E qual é a importância de se cobrir a área de segurança pública num país como o Brasil?
Caramante – É um tema intimamente ligado ao cotidiano das pessoas, e ainda temos muito a evoluir tanto no combate à criminalidade comum quanto à de parte das forças de segurança.

Você monitora o número de pessoas mortas pela polícia. Quantos foram mortos até hoje no estado de São Paulo?
Caramante – Sim, monitoro porque o jornal para o qual trabalho dá atenção especial para a questão da letalidade policial. Tenho meu próprio sistema de dados, no qual registro todas as mortes cometidas por policiais militares. Estes números não batem com os oficiais. A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo divulga em sua página na internet apenas as chamadas “resistências seguidas de morte”, mas há outros casos que entram na vala comum dos homicídios dolosos cometidos por qualquer cidadão. Minha contabilidade mostra que, entre 2005 e agosto deste ano, policiais militares mataram 4.358 pessoas no estado. Destas, 3.401 foram em “resistência(à prisão) seguida de morte” – figura jurídica inexistente, repito – e 957 em homicídios dolosos, que vão desde brigas em bar, no trânsito, casos conjugais, até mortes como a do empresário Ricardo de Aquino. São 47,3 mortos por PMs a cada mês. Ou seja: 1,5 a cada dia. Este é o retrato de uma Polícia Militar extremamente letal e que precisa passar por reformas o quanto antes.

Em que medida as relações entre o aparato de repressão do Estado e a população explicitam a desigualdade e as fissuras da sociedade brasileira num estado como São Paulo?
Caramante – A Polícia Militar que atua dentro do perímetro do rodízio de veículos (de São Paulo), o chamado centro expandido, não é a mesma que atua na periferia. Temos duas polícias militares para cuidar da mesma cidade, e cada uma delas trata os cidadãos de maneira diferenciada, isso de acordo com o CEP da pessoa. Muitas vezes, policiais são mandados à periferia como forma de punição dentro do jogo de poder que não está nos manuais da corporação. Então, já vai para lá com um sentimento diferenciado. Recentemente, pesquisadores mostraram, com base em dados da Secretaria Municipal da Saúde, que 93% dos mortos pela Polícia Militar moravam na periferia de São Paulo. O estudo teve como base os anos entre 2001 e 2010. No período, dos mortos por PMs, 54% eram pardos ou negros.

Hoje há programas de TV que cobrem a área policial, nos quais suspeitos são tratados por jornalistas como condenados – e condenados sem direito algum –, marcas de tortura em detidos e presos são ignoradas e apresentadores incitam a violência da sociedade contra “vagabundos”. Você acha que esse tipo de imprensa colabora para que jornalistas como você, que trabalham com seriedade e denunciam também os abusos cometidos pela polícia, sofram ameaças?
Caramante – São profissionais da imprensa que recebem altos salários para fazer o que fazem. Eles são experientes e, creio, no fundo sabem que somente a Justiça pode condenar ou inocentar algum suspeito de determinado crime. Estão ali por cifras altas. É a mesma situação de um profissional de jornalismo que abandona a carreira numa redação para ser assessor e ganhar R$ 1 milhão por seis meses de trabalho numa campanha política. São opções e temos de respeitar quem as toma. Mas essas pessoas também têm de respeitar quem não pensa como elas.

Como é estar no lugar de vítima para você, que tanto denunciou a violação de direitos humanos dos mais pobres e indefesos?
Caramante – Vítima é a dona Maria da Conceição, mãe do Antonio Carlos da Silva, o Carlinhos, portador de deficiência mental que foi morto por policiais militares que integram o grupo de extermínio “Highlanders”, segundo a Polícia Civil e a Promotoria. Ele teve a cabeça e as mãos arrancadas após ter sido morto porque andava na rua e tinha dificuldades de comunicação.

Você pode contar melhor esta história?
Caramante – Carlinhos foi morto em outubro de 2008, na periferia da zona sul de São Paulo. Estava perto de casa quando foi obrigado a entrar em uma viatura da Polícia Militar que fazia ronda no local. Vizinhos assistiram à cena e relataram à família. Imediatamente, a mãe, dona Maria da Conceição dos Santos, a irmã, Vânia Lúcia, e o pai começaram a procurá-lo. Poucas horas depois foram até o 37º Batalhão, onde ouviram da boca dos PMs – que, segundo a Polícia Civil e a Promotoria, mataram seu filho – que não o tinham visto. Encontraram o corpo de Carlinhos, decapitado e com as mãos arrancadas, em uma cidade vizinha. Ele, que era portador de necessidades especiais, tinha dificuldades para se comunicar.

Uma das maiores dificuldades da situação que você está vivendo parece ser o fato de ter virado notícia. Por quê?
Caramante – Para começar, nunca me vi numa situação assim. Não é para isso que decidi ser repórter. A questão da exposição parece parte de uma realidade paralela, não se encaixa na minha trajetória. Optei por sempre passar despercebido.Quero poder continuar sentando numa delegacia sem que ninguém saiba quem eu sou.

Imagino que você tenha medo em alguns momentos ou o tempo todo. Como lida com isso?
Caramante – O medo pode ser uma ótima ferramenta para aguçar os instintos. Sim, pode ser devastador também. Tento utilizá-lo como um agente minimizador de riscos. Nos momentos mais difíceis de administrá-lo, busco lembrar por que estou nesta caminhada. Me vêm à mente pessoas das quais contei histórias. O foco são elas, não eu.

Há perspectiva de sair dessa situação em breve?
Caramante – Minha situação atual passa por constante avaliação da direção do jornal. Por enquanto, manteremos como está.

Como essa experiência está transformando você? Já é possível perceber alguns impactos e mudanças?
Caramante – Situações dessa intensidade são oportunidades para reafirmar algumas ideias e descartar outras. Houve impacto, e mudanças certamente virão. Mas estão em curso, e por isso prefiro guardá-las aqui comigo.

Que ideias você reafirmou e quais descartou?
Caramante – Reafirmei, por exemplo, a ideia de que tenho de permanecer alguém que conta as histórias dos outros, e também meu intuito de contribuir, minimamente que seja, para a melhoria dos setores que cubro. Deixei de lado a ideia de que riscos podem ser mensurados com algum grau de exatidão. Ninguém faz nada, até que alguém faça.

Como tem sido seu cotidiano nessa situação de ameaçado de morte?
Caramante – Realmente acho difícil falar sobre isso. Há preocupação referente não apenas à situação atual, mas a como será no futuro. Esta não é uma situação que tenha prazo de validade.Agora à noite, um dos meus filhos disse que preferia estar na nossa casa de verdade. Perguntei o motivo. “Lá é mais colorido.”

(Publicado na Revista Época em 08/10/2012)

 

Mulheres de Palavra

Um embrulho de papel brilhante

Breve itinerário amoroso de uma filha que não sabe como cuidar dos pais

A espio chegando, com seus pés tortos por um milhão de problemas, uma bolsa pesada na mão e uma mala de rodinhas. É minha mãe e acabou de descer do ônibus com meu pai. Vejo que ela me procura com olhos ansiosos na rodoviária de Porto Alegre, já pronta pra reclamar que estou atrasada. Eu poderia me apressar. Em vez disso, estaciono minhas botas atrás de uma das colunas. Tento fixar esse momento. Naquele instante eu sei que aquela cena é irrepetível, e de súbito essa revelação me engolfa. Faz alguns anos, já, que a percepção da passagem do tempo se faz nítida em mim. Sinto-me como se estivesse no fundo de uma piscina, ouvindo à distância o burburinho surdo dos outros. Respiro e estou de novo na superfície. Guardo a cena inteira numa dobra do meu corpo, desprego-me da coluna e surjo sorridente diante deles.

Estamos todos ali, na cidade em que já não vivo há muito, para uma consulta com o médico da capital. Naquele dia, eu apalpo essa nova geografia na qual ainda preciso descobrir se sou montanha, rio, um lago. Talvez apenas uma árvore não muito grande, não muito forte. Quando a hora de cuidar dos pais nos alcança, os filhos que se importam encontram-se não apenas em território desconhecido, mas acabam por encontrar um território desconhecido dentro de si.

Quero protegê-los, mas não sei como. Devo chamar um táxi ou esperar pelo meu pai, como sempre foi? Devo tomar a iniciativa e fazer eu as perguntas para o médico ou devo permanecer como coadjuvante? Devo andar no lado externo da calçada ou devo respeitar o lugar do meu pai, que como todo homem de sua geração sempre se manteve como um escudo entre a rua e as mulheres, na intrincada arte do footing? Ele esclarece: “Vá para o meio, para conversar com a tua mãe”. Não vá para o meio porque sou eu que protejo vocês. Eu compreendo a enormidade dessa cena banal. Mas nada digo. Apenas deslizo para dentro.

Mais tarde, depois da consulta, levo-os para jantar num shopping em frente ao centro médico. Vou de balcão em balcão da praça de alimentação em busca de algo que meu pai possa comer. Ele agora tem muitas alergias. “Você não pode só fazer um pão com queijo mozzarella?”, eu pergunto. Logo, estarei quase implorando. Mas parece que ninguém pode fazer pão com queijo. As franquias são todas formatadas, as atendentes me olham como se eu estivesse pedindo olhos de macaco com pão de urtiga australiana. Será que eu não compreendo que não é possível sair do padrão? Comer no shopping ganha contornos de um sonho persecutório. Sinto-me incapaz de levar comida para o meu pai.

Naquele momento, não apenas confronto a fragilidade recém-descoberta deles, mas também a minha. Ao despedir-me de meus pais, temo que algo possa acontecer porque não estarei ali para protegê-los, mas internamente duvido que possa de fato protegê-los. Imagino catástrofes, há um torniquete ao redor do meu coração quando pego o avião de volta. Sei bem agora que posso no máximo cuidar deles, como eles cuidaram de mim – e, de um modo muito particular, ainda cuidam. Ninguém pode proteger ninguém, essa é só mais uma ilusão. E, mesmo quando acreditamos compreender a vida, somos empurrados para um novo vazio e restamos às tontas.

Antes de eu pegar o avião, eles o ônibus, minha mãe me empurra um pacotinho em papel de presente brilhante. Eu sei o que é. Minha mãe sempre me dá um pijama. Não só para mim, para todos. É um carinho e um desejo, o de nos ver na cama, aquecidos, a salvo, como num tempo em que, todos sabemos, nunca existiu. O pijama já vem lavado, devidamente desinfetado de todos os germes da loja e das mãos que o cobiçaram antes dela. O pijama vem lavado dos males do mundo, minha mãe confiante no poder redentor dos produtos modernos de limpeza. Não posso nem quero imaginar uma vida sem pacotes de papel brilhante com um pijama cheirando a amaciante dentro.

Na semana seguinte voltamos a nos encontrar, agora para a cirurgia do meu pai. Minha mãe de novo está com sua bolsa pesada, uma mala de rodinhas e seus pés claudicantes. É um mistério como ela consegue andar tão rápido e ir a todos os lugares com aqueles pés. Mas ela sempre está uma curva adiante de nós, em vários sentidos. Qualquer um levaria o básico ao preparar a mala para uma viagem de saúde. Pijama, roupas de baixo, talvez um roupão, escova de dentes, essas coisas. Minha mãe, eu tinha certeza, carregava também uma caixa de docinhos. Docinhos mesmo, estes de aniversário de criança. Glaceados, caramelizados, trufados, bombas de glicose concentrada.

Minha mãe jamais viaja sem uma caixa de docinhos. Já carregou caixas de docinhos no colo por mais de mil quilômetros. Se há alguma criança nos arredores, os docinhos surgem no formato de bichos, carros, gurias de tranças. Por quê?, pergunto com a boca cheia de leite condensado. “Os doces de Ijuí são diferentes”, ela diz, com o tom das verdades absolutas. Minha mãe sempre demonstrou afeto com comida. Desisti de levar o feijão dela congelado, de Ijuí para São Paulo, quando o líquido viscoso, impregnado de linguiça caseira, escorreu pelo compartimento das bagagens de mão do avião e pingou a milímetros da cabeça do passageiro ao meu lado. Foi uma decisão difícil de comunicar a ela.

A caixa de docinhos era ali uma garantia de que algo permanecia imutável numa vida cujo controle nos escapava. Algo doce. Era a segunda vez que nos preparávamos para a cirurgia. Na primeira, o plano de saúde avisara que não cobriria o “procedimento” na hora da internação, com o respeito habitual. Desta vez, a pressão de meu pai subia porque o esqueceram na emergência do hospital. De novo eu tentava protegê-lo. E de novo fracassava.

No dia seguinte, minha mãe me sussurraria na sala de espera. Meu pai estava desacordado em algum lugar do bloco cirúrgico. E eu tentava não imaginar o corpo aberto do meu pai. Ela sussurra, então: “Nós nos despedimos, sabe. Ele disse que a vida comigo foi muito mais do que ele sonhou e que ele foi muito feliz”. Eu queria dizer que ainda seriam felizes, mas não encontrei voz. Eu sabia que eles temiam essa cirurgia com um medo novo. E que mesmo depois dela o medo talvez não fosse embora. Quase 60 anos de casamento, e o amor dos meus pais é escandalosamente vivo. Vivo a ponto de sobreviver a despedidas desse tipo.

Algumas horas mais tarde, quando tudo já havia acabado, estremecemos ao ouvir o celular: “Ele está pedindo os óculos na UTI. Diz que precisa enxergar”. Minha mãe guardava naquela bolsa pesada dela os olhos e os dentes do meu pai. Será que é por isso que está tão pesada?, pensei. À noite, eu teria pesadelos com os dentes do meu pai na bolsa da minha mãe. Meu pai sempre pareceu usar os dentes com parcimônia, mas era apenas aparência. É verdade que ele mastiga cada bocado de comida quase tantas vezes e com tanta paciência quanto um macrobiótico, mas a vida, não. Na vida ele finca os dentes. E, desconfio eu, também em algumas partes da minha mãe, mas isso eu prefiro não investigar.

Minha mãe devolveu primeiro os olhos do meu pai, depois os dentes. No dia seguinte ele reclamaria que ela levou tempo demais para devolver os dentes dele. E ainda depois descobriríamos que a chave do cadeado da mala dele havia se perdido, junto com todas as chaves que abrem portas na vida deles. “Eu não sei quem perdeu as chaves, se fui eu ou ele”, balbuciou minha mãe, subitamente sem saber para onde levar seus pés. “Era um molho enorme de chaves.” Eu sabia que eram muitas e sabia que seriam encontradas. Em algum momento, nós sempre precisamos voltar a encontrar as chaves.

Dias mais tarde, meus pais estão deitados na cama do hotel. Devagar, meu pai começa a se recuperar. Ele está lendo uma biografia de Getúlio Vargas. Minha mãe lê 50 tons de cinza. Ela reclama que é tão mal escrito quanto uma daquelas novelas românticas de banca de revista, mas não cogita abandonar a leitura. Quando ela se distrai por um instante, meu pai rouba o livro dela para dar uma assuntada. Não sei se encontra o que procura, porque logo depois volta para Vargas. Eu sinto que poderia passar a vida lendo os dois.

Sei que empreendi um caminho de volta para casa, mas essa viagem é apenas interna. Quando um filho parte, nunca há volta. Não deve mesmo haver volta. Há apenas esse tempo roubado, no qual eu posso abraçá-los e fingir que ainda sei o meu lugar. Ou que algum dia soube.

Antes da despedida, minha mãe se aproxima com seus pés impossíveis. Me alcança um pacote embrulhado em papel brilhante. Eu sei o que é. Sei também que, por enquanto, estamos todos bem.

(Publicado na Revista Época em 01/10/2012)

 

A vida na “Tumorlândia”

O grande polemista Christopher Hitchens conta, com a inteligência e a ironia que marcaram a sua obra, como é a vida no mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas a partir do diagnóstico de um câncer

Li o último (e aqui o último tem um sentido maior) livro do britânico Christopher Hitchens durante um voo de Porto Alegre para São Paulo, na semana passada. Quando acabou, a experiência da leitura tinha dado ao voo curto uma extensão inusitada. Sentada na janela, esperando os outros passageiros desembarcarem, eu me sentia de luto por alguém que nunca vi. Como disse Graydon Carter, editor da Vanity Fair, revista americana na qual Hitchens travou alguns de seus mais ardorosos embates, a capacidade de produzir a certeza de que ele escrevia diretamente para cada um de nós era um de seus trunfos. Em seus artigos, Hitchens ofertava-se por inteiro, com o ímpeto desassombrado e feroz que provocou amores e ódios, fez amigos e inimigos. Sempre parecendo estar muito satisfeito pela chance de enveredar por alguma polêmica cabeluda, ao atacar personagens tão diversos quanto Henry Kissinger e Madre Tereza de Calcutá. Tão destemido para escrever quanto era para beber e fumar. Não é diferente neste Últimas palavras (Globo), livro no qual Hitchens espeta seu olhar afiado na convivência com o câncer que acabaria por matá-lo, aos 62 anos, em 15 de dezembro de 2011. Ao desembarcar do avião e do livro, descobri que estava dolorida. Não apenas pelo que ele tinha vivido, não apenas porque ele tinha morrido, mas por uma razão bem egoísta: já não haveria textos de Christopher Hitchens para ler.

Provocar essa sensação no leitor ao final de um livro no qual narra o fim da própria vida mostra o enorme poder de Christopher Hitchens como escritor. O mais provável, neste tema, seria evocar pena, compaixão e lágrimas. Ou, no caso de seus numerosos opositores, uma sensação de vingança saciada pelo sofrimento ao qual foi submetido – seguido pela morte da qual não pôde escapar.

Hitchens, porém, não permite nem piedade, nem vingança. Ele termina sua vida por escrito com uma inteligência e uma honestidade intelectual tão luminosas que só conseguimos lamentar nossa orfandade de suas letras. Em suas últimas palavras, ele consegue escrever sobre si mesmo com o olhar agudo de quem escreve olhando para um outro – mas sem apartar-se de si. Olha de fora e de dentro – ao mesmo tempo.

Há quem possa se chocar quando ele trata o câncer, talvez a palavra mais intoxicada de sentidos do nosso tempo, com tanta sem-cerimônia. Mas não é desrespeito pela dor, nem a sua nem a do outro. Pelo contrário. Vale a pena perceber o quanto é importante que alguém possa olhar para o câncer que o consome também com ironia, até mesmo com humor – não porque é uma experiência menor, mas justamente porque é grande. E poucos seriam capazes dessa ousadia além de Christopher Hitchens.

Nos 19 meses entre o diagnóstico de câncer no esôfago e a sua morte, muitas foram as apostas sobre quantos dias ou semanas ele demoraria antes de capitular e sucumbir à religião – ele, que foi um dos mais dedicados defensores do ateísmo. Contra todos os prognósticos, Hitchens morreu sem perder a coerência. Como ele mesmo diz, diante da expectativa explícita de seus adversários: “Imaginar que eu descarte os princípios que sustentei por toda a vida na esperança de conseguir favores no último minuto? Espero e confio que nenhuma pessoa séria ficaria impressionada com tal escolha barata. O deus que iria recompensar covardia e desonestidade e punir dúvida irreconciliável está entre os muitos deuses em que não acredito”.

Até o fim, um tipo de cristão – mais comum do que todos nós, religiosos e não religiosos, gostaríamos – atacou-o com ódio. Como nesta “contribuição” pinçada por Hitchens na internet, entre tantas: “Quem mais acha que Christopher Hitchens ter câncer de garganta terminal (sic) foi a vingança de Deus por ele usar sua voz para blasfemá-lo? Ateus gostam de ignorar FATOS. Gostam de agir como se tudo fosse uma ‘coincidência’. Verdade? É apenas ‘coincidência’ (que) de todas as partes do seu corpo Christopher Hitchens tenha conseguido um câncer na única parte de seu corpo que usou para blasfemar? Tá, continuem acreditando nisso, ateus. Ele vai se contorcer de agonia e dor e se reduzir a nada, e depois ter uma horrível morte agonizante, e ENTÃO vem a parte realmente divertida, quando ele é mandado para sempre para o FOGO DO INFERNO, para ser torturado e queimado”.

Hitchens escuta e responde mesmo a estas demonstrações de ódio – para além de qualquer mágoa que pudesse sentir por um outro ser humano desejar-lhe tanta dor pelo simples fato de não compartilhar de suas crenças. Como fará durante todo o livro, ele desnuda cada argumento. A começar por esclarecer o crente vingativo de que blasfemou também com outras partes do seu corpo, não atingidas pelo câncer. Entre várias observações, aponta: “Por que não lançar um raio sobre mim, ou algo similarmente assombroso? A divindade vingativa tem um arsenal tristemente pobre se a única coisa em que consegue pensar é exatamente o câncer que minha idade e ‘estilo de vida’ sugeriam que eu pudesse ter”.

Se Hitchens tivesse abdicado de suas convicções no percurso do morrer, nenhum de nós deveria julgá-lo. Do mesmo modo que jamais devemos julgar alguém que tenha delatado seus companheiros durante uma sessão de tortura. A tortura e a doença letal têm causas e implicações diversas, mas compartilham de uma premissa: são dois momentos cuja dimensão e intensidade só são alcançadas por quem os experimenta – e ninguém pode garantir qual será o seu comportamento antes de ter vivido um ou outro. Podemos apenas desejar manter-nos fiéis aos nossos princípios, mas garantir jamais.

Fico contente, porém, que Hitchens tenha conseguido viver até o fim com tudo o que era. Sua coerência deu vigor a suas últimas palavras. E por causa dela ele tornou-se capaz de escrever sobre a vida no que chamou de “Tumorlândia” – como nomeou o mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas que descobrem um câncer. Importa menos concordar ou discordar de suas ideias – e importa mais a lucidez com que ele tratou o momento possivelmente mais difícil da vida de um homem. Suas últimas palavras constituem um ensaio valioso sobre o morrer – de câncer, no Ocidente, no início do século 21.

Selecionei aqui algumas de suas observações mais provocativas, para nos ajudar a pensar sobre como lidamos com a doença e a morte:

1 – Manual de etiqueta do câncer

Numa sessão de autógrafos, Hitchens foi abordado por uma mulher com “estilo maternal”. Ela multiplicou o tempo de espera de quem estava atrás na fila ao lhe contar uma história escabrosa, arrematada por um “entendo exatamente o que você está passando”. A partir do episódio, Hitchens começou a pensar na conveniência de um pequeno “Manual de Etiqueta do Câncer”. A obra seria destinada “aos doentes e também aos simpatizantes”.

Hitchens explica: “Meu manual teria de impor deveres a mim, bem como àqueles que falam demais, ou de menos, na tentativa de disfarçar o inevitável constrangimento nas relações diplomáticas entre Tumorlândia e seus vizinhos”. Ele gostaria de lembrar às pessoas, em geral, que não circulava por aí com um enorme broche de lapela no qual estava escrito: “PERGUNTE-ME SOBRE CÂNCER DE ESÔFAGO EM METÁSTASE NO QUARTO ESTÁGIO E APENAS SOBRE ISSO”.

No manual, as pessoas seriam orientadas a contar sua história com mais parcimônia, tenha ela um final triste ou feliz, e a permanecer atentas à possibilidade de a plateia não estar interessada. Na posição de “doente de câncer”, ele também se compromete a não desfiar a série de misérias cotidianas que passaram a fazer parte da sua vida diante de um corriqueiro “como vai?”. A melhor resposta para esta pergunta tão educada quanto banal não seria discorrer longamente sobre o funcionamento bipolar do seu intestino. Para conhecidos e estranhos, ele sugere: “Ainda é cedo para saber”. Para a equipe médica: “Pareço ter um câncer hoje”.

Hitchens também sugere aos muito, muito íntimos, que não se precipitem na abordagem da morte, dizendo coisas como esta: “Imagino que chegue uma hora em que você precisa considerar que tem de partir”. Ao escutar isso de alguém, ele ficou chocado. Estava pensando nisso, sabia disso, mas preferia ser ele a dizer, e não um outro, por mais próximo que fosse. A estas pessoas, ele diz: “Eu me preocupo em encarar os fatos difíceis, obrigado”.

2 – Se conselho fosse bom…

Ao ser assolado por todo tipo de conselho bem-intencionado, Hitchens lembrou de um ensaio no qual a crítica de cinema Pauline Kael descreveu Hollywood como “um lugar onde se pode morrer de encorajamento”. E completa: “Na cidade do tumor você às vezes sente que poderia expirar apenas por conselhos”.

Hitchens foi aconselhado, entre outras coisas, a ingerir essência granulada de caroço de pêssego (“ou seria damasco?”), tomar grandes doses de testosterona, abrir seus chacras para adotar um “estado mental receptivo”, adotar dietas macrobióticas e vegetarianas, congelar-se por criogenia.

Com a ironia habitual, ele apreciou apenas o conselho de uma amiga cheyenne-arapaho, que rabiscou num bilhete algo assim: “Todos os meus conhecidos que apelaram para remédios tribais morreram quase que instantaneamente. Se te oferecerem qualquer remédio nativo americano, mova-se o mais rápido possível na direção oposta”.

3 – Ah, os eufemismos…

Hitchens aponta a tendência da medicina moderna de usar eufemismos ao lidar com pessoas com câncer, dando destaque para a palavra “desconforto”: “Como estamos indo hoje? Algum desconforto?”. Diz ainda que “uma avenida de eufemismos” foi aberta pela abordagem empresarial: “Já se encontrou com nossa equipe de ‘gestão da dor’?”.

Sobre os eufemismos, ele afirma: “Assim que você ouve isso da forma errada, pode parecer um eco da prática do torturador de mostrar à vítima os instrumentos que serão usados nela, ou descrever a gama de técnicas e deixar que essas ameaças façam a maior parte do trabalho. (Galileu Galilei teria sido exposto a isso enquanto passava pela pressão gradual que acabou convencendo-o a se retratar)”.

Como jornalista, Hitchens submetera-se à tortura do waterboarding (“afogamento simulado”). No pós-11 de Setembro, comprovou-se que a CIA estava usando esse “método de interrogatório” em suspeitos de terrorismo. Diante da reação chocada de parte dos americanos, o governo de George W. Bush convocou especialistas para afirmar que não se tratava de tortura. Ao assumir a presidência, Barack Obama baniu o “procedimento”.

Durante a controvérsia, Hitchens foi afogado em segredo por membros das Forças Especiais, nas montanhas da Carolina do Norte, por vontade própria. Ele queria provar aos leitores da Vanity Fair que não era uma simulação, mas afogamento de fato. A experiência de ser torturado lhe deixou sequelas e, sempre que aspirava algum tipo de umidade, corria o risco de um ataque de pânico. Ao longo do tratamento do câncer, mostrou-se difícil para ele receber alimentação líquida através de um tubo, ou mesmo ser banhado.

Em seu livro, ele diz: “Há práticas médicas e hospitalares cotidianas banais que lembram às pessoas da tortura praticada pelo Estado. (… ) Mesmo a ideia de algumas aplicações malfeitas de água ou gás, com a intenção de hidratar e nebulizar, para combater problemas respiratórios, são mais do que suficientes para me deixar gravemente doente”.

4 – O Cristo crucificado pode não ser uma visão tranquilizadora

A exibição de crucifixos na parede dos quartos de hospital tem sua desaprovação, com base no que chama de “associações sadomasoquistas pregressas”. Hitchens lembra que os condenados nas guerras religiosas e na Inquisição eram submetidos à visão compulsória da cruz até a morte. “Em algumas das pinturas fervorosas dos grandes autos de fé, não excluindo, acho, alguns dos queimados vivos pintados por Goya na Plaza Mayor, vemos a chama e a fumaça se erguendo perto da vítima, e a própria cruz suspensa sinistramente diante de seus olhos fechados.”

5 – “O que não me mata (NÃO) me fortalece”

Hitchens discorda da frase famosa, atribuída ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Na sua experiência com o câncer, descobriu que aquilo que não o mata o enfraquece – e a fraqueza em geral é cumulativa e tem um final previsível. A partir dessa constatação, ele passou a refletir sobre a obstinação terapêutica dos médicos ou o que tem sido chamado aqui de “tratamentos fúteis”. E faz observações muito interessantes sobre este, que é um dos dilemas contemporâneos: se o avanço tecnológico assegurou vários benefícios à saúde e ampliou as possibilidades da medicina, teve como efeito colateral o prolongamento doloroso e inútil da vida.

Entre os exemplos trazidos por ele, há a extraordinária história do filósofo Sidney Hook, que morreu em 1989, mas gostaria de ter morrido antes. Depois de um angiograma ter provocado nele um derrame, numa experiência extremamente dolorosa, ele descobriu-se “na meca médica de Stanford, na Califórnia” e às voltas com o seguinte paradoxo: tinha à disposição um nível de cuidados sem precedentes na história e, ao mesmo tempo, era exposto a um grau de sofrimento que as gerações anteriores poderiam não ser capazes de suportar.

O filósofo pediu ao médico que suspendesse os mecanismos de sustentação da vida, com base em três argumentos: outro derrame doloroso poderia atingi-lo, obrigando-o a sofrer tudo de novo; sua família estava sendo obrigada a passar por uma experiência infernal; recursos estavam sendo investidos à toa. O médico recusou sua reivindicação, usando a seguinte frase: “Algum dia você perceberá a falta de sentido do seu pedido”. O filósofo cunhou então uma expressão poderosa para explicitar a situação a que a medicina condenava pessoas como ele: viver em “túmulos de colchão”.

Hitchens descobriu que algumas pessoas tinham não mais o desejo de morrer com dignidade, mas o desejo de já ter morrido.

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Estas são algumas das observações feitas por Christopher Hitchens sobre viver com câncer. Progressivamente, escrever foi se tornando uma conquista arrancada com muita dificuldade dos dias e das dores. A certa altura, ele viu sua poderosa voz, com a qual travou debates inesquecíveis, ir minguando, calada à força pelo tumor. Descobriu então – e este é um dos momentos mais belos do livro – que não tinha uma voz, era uma voz. Assim como não possuía um corpo, era um corpo. Do mesmo modo que não somente escrevia, mas era palavra escrita. “Escrever não é a apenas a minha forma de vida e de ganhar a vida, mas minha própria vida. (…) Sinto minha personalidade e minha identidade se dissolvendo enquanto contemplo mãos mortas e a perda das correias de transmissão que me ligam à escrita e ao pensamento.”

Christopher Hitchens morreu sendo por inteiro, mesmo que literalmente estivesse aos pedaços. A prova é que, como último ato de vida, ele escolheu pensar sobre a morte.

(Publicado na Revista Época em 24/09/2012)

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