Sorrindo pelas costas

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Enfiou uma mão por dentro da blusa para puxar o sutiã, cuja alça direita tinha dobrado. No gesto, sentiu seu indicador roçar alguma coisa. Uma pedra no meio do seu caminho? Retrocedeu com os cinco dedos. Sentiu de novo. Apalpou. Parecia uma bola entre as suas costelas. Apertou. Não doía. Coçou. Não coçava. O que era aquilo? Correu até o banheiro da firma. Tirou a blusa, torcendo para que ninguém entrasse e a visse seminua. Torceu-se toda para olhar no espelho. Havia uma bolota vermelha e perfeitamente redonda ali. Não perfeitamente, olhando melhor. Apalpou de novo. Não sentia nada. Coçou. Não coçava nada. Como não tinha visto aquela bolota antes?

Ligou para o consultório médico. Há uma bolota nas minhas costas, anunciou à secretária. Não posso esperar um mês por uma consulta. Maldito plano de saúde vagabundo. Você sabe, uma bolota nem sempre é uma bolota, insistiu. Vou falar com o doutor para marcar um encaixe, a moça prometeu.

Naquela noite sonhou que a bolota tinha um rosto. Como a carinha do smiles. Mas era uma carinha má. A bolota ria dela. Antes de lhe cravar os dentes. Agora ela tinha certeza de que aquela bolota não era inofensiva. Nas noites seguintes teve medo de dormir. Era como se uma estranha estivesse acordada sem que ela pudesse enxergar seus olhos abertos. Uma estranha íntima dando dentadas na sua carne. E rindo, rindo muito. Rindo pelas suas costas.

Hum, disse o médico. Hum o quê? Não estou gostando do aspecto dela, mas não posso confirmar nada antes da biópsia. Pode não ser nada. Quando apareceu? Não sei, só vi na semana passada. Deve estar aí há algum tempo. Como você não viu? A pergunta a deixava nervosa. Eu não sei, não sei como eu não a vi antes. Eu deveria tê-la apalpado no banho, pelo menos, mas não senti. Simplesmente não senti. Não se preocupe, faremos a biópsia e tudo ficará esclarecido. Ela nem sabia se queria esclarecer alguma coisa. Eu não tenho material para fazer aqui, mas basta ir ao laboratório, seu plano cobre esse exame. É um procedimento de rotina. Da rotina de quem, ela gostaria de ter perguntado. Mas se calou.

Sentada na sala de espera do laboratório em que arrancariam um dente do sorriso das costas dela, ela estava longe. Não só de suas costas, mas dela inteira. Fora. Estava fora. Nem registrou a dor. Sentiu algum desconforto?, perguntou a moça. Desconforto, que palavra era esta? Doeu menos do que depilar a virilha com cera, ela disse.

Cinco dias depois, a secretária do médico ligou porque ele queria vê-la. Ela foi, mas permaneceu onde estava. Longe. Nem ouviu a palavra quando o médico a pronunciou. Simplesmente não a interessava. Tudo o que ela conseguia pensar é que ninguém a amava o suficiente para acariciar as suas costas. Ninguém a amava o suficiente para descobrir que havia uma bolota ali antes que fosse tarde demais.

Perdida

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Meu deus!, viu-se dizendo em voz alta. Ela não era religiosa, mas a frase alojara-se na sua boca desde que as tias solteiras a repetiam pela casa da sua infância, diante de cada pequena catástrofe doméstica. Da polenta queimada a um fio puxado na meia de náilon.

Desta vez, a catástrofe era dela. Lembrou-se de súbito que deixara o filho pequeno dormindo, trancado no apartamento, para fazer uma compra rápida no supermercado. E o esquecera por completo. Pensando bem, ela nem fora ao supermercado.

Onde estou agora?, olhou para os lados. Estava num café de shopping, daqueles de rede americana, tomando um cappuccino e comendo um croissant borrachento. Como eu vim parar aqui? Duas vistosas sacolas de loja estavam acomodadas na cadeira vaga da sua mesa. De quem é isso? Olhou para os lados, de novo. Só um casal e uma moça abduzida diante do computador. Nenhum deles parecia notar a sua confusão. Espiou dentro das sacolas, constrangida, como se elas não lhe pertencessem. Mas pertencem? Dentro, um vestido, um jeans e um sapato de salto. Quem comprou tem bom gosto, pensou. E eram do seu número, constatou.

Estou ficando louca, e um soluço estrangulado saiu dela. Meu deus, eu preciso correr. Meu deus, eu saí de manhã de casa. O Pedro acordou, deve ter chorado até se afogar. Morreu de asfixia. O Pedro acordou, está morrendo de fome e de sede no berço. Será que os vizinhos ouviram os gritos e chamaram os bombeiros? Meu deus, eu sou uma péssima mãe, uma mãe doida, do tipo que vira manchete de jornal. Vão me apedrejar como fizeram com os Nardoni. Como eu pude?

A enormidade do seu ato, do seu esquecimento, do seu desvario desabaram sobre ela. Seu bebê agora poderia estar morto. Ela já queria se matar também. Mas antes precisava ter certeza. Se ele ainda estivesse vivo, ela seria a melhor mãe do mundo, ela acreditaria no deus que invocava, ela seria outra.

Saiu da paralisia e correu a pegar um táxi na frente do shopping. Com as bolsas das lojas. Por que eu estou carregando essas bolsas? Obrigou o motorista a correr, a ultrapassar, a ignorar sinais vermelhos. Meu filho está morrendo, ela dizia, os olhos vermelhos, o rosto vermelho, o suor porejando desespero.

Atirou uma nota de 50 reais, a primeira que achou, e entrou correndo no prédio. Não se ouvia nada, só um funk. Quem é esse doido que escuta som nesse volume? Se eu não tiver matado o meu bebê, eu vou reclamar pro síndico. Socou o botão do elevador. Fora o funk, tudo parecia normal no prédio. Nenhum sinal de polícia ou bombeiros. Nenhum som de bebê, também. Mas como ouviria, com este funk?

Entrou no elevador e descobriu que não tinha luz lá dentro. Se não tiver matado o seu filho, ela reclamaria do zelador relapso. Por sorte, ela lembrava de sempre carregar uma lanterna na bolsa. Derrubou tudo no chão para achar, tateando, mas não fazia mal. Ela precisava subir sete andares. Sete? Percebeu que tinha esquecido o número do seu apartamento. Onde é que eu deixei meu bebê, onde é que eu vivo? Agora o elevador subia para o sete, mas não era no sete. Ela tinha quase certeza de que não era. No quinto, o elevador parou, abrupto. Entrou um morador que ela não conhecia. Poderia também ser uma visita, como saber? Não era uma visita. A senhora está bem? Acho que não, eu esqueci onde eu moro, confessou, encolhida de vexame. A senhora mora no 402. Quer que eu ligue para alguém? A senhora não parece mesmo bem, talvez esteja tendo um AVC. Não, não, eu estou bem. Estou meio atrapalhada, por causa dessa escuridão. Queimou a lâmpada de novo, e o zelador não trocou. Escuro?, o homem perguntou, parecendo perplexo. É, o senhor está enxergando por causa da minha lanterna. Ele abriu a boca para falar, mas fechou. Tem certeza de que a senhora não precisa de ajuda? Estou bem, é só uma enxaqueca. Só preciso chegar em casa e tomar um comprimido. Ela não queria contar que tinha esquecido seu bebê. Antes de ser presa, ela se mataria, abraçada ao corpo do seu bebê. O vizinho desconhecido apertou o quarto andar, e ela desembarcou do elevador tentando aparentar normalidade. Já me sinto melhor, obrigada. Ela não queria que descobrissem logo que era uma assassina. De repente, já começava a pensar que poderia talvez fugir. E imediatamente sentiu a culpa escalar o esôfago com a bílis. Não, ela não viveria com a morte do seu filho. Mesmo querendo, mesmo querendo. Que horror, ela queria. Era uma mãe horrível, mesmo, além de uma assassina.

Vasculhou a bolsa, mas não encontrava as chaves. Deixei no elevador, no chão. Não vi no escuro. Estava parada na frente da porta e só então percebeu que o funk vinha de lá. Da sua casa. Mas como? Suas mãos tocaram o molho de chaves, afinal. Mas qual chave seria? Havia umas dez ali. Ela foi tentando uma por uma, e nenhuma parecia servir. Então, a porta se escancarou. E ela estava diante de um adolescente de cabelos compridos, calça larga, caída até abaixo do ossinho do quadril, tatuagens por todo o corpo e um piercing na sobrancelha direita. Quem é você? O que você fez com o meu bebê?, gritou.

Ele olhou para ela, por um segundo, antes de agarrá-la pelos ombros:

— Mãe, a senhora está bem?

Russomanno e a vulgaridade do desejo

O “patrulheiro do consumidor” lidera em São Paulo porque, se a política é de mercado, ele pode convencer como mercadoria

Como se define um povo? De várias maneiras. A principal, me parece, é pela qualidade do seu desejo. É por este viés que também podemos compreender o fenômeno Celso Russomanno (PRB). Como um homem que se tornou conhecido por bolinar mulheres na cobertura de bailes de carnaval e como “patrulheiro do consumidor” em programa da TV Record, apoiado pela Igreja Universal do Reino de Deus, torna-se líder de intenções de votos na maior cidade do Brasil?

Acredito que parte da resposta possa estar no desejo. Na vulgaridade do nosso desejo. No que consiste o desejo das diferentes camadas da população, seja o topo da pirâmide, a classe média tradicional, o que tem sido chamado de “nova classe média” ou classe C. Para além das diferenças, que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo – e para o outro. É para consumir que boa parte da população não só de São Paulo quanto do Brasil urbano tem conduzido o movimento da vida – e se consumido neste movimento.

Dois textos recentes são especialmente reveladores para nos ajudar a compreender o Brasil atual.

Em sua coluna de 4/9, na Folha de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle faz uma análise interessantíssima do caso Russomanno. Ele parte do fato de que a ascensão econômica de larga parcela da população no lulismo se dá principalmente pela ampliação das possibilidades de consumo – e não pela ampliação do acesso a serviços sociais de qualidade. Logo, para essa camada da população, os direitos da cidadania são decodificados como direitos do consumidor. Nada mais lógico para representá-la e defender seus interesses do que um prefeito que seja um pretenso “patrulheiro do consumidor”, bancado por uma das igrejas líderes da “teologia da prosperidade”. Russomanno seria, na definição de Safatle, “o filho bastardo do lulismo com o populismo conservador”.

Na ótima reportagem intitulada “O Funk da Ostentação em São Paulo”, o repórter de Época Rafael de Pino conta como se dá a apropriação do funk carioca nas periferias de São Paulo. Preste atenção na abertura da matéria, que reproduzo aqui:

“‘Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil pra gastar, Rolex e Juliet’, canta o paulista MC Danado no funk ‘Top do momento’. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto, dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na plateia do show na Zona Leste, região que concentra bairros populares de São Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes, que pagaram ingressos a R$ 30. O público da sexta-feira é jovem, etnicamente diverso e poderia ser descrito em três palavras: ‘classe C emergente’.”

MC Danado, como nos conta Rafael de Pino, antes de se tornar um astro, trabalhou como office-boy e auxiliar de escritório. Ele diz o seguinte: “Gosto da ostentação, gosto de ostentar. Parte do que canto, eu tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”. Vale a pena conferir os refrões de outros funkeiros da ostentação, como MC Guimê: “Ta-pa-ta-pa tá patrão, ta-pa-ta-pa tá patrão/Tênis Nike Shox, Bermuda da Oakley, Olha a situação”. Ou MCs BackDi e Bio-G3: “É classe A, é classe A/quando o bonde passa nas pistas geral, tá ligado que é ruim de aturar/É classe A, é classe A/Nós tem carro, tem moto e dinheiro”.

MC Menor, outra estrela ascendente, explica: “Enxergo o mundo como meu público enxerga. Nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar pobreza e miséria”. Não por acaso, é em São Paulo que o funk se torna uma expressão do desejo de consumo da juventude emergente das periferias.

Ao ascender economicamente, a “nova classe média” parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional – talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade, transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família.

Se no passado recente o rap arrastou multidões nas periferias de São Paulo com um discurso fortemente ideológico contra o mercado, hoje o espaço é parcialmente ocupado pelo “funk da ostentação” e seu discurso de que uma vida só ganha sentido no consumo. As marcas de uma vida não se dão pela experiência, mas se adquirem pela compra: as marcas da vida são grifes de luxo, segundo nos informam as letras do funk paulista. Alguns dos grandes nomes do rap engajado do passado também podem ser vistos hoje anunciando produtos na TV com desembaraço – o que também quer dizer alguma coisa.

É importante observar, porém, que aquilo que eu tenho chamado aqui de vulgaridade do desejo não é uma novidade trazida pela “nova classe média”. Ao contrário, a influência tem sinal trocado. O que os emergentes da classe C tem feito é se apropriar da vulgaridade do desejo das elites. O funk da ostentação de MC Danado, ao recitar grifes e fazer uma ode ao consumo, pode estar na boca de qualquer socialite que possamos entrevistar agora no corredor de um dos shoppings de luxo.

Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.

Russomanno não inventou a vulgaridade do desejo – apenas a explicitou e tratou de encarná-la. Seus oponentes têm uma biografia muito mais relevante, assim como partidos mais sólidos. Mas parecem ter perdido essa vantagem junto a setores da população no momento em que se renderem à lógica do consumo e viraram também eles um produto eleitoral. Pela adesão à política de mercado, perderam a chance de representar uma alternativa, inclusive moral.

José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.

Quem transformou eleitores em consumidores de produtos eleitorais não foi Celso Russomanno. Ele apenas aproveitou-se da conjuntura propícia – e não perdeu a oportunidade ao perceber que os outros reduziram-se a ponto de jogar no seu campo. Afinal, de mercadoria Russomanno entende.

É bastante interessante que entre os mais perplexos diante deste novo Brasil, representado pelo fenômeno Russomanno, estejam o PT e a Igreja Católica. Ambos, porém, estão no cerne da mudança que agora se desenha com maior clareza.

A “era” Lula marcou e segue marcando sua atuação também pelo esvaziamento dos movimentos sociais – e da saída coletiva, construída e conquistada que foi decisiva para a formação do PT. Também estimulou sem qualquer prurido o personalismo populista na figura do líder/pai. Assim como na campanha que elegeu Dilma Rousseff, a sucessora de Lula no governo foi apresentada como filha do pai/mãe do povo. Em nenhum momento, nem o PT nem Lula pareceram se importar de verdade com o fato de que os numerosos militantes que no passado ocupavam os espaços públicos com suas bandeiras e seu idealismo foram gradualmente sendo substituídos por cabos eleitorais pagos, em mais uma adesão à lógica de mercado.

A cúpula da Igreja Católica no Brasil, por sua vez, atendendo às diretrizes do Vaticano, esforçou-se nas últimas décadas para esvaziar movimentos como a Teologia da Libertação, que representavam uma inserção do evangelho na política pelo caminho coletivo e pela formação de base. Esforçou-se com tanto afinco que perseguiu alguns de seus representantes mais importantes – e marginalizou outros. Mas parece que nem o PT de Lula nem a CNBB têm compreendido que o fenômeno Russomanno também foi gerado no ventre de suas guinadas conservadoras – e, no caso do PT, de suas alianças pragmáticas e da sua atuação para transformar a política num balcão de negócios. Sem esquecer, claro, que o PRB de Russomanno é da base de apoio do governo Dilma.

Quando a presidente do país dá o Ministério da Cultura para Marta Suplicy, para que ela suba no palanque do candidato do PT à prefeitura de São Paulo, por mais que os protagonistas aleguem apenas coincidência, é só política de mercado que enxergamos. E tudo piora quando Marta invoca uma trindade político-religiosa no palanque de Haddad: “O trio é capaz de alavancar (a candidatura de Haddad): a presidente Dilma, o Lula e eu. Eu, porque tenho o apelo de quem fez; eu sou a pessoa que faz. O Lula porque é um ‘deus’ e a presidente Dilma porque é bem avaliada. Então, com a entrada desse trio, vai dar certo”.

Diante do que está aí, feito e dito, por que o eleitor vai achar que Russomanno é pior? Ou que as alternativas a ele são de fato diferentes?

O mais importante não é atacar Celso Russomanno, mas compreender o que ele revela do Brasil atual. O fenômeno Russomanno pode ter algo a nos ensinar. Quem sabe sua liderança nas pesquisas eleitorais possa mostrar aos futuros candidatos que ética e coerência na política valem a pena se quiserem se tornar alternativas reais para uma parcela do eleitorado. Ou que se nivelar por baixo em nome dos fins pode ser um tiro no pé – tanto quanto se aliar com qualquer um. E talvez o fenômeno Russomanno possa ensinar aos futuros governantes que um povo se define pela qualidade do seu desejo. E desejo só se qualifica com educação.

Sempre se pode lamentar que o eleitor deseje o que deseja, mas o eleitor – em geral subestimado – sabe o que quer. Se a maioria acredita que tudo o que dá sentido a uma vida humana pode ser comprado num shopping, então São Paulo – e o Brasil – merecem Celso Russomanno.

(Publicado na Revista Época em 17/09/2012)

 

Seu J, o único homem que faz de mim o que quer

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

Ilustração: Carolina Vigna-Marú

— Quanto tempo vai durar? — perguntei.

— Um mês — afirmou Seu J, categórico como se expressasse uma verdade tão óbvia quanto absoluta.

— Mas eu quero saber o prazo real, não aquele prazo que depois vira o dobro. Ou o triplo! Eu trabalho bem com a realidade, então preciso que o senhor me diga de verdade quanto tempo vai durar, para que eu possa me programar.

— Um mês dá tranquilo — e explicitou o cronograma como se recitasse uma Ave Maria.

— Vamos precisar sair do quarto?

— Não, imagina, não precisa. Pode continuar a vida normal.

E assim começou a obra do banheiro. No primeiro dia, a banheira aterrissou sobre a cama, de onde nunca mais decolou. No segundo, ele e os ajudantes já deixavam as roupas de trabalho penduradas no cabide. Ao final da primeira semana, não havia nenhuma camiseta, calça ou vestido de dentro do armário que não estivesse coberto por uma larga camada de pó. Para que eu não entrasse muito para espiar o andamento da obra, passaram a trancar-se à chave por dentro.

— Por que estão trancados? — perguntava eu.

— Para que a porta não abra com o vento — dizia-me ele, sorriso de orelha a orelha.

— Ah tá.

Na segunda semana, descobri que Seu J só trabalhava de terça a quinta. Perguntei a razão, e a explicação foi muito racional:

— Na segunda tem rodízio. Não teria cabimento eu vir lá de Francisco Morato depois das dez e ter de sair um tempão antes das cinco.

— Mas o senhor nunca chega antes das 11h…. E sempre vai embora antes das cinco.

— Então, pra você ver como o trânsito é ruim. Imagina com rodízio…

— E na sexta, por que não?

— Não gosto de trabalhar na sexta, nunca gostei. Por isso não sirvo pra ser empregado.

Rendi-me à lógica esmagadora.

Ao final do prazo, perguntei:

— Mas quanto tempo vai demorar ainda?

— A senhora não pode ser impaciente. Cada obra tem o tempo dela. A gente precisa deixar secar cada coisa.

— Mas eu perguntei ao senhor quanto tempo levava…

— Pois não é que eu também fiquei surpreso? Choveu muito, por isso demorou a secar.

— Mas faz mais de mês que não chove em São Paulo, os reservatórios de água estão baixando, a qualidade do ar está péssima…

— Sério? Rapaz, não ouvi nada sobre isso!

Quando completou mês e meio de obra, um estouro anunciou o curto circuito. A obra era de encanamento.

— O que aconteceu? — perguntei pela manhã.

— Pois não é que não sei? Eita trem mais estranho…

— Acho que deve ter sido naquela hora que o senhor puxou eletricidade direto da caixa para aquela máquina barulhenta, aquela que provocou um protesto do condomínio.

— Imagina, não tem nada a ver. Aquela máquina é perfeitamente normal, dá para puxar tranquilo a energia da caixa. Talvez tenha sido quando a senhora usou o secador de cabelo.

— Mas faz sete anos, desde que eu vim morar aqui, que eu uso o secador de cabelo. Mas a sua máquina foi a primeira vez.

— Ah, mas é assim mesmo. Sete anos já é bastante tempo, uma hora a coisa dá problema.

— Não é melhor chamar um eletricista?

— Eu sou eletricista de formação. Faço encanamento porque as pessoas pedem, mas o que eu entendo mesmo é de eletricidade.

— Fiquei muito mais tranquila agora.

— Que bom, fico feliz.

Ele passou o dia mexendo aqui e ali, tirando lâmpada, testando fio. De vez em quando pegava um pedaço de bolo de chocolate, já bem de casa, e ficava matutando, o olhar preso no horizonte, embora não exista isso em São Paulo. No meio da tarde reclamou da qualidade da bergamota (mexerica, para paulistas; tangerina, para cariocas). Expliquei que não tinha achado a que ele gostava, mas que procuraria mais. A noite chegou, e a casa começou a ficar escura.

— O senhor já conseguiu descobrir o que aconteceu? – perguntei de novo.

— Não tenho a menor ideia.

— Mas o senhor não é eletricista?

— Sou, mas tem coisa que acontece e a gente não sabe explicar. A senhora não lembra do ET de Varginha?

Dois meses no calendário. Chamei-o para uma D.R. na mesa da cozinha.

— Seu J, a gente precisa discutir a relação.

— Claro — disse ele. Posso pegar uma banana?

— Sim, sim. Mas, seu J, é o seguinte. Eu moro aqui e também trabalho aqui. Tudo o que eu faço é aqui dentro. E, o senhor sabe, eu ganho a vida escrevendo. Sem contar que estou com rinite alérgica há dois meses! Eu gosto do senhor, gosto do C e do T, sei que são gente boa, fiz até feijão pra eles, o senhor lembra?

— Ah, eles gostaram muito. Quando não tiver mais inspiração pra escrever, a senhora pode começar a cozinhar pra fora.

— Boa ideia, seu J, mas o que eu quero dizer ao senhor é que está muito difícil de escrever e todo o resto com a casa em obra há dois meses! Eu não tenho quarto, eu não tenho escritório, eu não tenho roupa limpa, às vezes eu não tenho nem luz! O senhor precisa botar um fim nisso. Não dá mais pra continuarmos assim. Seu J, eu não aguento mais! — terminei o ponto de exclamação num meio soluço patético.

— Você sabe que eu também escrevo?

— Escreve?

— Já tenho mais de 400 poesias.

— Verdade?

— Eu mexia com arte lá na Paraíba. Aí vim pra São Paulo, casei, vieram os filhos e tive de fazer obra. Mas hoje mesmo me inspirei e escrevi mais uma.

— Que bacana, seu J.

— E já fui Cristo, também, na Paixão de Cristo.

— Nossa, seu J, mas que interessante, um Cristo aqui na minha casa. Um privilégio, mesmo.

— Quer ouvir minha poesia preferida?

— Quero, claro.

E declamou “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos.

— Acostuma-te à lama que te espera! O homem que, nesta terra miserável, mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera…

E sacudia a banana pela metade, quase em êxtase na minha cozinha amarela.

Senti-me vil. Que importância tinha uma reles obra diante dessa cena? Como pude eu me apequenar tanto ao comezinho da vida a ponto de choramingar por toneladas de pó, um banheiro perdido, eletricidade?!

Juntei-me a ele, alteando a voz e subindo numa das cadeira ao redor da mesa.

— Toma um fósforo, acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro.

A mão que afaga é a mesma que apedreja…

No dia seguinte, Seu J não apareceu para trabalhar. Ligou por volta de cinco da tarde.

—Tive um problema… Tô fazendo uma outra obra na Paulista pra uma mulher bem nervosa e ela me obrigou a ficar aqui. Mas, amanhã, oito da matina, eu tô aí….

A manhã chegou. São 10h neste momento. Toca o telefone. Eu sei que é ele. Eu sei!

Pelo menos aqui eu posso botar um ponto final.

Doutor Advogado e Doutor Médico: até quando?

Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?

Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como a língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes do nome de um médico ou de um advogado.

Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.

Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”.

Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário, na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.
Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.

Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora, intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi este:

– E como os fregueses o chamam?

– Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.

– O senhor chama eles de doutor?

– Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor….

– É esse o segredo do serviço?

– Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.

A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.

Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.

Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?

Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à sua própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa tese estaria num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os médicos em décadas posteriores.

Há, porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D. Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.

Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto do Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a tudo o que veio depois?

O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial, permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a atualidade do “doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade brasileira mudou bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.

É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no qual o título era uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no amplo sentido do termo.

No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título de “doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade patologizada, na qual as pessoas se definem em grande parte por seu diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo, hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo modo, numa época histórica em que juventude e potência se tornaram valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das intervenções cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a defender que a velhice é uma “doença” que poderá ser eliminada com o avanço tecnológico.

O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor, delegado têm cada um suas causas e particularidades na história das mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado, juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos. Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros. Não apenas como representantes de um poder que pertence à instituição e não a eles, mas que a transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.

Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor de uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor, juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto de intervenção.

Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor” permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de classe. Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos mais ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente de defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de desamparo se estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida brasileira.

Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério….” Não conheço em profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.

É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu respeito.

Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo e da produção de conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de professor.

Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral, nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza, os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade da sociedade brasileira.

Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.

(Publicado na Revista Época em 10/09/2012)

 

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