Três histórias reais e uma despedida

Depois de 233 segundas-feiras, minha última coluna

Ele subia a rua em passos descalços, a sujeira da cidade tinha se plantado no solo dos seus pés e criado raízes escuras. A calça pertencia a um corpo maior, a camisa a braços mais curtos. A barba e o cabelo eram seus e eram livres. Ele subia a rua, mas seu rosto me dizia que poderia estar descendo. Não parecia importante para onde estava indo. O importante era o que segurava com firmeza entre as mãos encardidas: uma embalagem amassada de alumínio com arroz. Talvez tivesse mais do que arroz, mas no ângulo de onde eu o observava não podia ter certeza. Eu me perguntava se ele procurava um lugar para comer seu almoço tardio quando, de repente, ele freou os pés. Vi seu olhar se habitar em uma face que se tornava outra. Era um homem, agora, parado no meio da calçada, subitamente presente. Perplexa com a repentina mudança, segui o seu olhar.

Diante dele, uma moça bonita saía de uma agência bancária com uma amiga. Era para ela que ele olhava. A beleza dela o havia despertado. Estacionado no meio da calçada, ele não era apenas um homem, mas um homem tocado por um encantamento. E talvez não tantas mulheres assim tenham recebido alguma vez um olhar como aquele. Seu corpo fez então pequenos movimentos hesitantes, o que ele iria fazer?

Só existia o tempo de uma respiração antes de ela passar por ele sem vê-lo. Ele estendeu os braços e ofereceu sua pobre marmita.

Nenhum traço de vulgaridade, nada no seu gesto era barato. Era apenas tudo o que ele tinha. Pude ouvir a sua voz: “Você quer?”.

Meio assustada, meio constrangida, ela disse que não, obrigada, e saiu dando risadinhas com a amiga.

Ele apagou o olhar e começou a descer a rua, sem lembrar que antes estava subindo.

Tudo isso aconteceu em um minuto. Um minuto de São Paulo. Era início da tarde da quinta-feira passada, na rua Teodoro Sampaio, entre a Lisboa e a João Moura. Ao espiar seus passos pensei que alguém que cruzasse com ele, se o visse, veria apenas o que não era dele. As calças, a camisa, a sujeira. Sem saber que um minuto atrás ele havia empreendido um gesto desmedido: tinha oferecido tudo o que possuía e sido recusado.

Quis compartilhar esse minuto, transformá-lo em palavra, mesmo que a palavra jamais dê conta do movimento da vida. E com essa pequena história real me despedir desta coluna. Tem sido dias de muitos acontecimentos, às vezes de grandes tragédias, para onde se olha tudo parece grandioso. São tempos em que os fatos reivindicam o adjetivo de “histórico” antes de o dia acabar. Quis encerrar minha trajetória de mais de quatro anos neste espaço com um desacontecimento, a delicadeza mesmo nas horas brutas.

________________________________________

Na semana de 30 de setembro a 5 de outubro, indígenas de diferentes povos e regiões do país planejam se reunir em Brasília para uma mobilização em defesa da Constituição. Escutar ou não o que têm a dizer definirá uma ideia de Brasil. Hoje, a bancada ruralista é a mais influente do Congresso Nacional. Suprapartidária, representa não a massa de agricultores, mas os grandes latifundiários. Se corresponde a uma minoria no conjunto da população, seu poder no Congresso é enorme. Um dos principais focos de sua atuação é avançar sobre as terras públicas, fazendo com que se tornem disponíveis para ganhos privados. Para isso, mira nas terras públicas destinadas aos povos indígenas, cujo direito originário a essas terras é reconhecido e assegurado pela Constituição de 1988. E trabalha para difundir entre a população três máximas: 1) a de que é necessário disponibilizar mais terras para a agricultura se o Brasil quiser se desenvolver; 2) a de que os índios têm terra demais e são um entrave ao desenvolvimento; 3) a de que só é um bom brasileiro aquele que “produz” – e produz em um modelo determinado, que limita a terra à condição de mercadoria.

Nenhuma dessas máximas se sustenta, mas seus defensores contam com a desconfiança de parte da população com os indígenas para transformá-las em “verdades” repetidas sem questionamento (leia aqui). Desconfiança que permitiu os genocídios que mancharam de sangue os últimos séculos e chegam aos nossos dias (leia aqui). Uma pesquisa da Embrapa já mostrou, para citar apenas um exemplo, que há 58,6 milhões de hectares só de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total de terras indígenas. Hoje há tecnologia para aumentar a produtividade dessas áreas – e a melhoria da produtividade é o que separa os setores competentes do agronegócio dos incompetentes, já que a terra não é ilimitada. Acreditar que há muita terra nas mãos dos índios, que têm sido os grandes protetores da biodiversidade, é quase uma afronta à inteligência da população. Basta verificar a quantidade de terras nas mãos privadas de alguns membros da bancada ruralista e fazer as contas.

É bastante interessante que o direito à terra seja tão vorazmente defendido quando se trata da posse privada, mas, no caso dos povos indígenas, esse mesmo direito seja constantemente contestado, ainda que eles estivessem aqui muito antes da chegada do primeiro europeu. O ponto é que os povos indígenas têm direito ao usufruto dos recursos de terras públicas – e o que os ruralistas querem garantir é a posse privada dessas mesmas terras e recursos. Assim, elas deixariam de ser públicas, destinadas à posse permanente dos indígenas, para a reprodução do seu modo de vida – ou, as muitas ainda não demarcadas, jamais voltariam a ser públicas para o usufruto coletivo dos indígenas.

Para alcançar esse objetivo, é preciso esvaziar o artigo 231 da Constituição de 1988, que assegura aos povos indígenas suas terras originárias. No parágrafo sexto desse artigo, está previsto que apenas em condições excepcionais, “ressalvado relevante interesse público da União”, esse direito pode ser afetado. Cabe a uma lei complementar definir em quais casos excepcionais isso pode acontecer – ou o que é “relevante interesse público da União”. A proposta que tramita no Congresso é o Projeto de Lei Complementar 227/2012. Nele, os casos em que o interesse “público” se sobrepõe aos direitos dos povos indígenas são tantos (mineração, assentamentos agrários, faixas de fronteiras com núcleos populacionais, posses anteriores à Constituição de 1988, entre outros), que, na prática, as Terras Indígenas não seriam mais dos povos indígenas. E o que era regra vira exceção, violando a carta constitucional.

Para complementar o golpe contra os direitos dos povos indígenas, está em curso, entre outros projetos, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/2000. Ela retira do Executivo a prerrogativa de demarcar as Terras Indígenas e a transfere para o Congresso. A comissão que vai analisá-la já é dominada pela bancada ruralista. Somados, o PLP 227 e a PEC 215 vão, na prática, tornar remota a possibilidade de demarcar e homologar Terras Indígenas ainda não amparadas pelo Estado e, ao mesmo tempo, desamparar as já asseguradas. Completa-se o esquema perfeito para que as terras públicas de usufruto dos povos indígenas tornem-se disponíveis para ganhos privados.

É para barrar essa versão mais sofisticada de genocídio que lideranças de diferentes povos indígenas estarão em Brasília no aniversário de 25 anos da Constituição de 1988. Cada povo representa uma visão de mundo, uma cosmogonia particular, uma forma de se relacionar com a terra e com os recursos naturais. Um jeito diverso de ser brasileiro que, junto com o jeito de ser brasileiro dos ribeirinhos e dos quilombolas, permitiu a preservação do que ainda existe de floresta em pé. Se uma parte significativa da população brasileira continuar acreditando que nada disso lhe diz respeito e que a bancada ruralista a representa, os povos indígenas estarão sozinhos.

É uma escolha. Mas é importante que essa escolha seja consciente, porque é um projeto de nação e de futuro que está em jogo.

É também com esse questionamento que encerro esta coluna. Busquei ocupar este espaço com o sentido de iluminar os cantos escuros dos acontecimentos e, principalmente, para acrescentar dúvidas novas ao cotidiano de quem me lê. Acredito que mais importante do que concordar ou discordar é estar aberto para qualificar as questões de nosso tempo histórico e, com elas, alargar o mundo de dentro e o de fora.

________________________________________

Meus tios buscavam as horas a cavalo, como contei uma vez aqui. Na casa da zona rural era missão dos mais velhos dar corda no relógio de parede. Mas acontecia de alguém esquecer sua tarefa e, no espaço de uma batida, o som da passagem da vida cessava. De fato não fazia falta porque a natureza marcava o tempo e eles dela eram parte. Mas a ausência do tique-taque com os dias ia se tornando uma presença de mau augúrio, porque vida vivida é vida marcada. Antes que o mundo se desarranjasse, meu avô despachava um filho para a cidade. Dava a ele seu relógio de bolso, sempre parado até essas emergências temporais. Um dos meus tios encilhava o cavalo, só usado em ocasiões de importância, e lá se ia galopando por 13 quilômetros no encalço das horas. Sabia onde encontrá-las. Na praça central de Ijuí, de um lado postava-se a igreja católica, de outro a evangélica, a dividir almas e poderes. Mas só a evangélica ostentava na torre um relógio que dominava a cidade. Meu tio dava as costas para a sua fé, com a certeza de que o padre o perdoaria, e com as mãos desajeitadas pela enxada guardava as horas no relógio de bolso. Galopava de volta com o tempo enfiado nas calças. E o coração da casa voltava a bater lembrando que a vida acaba.

Esse relógio seguiu tiquetaqueando enquanto as mortes se sucediam, assim como as estações, e a casa lentamente foi virando terra. Chegou a minha vez de buscar o tempo para colocá-lo na minha parede, em cima da escrivaninha xerife. Não mais a cavalo, agora são mil quilômetros, mas de avião, um carro, talvez um ônibus. Tentarei não me esquecer de dar corda.

Compartilho essa memória pessoal para dizer que o tempo que passei aqui com vocês me ajudou a inventar uma vida com sentido. E agradeço – profundamente – pelo tempo que cada um me deu ao ler esta coluna, porque sei o quanto esse gesto é largo. Escolhi me despedir das segundas-feiras. E buscar novos dias.

(Publicado na Revista Época em 23/09/2013)

 

Vizinho indiscreto

Um fotógrafo tem o direito de se posicionar diante da janela, com uma lente potente, para registrar cenas privadas e depois exibi-las?

Desde que, anos atrás, ouvi as primeiras notícias de uma nova tendência no mundo da fotografia, a de registrar a vida privada dos vizinhos, mudei meus hábitos dentro de casa. Passo bastante tempo entre paredes íntimas, porque trabalho em casa, e sempre gostei das cortinas abertas, a luz entrando, o máximo bem mínimo de amplitude numa cidade como São Paulo, com prédios, janelas e outros mundos dentro delas por todos os lados. Mas, com medo de uma lente indiscreta, passei a fechar as cortinas de forma que nenhum olhar desconhecido, ninguém que não tenha batido na minha porta pedindo licença para entrar, possa me alcançar. A possibilidade de me descobrir numa exposição de fotos ou num site da internet, mesmo que meu rosto não possa ser reconhecido, alterou a minha vida mesmo antes de se concretizar.

Em agosto, a justiça americana deu uma decisão favorável ao fotógrafo Arne Svenson, que havia sido processado por dois de seus vizinhos depois de expor retratos feitos de sua janela. Com uma lente de grande alcance, o olhar de Svenson penetrou para além dos vidros de um prédio no bairro de Tribeca, em Nova York. A série de retratos foi exibida na exposição intitulada The Neighbors (Os Vizinhos). Svenson teve o cuidado de não mostrar o rosto dos fotografados, mas as pessoas se reconheceram. Uma delas sentiu-se desconfortável ao identificar objetos do quarto da filha. A simples ideia de que havia alguém espionando a sua vida privada provocou mal-estar. As fotos foram oferecidas pela galeria por valores que variavam de US$ 6.200 a US$ 8.400.

A exposição provocou muita discussão e rendeu vários artigos na imprensa americana: o que fazer quando a liberdade de expressão de um invade a privacidade de outro? Na sentença favorável ao fotógrafo, a juíza diz: “Arte é liberdade de expressão e, portanto, garantida pela Primeira Emenda (da Constituição)”. Mas será que a questão se resume a saber qual dos conceitos – liberdade de expressão ou privacidade – se impõe sobre o outro?

Arne Svenson afirmou que o veredicto foi “uma grande vitória para os direitos de todos os artistas”. E reafirmou sua intenção ao fotografar os vizinhos: “Eu acredito que aspectos inconscientes, não ensaiados da vida, são mais bonitos para fotografar, por serem mais abertos à interpretação, à narrativa”, disse ao jornal britânico The Guardian. “Um momento dramático tem o poder único da ação, mas os pequenos e conectados momentos são como marcamos nosso tempo na Terra.” E concluiu, lindamente: “Estou muito mais interessado em registrar a respiração entre as palavras do que as próprias palavras em si mesmas”.

No Brasil, Felipe Morozini fez 180 mil fotos de sua vizinhança nos últimos dez anos, da sacada de seu apartamento, localizado no 13o andar de um prédio do centro de São Paulo. Algumas fotos mostram pessoas nuas ou com roupas íntimas, em suas tarefas rotineiras. Morozini disse à Folha de S. Paulo: “Não me sinto desconfortável por mostrar essas pessoas. Não busco a falha do outro, mas a poesia”. No texto de apresentação da sua obra numa galeria, esse olhar que atravessa a janela dos vizinhos é apresentado de forma poética:

“É tudo verdade. Num prédio da Avenida São João, em São Paulo, um homem de corpo dourado e cabelos grisalhos todos os dias senta-se na varanda para olhar uma coleção de relógios. No outro prédio, todas as manhãs uma mulher bate bifes com um martelo de carne, no mesmo ritmo do sexo bruto que vive todas as noites. Um cachorro toma sol numa varanda cujo piso é trocado frequentemente: de ardósia para lajota para cimento. Um homem jovem numa janela segura uma câmera e diariamente invade em zoom a vida dos vizinhos, registrando esses hábitos e mazelas. Depois, analisa as imagens e acha pedaços de poesia inintencionais. Amplia então a fotografia de uma mulher nua, numa área de serviço cujas paredes são deliciosamente gastas pelo tempo. Ela segura um espelho, que reflete seu bico do seio. O acaso tem uma face erótica, revela a fotografia de Felipe Morozini. Que o artista tenha escolhido a luz, o dia em que roupas coloridas formavam uma curva na parede cinza, e tenha esperado o corpo da mulher repetir a linha escura vertical que centraliza a composição. Aceito. Mas não foi ele quem mirou o espelho para o mamilo no instante certo. Foi o acaso. Extrativismo estético autossustentável: o fotógrafo colhe migalhas do belo que existem naturalmente no mundo real”.

As fotos são de fato belas e emocionam. Dão transcendência à nossa rotina de minoridades. Nos enxergamos no pequeno gesto do outro, nos descobrimos próximos daquele que pensávamos desconhecer. Nossos passos claudicantes pela casa e pelos dias se revelam um balé poético. Tanto os retratos de Svenson quanto os de Morozini evocam as pinturas do artista americano Edward Hopper (1882-1967), com sua solidão pungente. Como alguém que gosta de fotografia e gosta de arte, o trabalho desses fotógrafos me dá muito prazer. Mas, como alguém que poderia estar no lugar do fotografado, me causa mal-estar. Como superar esse impasse?

Quando alguém confronta Svenson com a questão da moralidade na obra sobre seus vizinhos, ele costuma defender-se dizendo: “Eu não fotografo nada lascivo ou degradante. Não estou fotografando os moradores como indivíduos específicos, identificáveis, mas como representações da humanidade”. Acredito que ele acredita nisso. Porque é uma das verdades possíveis. Mas há outras.

Não é surpreendente que alguém que se reconheça nas fotos ou reconheça partes do seu corpo ou da sua casa seja incapaz de se ver como “uma representação da humanidade”. O complicador é que aquele que se reconhece só pode se reconhecer como um “indivíduo específico”. Nós, que nos reconhecemos nele, enxergamos apenas a “representação da humanidade”, mas ele, o humano singular, se vê primeiro como indivíduo. O complicador é que aqueles que ali representam a humanidade são também aqueles que vivem a sua vida singular. Essa é a força artística do retrato e também o seu dilema ético.

Quando Svenson diz que não fotografa nada lascivo ou degradante, ele também está assumindo, nas entrelinhas, que viu atos que interpretou como lascivos e degradantes e escolheu não fotografá-los ou, pelo menos, não exibi-los. Não é um enorme poder, o de escolher qual parte da vida íntima de um outro pode ser mostrada, e isso sem que este outro saiba sequer que teve seu cotidiano documentado? Ou o enorme poder de espionar a vida dos outros, alcançando aquilo que o outro pensava proteger atrás da sua janela? Raramente um crime, com frequência um ridículo ou mesmo um desespero?

As fotografias dos vizinhos evocam questões fascinantes deste mundo novo, no qual já se anunciou o fim da privacidade. Ainda que com objetivos e sentidos bem diversos, os retratos da vida íntima de homens e mulheres anônimos estão ligados tanto à espionagem que Obama fez de Dilma quanto às gravações e fotografias que pessoas comuns fazem o tempo todo dos flagrantes de outros, para postar em seguida no YouTube e no Instagram – fronteiras e pudores dissolvidos pela tecnologia. Estariam ligados também ao exibicionismo corrente, expressado pelo ato já corriqueiro de postar as melhores imagens de si mesmo, hábito pelo qual pessoas comuns se forjam celebridades na janela do Facebook?

Talvez a resistência a fotos como as de Svenson, Morozini e outros possa também ser compreendida pelo fato de constituírem uma traição à imagem controlada que tentamos desesperadamente difundir nas redes sociais como a nossa imagem “verdadeira”. Essas fotos roubadas, feitas à revelia, escapam do que se poderia chamar de “controle de qualidade da vida exibida”. Revelam às vezes o tédio e não a felicidade, o ridículo e não a glória, as olheiras e não os olhos maquiados, nosso cotidiano sem Photoshop. A solidão de quem tem centenas, milhares de amigos no Facebook.

Há aqui algo interessante, que aparece tanto na escolha dos fotógrafos quanto na resistência de alguns fotografados: a ideia, bem contemporânea, de uma “verdade” na vida privada. Como se nossas evoluções na esfera pública fossem meras “máscaras sociais” – e estas máscaras sociais fossem decodificadas como “mentiras”. Como se existisse um “eu verdadeiro”, despido de máscaras, que se revela em nosso último ou até mesmo único reduto: entre as paredes da casa. Mas não existe um “verdadeiro eu”, não existe um lugar “em que somos nós mesmos”. Somos todas as nossas máscaras e nossas verdades estão espalhadas. O fato de estarmos com remela nos olhos e com um pijama rasgado na bunda não nos torna mais “verdadeiros” do que de salto alto ou de terno, assim como a melancolia que escapa pelos nossos olhos ao mirarmos o vazio no sofá da sala não é mais ou menos verdadeira do que nossos gestos numa reunião de trabalho.

A vida privada tem sido confundida com “vida real”, o que explica a obsessão das pessoas ditas comuns com a privacidade das ditas celebridades. Assim como a obsessão dos fotógrafos pela vida privada das celebridades – e mais recentemente pela vida privada dos anônimos. Poucos parecem se importar com o fato de a vida privada das celebridades ser constantemente invadida por paparazzi, exceto algumas celebridades. Como se, pelo fato de serem pessoas “públicas”, que ganham a vida por serem públicas, não pudessem ter uma vida privada, longe dos olhos de todos os outros. Mais do que isso: o público que as torna celebridades teria direito de acesso ao “verdadeiro eu” das pessoas que venera, àquela que seria a sua “verdade verdadeira” e que só poderia ser descoberta com flagrantes à sua intimidade.

Quando aparece um outro tipo de paparazzo, o que espiona a vida das pessoas comuns, para muitos é uma violência bem mais óbvia. Por quê? Ou qual é a diferença para as fotos íntimas de celebridades? A suposta verdade dos comuns não interessa a ninguém? Não é o que os preços dessas fotos nas galerias têm mostrado. Ou por que seriam imagens de ninguém em particular ou “representações da humanidade”, como disse o fotógrafo Arne Svenson? Mas se o problema está no fato de as pessoas se reconhecerem na sua singularidade, como alguém com nome, sobrenome, rosto e vida? Se o problema começa na singularização daquele que é, ao mesmo tempo, “representação da humanidade” e algo que ele chama de “si mesmo”? E, nesta singularização, preferia não ser fotografado secretamente de cueca na frente do espelho?

É mais complicado do que parece. O ato de fotografar pode ser julgado em si ou apenas no sentido atribuído a essa fotografia? A mesma fotografia que muitos consideram poética numa galeria de arte poderia ser decodificada como ridícula e virar motivo de escracho se jogada em determinados sites da internet. Ou, usando um exemplo mais explícito, a foto do bebê no banho, que enternece os pais no álbum de família, pode ser erótica para um pedófilo. Se o sentido só pode ser dado depois, a fotografia dos vizinhos nos aproxima e nos conecta na solidão das metrópoles, ao dizer de todos e não apenas de um. Já as fotos das celebridades, mesmo – e talvez principalmente – quando são anunciadas como flagrantes de cenas que as aproximam das pessoas comuns, o que fazem é marcar a diferença. Ambos estão fotografando cenas privadas sem autorização, mas a oposição de sentidos tornaria aquele que expõe a intimidade de celebridades para o gozo do público um invasor e o que expõe anônimos não?

As perdas e ganhos se embaralham. Quem ganha com os retratos da vida privada? O fotógrafo, ao transformar cenas íntimas em arte que fala dessa época histórica. Nós, coletivamente, ao ganharmos um retrato de nossa humanidade, que nos faz transcender – e que transcenderá nossa vida ao alcançar as gerações futuras. Quem perde? Nós, também, individualmente, porque aquele que virou representação é também aquele que vive e que talvez não quisesse ser exposto abrindo a geladeira descabelado para pegar o leite pela manhã. E nós, coletivamente, na medida em que a única alternativa para não ter a intimidade exposta seja cobrir com cortinas nossas escassas janelas, por onde já entra muito menos luz do que gostaríamos.

De novo, como superar esse impasse? Ou o que é mais importante? E quem decide?

Quem observa com atenção a cidade, percebe que mesmo moradores de rua constroem paredes e portas invisíveis embaixo de viadutos ou mesmo nas esquinas. Lá dentro, evolucionam por peças sem paredes como se não fossem vistos por todos. Muitas vezes, diante dessas cenas, tão profundamente humanas, desviei os olhos, em sinal de respeito. Acho que nos humanizamos quando conseguimos enxergar – e respeitar – mesmo as paredes invisíveis. Me parece importante bater, mesmo em portas subjetivas, para que o outro tenha a chance de dar ou não sua permissão. Não é porque não enxergamos, que as portas e as paredes não existem. E não é porque a tecnologia permite, que podemos entrar na casa das pessoas, ainda que em nome da arte – ou do jornalismo – sem antes pedir licença. Mesmo que essa casa seja um amontoado de trapos embaixo de uma ponte.

Poder fazer/alcançar/fotografar/expor, graças à tecnologia, significa auto-autorização para fazer/alcançar/fotografar/expor?

Meu sentimento pessoal com relação à possibilidade de ser fotografada por um vizinho indiscreto é um misto de estranheza e pânico. Para mim, a casa me dá algo fundamental: algumas horas despida não de roupas, mas do olhar do outro. A possibilidade dessa nudez, que vai muito além das peças de vestuário, é importante para a minha sanidade. É o que me dá, às vezes, o espaço/tempo necessário para remendar a minha pele e enfrentar o mundo lá fora. Não é para todos que quero mostrar os meus rombos, assim como não é para todos que quero mostrar meus livros mais queridos ou as lembranças que escolhi para botar sobre a minha escrivaninha. E, mesmo que só eu reconhecesse o meu gesto numa galeria, me sentiria violada e exposta. E talvez começasse a ficar paranoica com esse vizinho que usa sua câmera fotográfica para me espionar e passasse a encenar a minha vida. Ou, como já passei a fazer, fechar as cortinas da peça da casa onde estou. Eu, que gosto tanto de luz.

Meu sentimento pessoal deve ser respeitado ou há algo, que a juíza americana chamou de liberdade de expressão, que deve se sobrepor a ele? Não sei. Será que a liberdade de expressão do fotógrafo, ao registrar secretamente a vida de alguém, não está cerceando a liberdade de expressão dessa pessoa dentro de sua casa? Possivelmente. E o que difere, afinal, voyeurismo de arte? O destino que se dá ao olhar? Ou o sentido?

Alguém tentar entrar fisicamente na casa de um outro sem permissão é ilegal. Mas, pelo menos na decisão judicial americana, a invasão de um olhar não autorizado, que capta uma cena privada e a torna pública, é legal. Mas, ainda que seja legal, é ética?

Tenho dúvidas. O que me parece claro é que essa discussão vai muito além da tensão entre liberdade de expressão e privacidade, como foi colocada. E precisamos discuti-la. Porque é fascinante, mas também porque pode haver um fotógrafo nesse exato momento, empunhando uma teleobjetiva na janela do prédio em frente, sinceramente disposto a fazer poesia da nossa vida privada. Mesmo que, diferentemente do personagem de Janela indiscreta, do clássico de Alfred Hitchcock, nossa maior subversão seja comer leite condensado de calcinha.

(Publicado na Revista Época em 16/09/2013)

 

Como o Super-Homem vai trocar o collant?

A etiqueta solidária das festas infantis de hoje nos carrega para aventuras imprevisíveis

O convite do aniversário de João Bolota trazia a seguinte observação: “Não precisa comprar presente. Se quiser, pode me trazer algum brinquedo seu ou fazer um desenho pra mim que já ficarei contente”. Muitas das minhas amigas com filhos pequenos declararam guerra contra o consumismo infantil. É uma tendência entre pais preocupados em não criar shopping-dependentes, que demandam cada vez mais mercadorias antes mesmo de perder os dentes de leite, e estimular uma relação solidária tanto com os amigos quanto com o mundo ao redor e desde cedo ampliado. Já levei sabão em pó em vez de presente, fraldas e leite, que depois foram doados para espaços comunitários devidamente visitados e escolhidos pelos pais dos aniversariantes. Mas João Bolota, assim conhecido porque antes de ser João já era uma “bolota” na barriga da sua mãe, pedia algo ligeiramente diferente em seu aniversário de 3 anos. Acabou nos levando a alguns labirintos internos e externos. E a um Super-Homem preso em seu collant azul.

De repente, lá estávamos nós, dois adultos, em estado de semipânico diante de nossos brinquedos. Acho que ele iria adorar o seu King Kong, sugeri. “O quê? Mas foi você que me deu…”, disse ele. E, em seguida desferiu um golpe baixo: “E o seu Alien? O tema da festa é monstros…” Meu Alien? Meu Alien? Você está se referindo ao MEU Alien? “O seu Harry Potter, então?”

Ele continuava a série de golpes abaixo da linha da cintura. Mas eu também podia ser má: o seu Dodô! “Mas os (marinheiros) europeus comeram todos os (pássaros) dodôs no século 17. O meu é o último!”, disse ele, maduro. Pois então. É além de tudo educativo. A Paula (a mãe do João Bolota) vai adorar explicar toda a destruição, genocídios, etnocídios e dodocídios envolvidos no processo colonial. É perfeito! Ele não achava. Aos 44 anos, estava agarrado ao dodô. “E o seu tiranossauro rex?” Meu olhar cheio de dentes o desestimulou a continuar. Cinco minutos mais tarde, estávamos um diante do outro no meio da sala de casa, em posição de duelo, eu com uma miniatura do Freud na mão, ele brandindo o menir do Obelix.

Caímos em nós. E no ridículo. Havíamos falhado miseravelmente no quesito desapego. Não estávamos preparados para nos descolarmos da infância.

Envergonhados, mas bem menos do que deveríamos, partimos em busca de alternativas que não traíssem a proposta dos pais do João Bolota, que era a de estimular a troca, a doação e o desapego. Em nosso atual estágio, estávamos de fato em busca do desapego alheio, o que nos levou a estacionar nossos pés diante da banca da feira especializada em brinquedos usados. “Não é usado, é vintage”, ele disse, me corrigindo todo animado. Sim, sim, muito mais chique. A verdade era que sabíamos muito bem que ali não havia nada de desapego. Por trás daqueles brinquedos de outros tempos em geral há um adulto em crise financeira ou um adulto que já não vê mais sentido em um monstrinho verde, agora reduzido à mera mercadoria, o que em qualquer caso é um pouco triste.

Acompanhei de perto esse percurso. Dois anos atrás, um amigo desempregado precisou vender suas recordações da infância, as que tinha guardado para um filho que não veio, para um desses adultos enigmáticos, mezzo encantadores, mezzo perversos, que compram o brinquedo dos outros para revender. Guardou para si apenas um helicóptero, bastante valorizado nesse mercado, que tinha um defeito numa hélice. O comprador sugeriu que trouxesse o helicóptero que ele o consertaria, mas meu amigo interpretou a oferta como um plano maligno para tomar-lhe o brinquedo. Fantasiou que o comprador tinha sido uma daquelas crianças que querem para si todos os brinquedos do mundo e não os emprestam para ninguém. Agarrou-se ao helicóptero como se suas memórias mais queridas morassem na minúscula cabine, reconhecendo-se mais quebrado que a hélice.

Há talvez uma certa crueldade envolvida no ato de comprar/vender restos da infância. Aquele que coleciona clássicos coloca na estante também o cadáver de uma criança desconhecida. Às vezes ele mesmo. E talvez nós, como ele, estivéssemos ali, naquela banca ao mesmo tempo colorida e desbotada, em busca de algo que já não pode ser recuperado.

O dono da banca comia uma lasanha. Quanto é aquele He-Man montado num tigre vermelho?, perguntei. O homem pareceu irritado por ter sido instado a parar de mastigar. “Uns 60 pelo boneco, uns 50 pelo tigre”, respondeu, num grunhido. Ficamos em dúvida sobre o potencial do presente. Para quem não havia sido criança nos anos 80, He-Man seria apenas um loirão de sunga. Vimos, então, um Moai, aquelas estátuas gigantescas e misteriosas da Ilha de Páscoa. Esta tinha 5 centímetros e era de plástico bege. Com uma bateria, que não havia ali, o Moai falava. Nossa empolgação atingiu 10 graus na escala Richter. Finalmente descobriríamos o que um Moai poderia dizer sobre o mundo, sobre a vida, sobre sua própria existência. Basicamente, um dos mistérios da humanidade estava prestes a se revelar diante de nós e do modo mais improvável, como num daqueles filmes em que tudo começa numa lojinha de quinquilharias. Se o homem da lasanha fosse um chinês, seria um filme.

Perguntamos ao dono da banca, que agora tinha um pedaço de queijo pronto para saltar do seu queixo sobre uma Barbie Malibu: o que o Moai diz? E esperamos, de mãos dadas e se apertando, a respiração suspensa. “Chiniashitsu”, eu ouvi. Já ele ouviu algo terminado em “ão”. Discutimos um pouco, aos cochichos. Ele achava que eu tinha ouvido o nome de um escritor de autoajuda, o que seria trágico para a humanidade, depois de tantos séculos. Eu dizia que com certeza não era nada com “ão”. Decidimos esclarecer. Ao olharmos para o homem, percebemos que ele continuava comendo a lasanha, mas havia uns caninos novos na sua boca. Desistimos do Moai. Jamais saberíamos o que ele tinha a dizer. Talvez fosse melhor assim.

Então o vimos. E como não o vimos antes? Era o Super-Homem. Não o remake, mas uma versão antiga. Estava dentro da caixa, tinha até manual. E o fascinante dessa versão era que ela oferecia a possibilidade da transformação. Em geral, os heróis só são oferecidos na versão herói. Estão lá, com suas máscaras e seus collants brilhantes. Não tem vida privada, não ficam nus, não relaxam. Aquele ali, não. Ele vinha vestido com sua roupa de salvar mundos, mas havia ao lado dele uma cabine telefônica na qual ele podia se trocar e virar Clark Kent. Nunca entendi como ele conseguia fazer isso dentro de uma cabine telefônica, com aquelas botonas e a sunga vermelha por cima de tudo, mas essa é uma questão para outro momento. Nas costas da caixa a metamorfose estava bem explicada: em caso de necessidade, ele rapidamente passava do collant azul do Super-Homem para o terninho preto do Clark Kent. Para isso, bastava um minuto dentro da cabine telefônica.

Há dois tipos de super-heróis de quadrinhos, criados no século 20, que conquistaram permanência no imaginário de gerações, em parte graças ao cinema. Há os humanos, como o Homem-Aranha e o Batman, cuja essência seria dolorosamente humana e dotada de uma trajetória de perdas, em geral precoces, já que tanto Peter Parker quanto Bruce Wayne são órfãos. E há os deuses, como Thor, e os alienígenas, como o Super-Homem, que precisam se disfarçar (ou serem condenados a uma identidade frágil) para virarem humanos, já que sua essência é de super – mais que humano.

A máscara do Super-Homem é o Clark Kent. E Clark Kent ele se torna ao colocar óculos. Em tempos pré-cirurgia de correção de miopia, os óculos apontavam uma deficiência bem humana. Os óculos eram a fragilidade que mascarava o super em humano. Entre os vários diálogos antológicos do diretor Quentin Tarantino, o personagem Bill (David Carradine), em Kill Bill 2, diz à Noiva (Uma Thurman): “O Super-Homem não se transformou em Super-Homem. O Super-Homem nasceu Super-Homem. Quando ele acorda de manhã, ele é o Super-Homem. Seu alter ego é Clark Kent. (…) O que Kent usa – os óculos, o terno – é o uniforme do Super-Homem para se misturar a nós. Clark Kent é como o Super-Homem nos vê. E quais são as características de Clark Kent? Ele é fraco, ele é inseguro, ele é um covarde. Clark Kent é a crítica do Super-Homem a toda a raça humana”.

Entramos numa espécie de transe nerd. Daríamos um Super-Homem que virava Clark Kent para o João Bolota. Com a caixa finalmente em nossas mãos, começamos a examinar o presente, muito excitados. Só para descobrir que nossa visão de raio-x tinha falhado: não havia terninho nem óculos. Só mesmo a cabine telefônica. É claro que isso não fora mencionado pelo lasanha-man. Queríamos voar até a banca, mas tivemos de nos virar e retroceder sobre nossos pés mortais. “Não tem terninho nem óculos?”, perguntei, com o que pensei ser uma voz poderosa. “Não”, disse ele, sucinto. “Não?” Não. Pulverizamos lasanha-man com nosso superolhar, mas lasanha-man parece não ter percebido, ocupado em dar aquela limpadinha básica com a língua nos dentes. Caminhamos prostrados até a festa, destituídos de nossos superpoderes por um vilão de filme Spaghetti.

“É vintage”, disse à mãe do João Bolota, já antecipando uma justificativa sobre a ausência do terninho e dos óculos. “Sério? Que sensacional… Onde vocês acharam isso?”, disse ela, gentilíssima. Foi só depois de seis cachorros-quentes (sou uma cachorroquentólatra) que comecei a me deprimir com a situação do Super-Homem. Nenhum de nós dois tinha a coragem de encarar o João Bolota. Não que ele tivesse reparado, ocupado que estava em deslizar sobre a nossa cabeça numa espécie de tirolesa, já que a festa transcorria num buffet infantil com esportes de aventura. E quando ele quiser tirar o collant?, eu me preocupava. Comecei a imaginar o Super-Homem nu, trancado na cabine telefônica, sem coragem de vestir o collant azul brilhante mais uma vez para enfrentar o mundo lá fora. Eu me identificava com ele. Não sou super, mas muitas vezes estive nessa situação logo cedo de manhã. Sem contar que é de uma perversidade inominável condenar alguém, mesmo que um super-herói, a passar a vida de collant.

Demos ao João Bolota o pior presente do mundo: um super-herói sem humanidade. Se servir de atenuante, o que levou ao trágico desfecho foi uma sequência de eventos e relações bem humanas. Mas não sou muito favorável a atenuantes. Já estava pronta para interceptar Bolota com um rasante no teto, onde, juro, ele estava naquele momento, para dizer a ele: perdoe-nos, João Bolota, na próxima vez a gente faz um desenho. Então me lembrei. Há algo que podemos dar a ele. Nós podemos fabular. E dar um sentido novo a essa falta que possa transcender essa narrativa pateticamente real de perdas, enganos e lasanha fria. Algo sem preço.

Sabe, João Bolota, antes de você esse Super-Homem pertenceu a alguém que o amou. Mas que já não brincava mais com ele porque achava que, depois de crescido, não podia mais andar voando por aí de collant azul. Esquecido de como se brincava, um dia ele fazia uma ponte aérea, espremido na poltrona do meio da classe econômica. Espichou o pescoço e conseguiu ver uma nesga da asa do avião no céu, entre o banco da frente e a cabeçona do passageiro ao lado. Lembrou-se então de que um dia tinha voado como Super-Homem e sentiu uma dor aguda no peito. Pensou que estava enfartando, mas a dor desapareceu depois de um minuto e ninguém, nem mesmo a aeromoça que lhe oferecia uma batata de saquinho, notou que ele havia vivido uma quase morte.

Ao chegar em casa, depois de amargar duas horas no trânsito, ele resgatou seu boneco da parte de cima do armário embutido. Encontrou o Super-Homem agonizando, não por causa da criptonita, mas do mofo, entre edredons do inverno e uma bota que tinha perdido o salto. Decidiu que seu Super voaria com a capa de uma outra criança. Quando o sábado ainda não tinha amanhecido, ele se esgueirou pela feira e infiltrou o Super-Homem na banca de brinquedos, bem em cima, vistoso, entre o Forte-Apache e um carrossel de cavalos coloridos. (É por isso que lasanha-man apenas fingiu ser esperto. De fato, ele nem sabia de onde tinha aparecido aquele Super-Homem.)

Quando o verdadeiro companheiro do Super-Homem já ia se despedindo de seu velho amigo, temeroso de ser surpreendido nessa atividade subversiva, descobriu que, mesmo vestido, estava nu. O sol escalava o céu, afobado, e ele não queria ser visto pela multidão em sua monumental fragilidade. Foi nesse momento que ele pegou o terninho preto de dentro cabine telefônica e o vestiu às pressas. Em seguida, mascarou-se com os óculos.

Você se lembra, João Bolota, daquele homem de óculos e terno preto que parecia um jornalista na sua festa de aniversário? Havia vários jornalistas na sua festa de aniversário, porque seus pais são jornalistas, mas só um deles tinha a cara do Planeta Diário e de um namorado da Lois Lane. Foi bem rápido, não sei se você chegou a ver. Ele escondeu-se por um instante atrás do monstro de balões perto do bolo, apenas para ter certeza de que o seu Super ficaria bem. Ao avistar você, voando pelo teto, ele teve certeza de que tinha feito a coisa certa. E se foi. Eu ainda o vi sair, com um sorriso maroto na cara, ajeitando os óculos sobre o nariz vermelho.

É isso, João Bolota. Ele queria muito lhe dar o Super. Mas ainda precisava do homem.

(Publicado na Revista Época em 09/09/2013)

 

Página 1 de 212