Uma história pequena numa obra gigante

Amigos,

    A história de Belo Monte, uma história em construção, em todos os sentidos, ainda será contada em sua inteireza. Com a ajuda preciosa do meu companheiro de reportagem, o fotógrafo Lilo Clareto, tento contar pequenos capítulos dela, para ajudar nessa narrativa tão maior. Essa é a história de Otávio das Chagas. E também o olhar de um defensor público que desembarcou para encontrar uma população expulsa de suas casas sem nenhuma assistência jurídica. Como é enfrentar a ampla equipe de advogados de uma obra com custo previsto de R$ 28,9 bilhões sem sequer entender as letras? Como é ficar à margem de si mesmo, à deriva de todos os mundos que se conhece? Otávio e sua família nos contam, eles que leem a floresta, em toda a sua complexidade.

    A violência se dá de tantas maneiras nesse pequeno recorte, e se dá agora, neste momento.

     Leia na minha coluna do El País.

     O pescador sem rio e sem letras

 

A família, que tinha uma vida sustentável na ilha, foi jogada numa vida de miséria na periferia da cidade. / LILO CLARETO

Fotos: Lilo Clareto

 

     Otávio das Chagas tornou-se um não ser. A hidrelétrica de Belo Monte o reduziu a um pescador sem rio, um pescador que não pesca, um pescador sem remos e sem canoa. A ilha do amazônico Xingu, no Pará, onde cresceu, amou Maria e teve nove filhos não existe mais. Entre ele e o peixe não há mais nada.

    Ele manda trazer uma boroca (bolsa) onde guarda os papéis. Está numa casa na cidade de Altamira pagando aluguel, a família ao redor dele, estranhando-se na paisagem. Otávio espera que os papéis possam salvá-lo, comprovar que viveu, atestar que pescava, dar conta dos surubins, dos matrinxãs, dos tucunarés e dos curimatãs que o rio lhe deu para encher a barriga de seus meninos. Comprovar até que tinha uma casa de palha onde a mulher atava as redes embaixo de pés de jaca. Otávio não sabe o que os papéis contam dele. Mas espera que digam algo de bom, algo que devolva a ele um sentido, desfaça a contradição e, por fim, retornem-no a si mesmo.

Leia aqui.

 

Otávio, o pescador que se perdeu dos peixes. /Fotos de Lilo Clareto

Otávio, o pescador que se perdeu dos peixes

Maria explica que quando não tem comida nem as crianças conseguem dormir

Maria explica que quando não tem comida nem as crianças conseguem dormir

Francisco luta por justiça num mundo de papéis que não consegue ler

Francisco luta por justiça num mundo de papéis que não consegue ler

Davi, o que sabe ler. / LILO CLARETO

Davi, o que sabe ler as letras

 

 

O pescador sem rio e sem letras

À beira de Belo Monte, uma história pequena numa obra gigante. Que tamanho tem uma vida humana?

 

Otávio das Chagas tornou-se um não ser. A hidrelétrica de Belo Monte o reduziu a um pescador sem rio, um pescador que não pesca, um pescador sem remos e sem canoa. A ilha do amazônico Xingu, no Pará, onde cresceu, amou Maria e teve nove filhos não existe mais. Entre ele e o peixe não há mais nada.

Ele manda trazer uma boroca (bolsa) onde guarda os papéis. Está numa casa na cidade de Altamira pagando aluguel, a família ao redor dele, estranhando-se na paisagem. Otávio espera que os papéis possam salvá-lo, comprovar que viveu, atestar que pescava, dar conta dos surubins, dos matrinxãs, dos tucunarés e dos curimatãs que o rio lhe deu para encher a barriga de seus meninos. Comprovar até que tinha uma casa de palha onde a mulher atava as redes embaixo de pés de jaca. Otávio não sabe o que os papéis contam dele. Mas espera que digam algo de bom, algo que devolva a ele um sentido, desfaça a contradição e, por fim, retornem-no a si mesmo.

Otávio e Maria, dois exilados do Xingu. LILO CLARETO

Otávio e Maria, dois exilados do Xingu. LILO CLARETO

– Não tenho leitura – ele avisa, oferecendo a mim os hieróglifos que dizem dele para que eu os desvende.

Há algo de violento naquilo que se escreve sobre os que não se leem em papéis, naqueles que até o nome é escrito por outros. Recuso por enquanto aquela porta. Peço ao pescador que já não pesca que se documente em seus próprios termos.

Otávio então busca marcas que não são letras. Seu pai está sepultado numa ilha que também já foi engolida pela usina, o corpo do pai jaz sob o paredão de concreto. Otávio descobre que a geografia inteira de sua vida sumiu, que seus mortos já não têm lugar. E que toda a enormidade do que perdeu foi calculada em R$ 12 mil. Aos 61 anos, ele agora só tem memória. E as chagas do nome já não consegue curar. Francisco, 29 anos, o filho que sustenta a família em Altamira com a força bruta dos braços, interrompe. Aponta o próprio corpo para provar que existe. Ele guarda ali as marcas da ilha, uma cicatriz maior do que as outras. Na cidade está desterrado, à deriva. Mas o corpo lhe pertence, e Francisco vai se mapeando pelas cicatrizes.

– Eu tinha dois anos de idade quando peguei esse golpe lá. Minha mãe conta, porque eu não lembro. Peguei o machado e saí com ele na carreira.

As palavras de Francisco buscam um porto, uma forma de se ancorar quando ele já não reconhece o mundo. Aquele que migra, ainda que saiba que talvez não exista retorno para a terra que deixou, conta com a concretude do passado. Há um lugar, há a carne e os ossos dos que ficaram. Aqueles que perdem uma ilha, como Francisco, perdem com ela tudo o que contava deles. Desfazem-se. Resta uma memória que só se expressa pela oralidade – e a oralidade tem menos valor no Brasil dos letrados, no universo dos cartórios, em que a justiça legitima o documento escrito. É do lugar dos que não têm mais mundo que fala Francisco. E ele fala em torrente, porque é mais rio do que terra. E não é papel.

– Quando chegaram lá na ilha, o chefe da equipe mandou a gente pegar um tracajá (quelônio muito apreciado como comida), porque a gente conhecia o rio. Ficaram só com o papai, que não sabe ler, não sabe nada. A gente foi pegar o tracajá. Mas a gente não pegou nenhum, não vou mentir. Quando ele foi sair, nós chamemo: “Vem cá. Cadê a carta de crédito pra nós, que somo filho do local?” Com a carta de crédito nós comprava um lote pra morar. E eles: “Quando o dinheiro cair na conta, a carta de crédito de vocês vem junto”. Então tá bom. Nós não conhece essas coisa, nós não somo dessas coisa, nós somo morador. Você bem sabe que morador da colônia não é entendido em certas coisa. Ainda mais em negócio de leitura. Aí o papai ficou lá na ilha e nós viemo no escritório da Norte Energia. A mulher puxou uma folha branca pra nós. E disse: “Assina aqui ou então o dinheiro não cai na conta do pai de vocês”. Eu digo: “Pode ser o nome do papai ou o meu? Porque se for o nome do papai, eu não sei”. Que a gente tem isso. O nome do papai eu não sei, eu sei só o meu nome mesmo. É a única coisa que eu sei, da minha cabeça mesmo. Comecei a assinar, ainda errei duas vez, ela mudou as folha. Falou: “Vai devagar”. Assinei. Digo: “Tá bom?”. Aí fui embora. Mas aquele papel era só pra 12 mil pro papai, não tinha mais nada. Eles podiam puxar um papel de leitura, podiam puxar um papel escrevido na minha frente. Mas leitura eu não sei ler. Faz que nem um burro. Um burro vai, tem uma placa na frente, ele chega e passa por baixo. Porque morador da colônia, morador da ilha, morador da zona rural não sabe.

Francisco luta por justiça num mundo de papéis que não consegue ler LILO CLARETO

Francisco luta por justiça num mundo de papéis que não consegue ler LILO CLARETO

Francisco tem olho de rio agora. É difícil pra ele, porque acha que homem não tem lágrima fora. Francisco garante que não se desespera, e diz isso em prosa poética.

– Porque homem não desespera. Só desespera quando morre. O desespero é a derradeira morte pro homem.

E segue na sua agonia com as letras.

– Pra quem sabe leitura, é rico na leitura, tem saída pra ele. Mas uma pessoa que não sabe ler não sabe nem conversar. Não sabe. Não sabe nem pra onde correr. Porque nós não sabe nem onde é a autoridade, onde caçar as autoridade, nem nada. O pobre é conformado.

Francisco não parece conformado.

– O papai não pode trabalhar mais, que nem ocês tão vendo, então eu trabalho, o meu irmão trabalha. Eu trabalho de 10 real a diária. Você vê o preço da diária daqui. Eu trabalho de ajudante ali no concreto do bloco que tem aqui. A senhora entende o que é o concreto do bloco?

Eu não entendo.

– É fazer bloco. Fazer bloco lotado com cimento. É o serviço mais pesado que tem dentro da cidade, enchendo de areia, um dia todinho jogando numa betoneira. Porque gente pobre não tem outro serviço. Passei fome enquanto não achava esse trabalho. Cheguei a passar um dia e uma noite sem nada, sem um prato. Sabe como é maldade? Pra mim é maldade. Nós tudo com fome. Sem nada. Porque lá todo dia nós dormia de barriga cheia. Todo dia nós almoçava, jantava, merendava. Nós tinha a nossa brincadeira, a nossa alegria. Fumo expulso de lá e no dia em que eu não arrumo nada pra comprar janta aqui, passamo fome. Agora eu trabalho junto com os outro, fazendo bico, sabe como é bico? Não tenho meu serviço fixo. Eu trabalho pra um, desmanchando casa, trabalho pra outro, assim. Até que enfim agora a diária tá 50. Eu e meu irmão, o Zé, a gente trabalha assim.

Francisco pergunta.

A família, que tinha uma vida sustentável na ilha, foi jogada numa vida de miséria na periferia da cidade. LILO CLARETO

A família, que tinha uma vida sustentável na ilha, foi jogada numa vida de miséria na periferia da cidade. LILO CLARETO

– Nós vamo ser expulso que nem uns bicho bruto no meio do mundo? Nós não somo que nem cachorro, somo filho de gente. E nós nascemo e se criemo, tudo filho do lugar. O que fizeram com nós foi assim… Eu não posso nem lhe dizer, porque eu não entendo desse negócio. Eu não entendo. Isso aí foi assim: eu pego um saco de bagulho e boto fora. Foi o que fizeram com nós. Eu não tenho nem o que dizer. Sou um homem sem voz.

A família está reunida na parte da frente da casa alugada num dos bairros mais violentos da periferia de Altamira. No “baixão”, como se diz ali, onde eles temem sair. Eles, para quem uma casa era o dentro e também o fora, era um lugar inteiro, agora têm medo do fora. Contam que pagam 500 reais de aluguel, mas que não têm conseguido inteirar o valor. Otávio, o pescador que não pesca, deu a canoa e o motor para o dono da casa. A maior parte dos 12 mil que receberam da empresa foi gasta com uma doença no coração de uma das meninas, que levaram para ser salva em Teresina, “com Deus e os doutor”. Não há cadeira para todos. Então, o lugar sentado é para o pai, que “sofre da próstata”, e para o filho, que sustenta a família. A mãe, Maria, fica em pé. A tarde já avança, mas eles ainda não almoçaram. No fogão, um pouco de feijão chia na panela de pressão. Só feijão, comprado fiado. Maria chora. Um choro bem quieto, de quem tem pudor de se mostrar, encostada na porta, querendo sumir.

– Minhas criança não passava fome lá. Eu toda vida gostei de planta, de criação. Aqui não tenho terrinha pra trabalhar. A gente anda com fome, porque não tem onde plantar. E os filho pede comida pra mãe, não pro pai. A pequena diz: “Mamãe, quero comer. Mamãe, quero comer”. Eu não tenho de onde tirar. Quando a gente come bem, assim, a gente dorme de noite. Mas, se a gente não come nada, não dorme.

Maria explica que quando não tem comida nem as crianças conseguem dormir. LILO CLARETO

Maria explica que quando não tem comida nem as crianças conseguem dormir. LILO CLARETO

Quem olha para as casas dos ribeirinhos, com os conceitos do seu próprio umbigo, pode não compreender o que é uma casa para quem vive no mato, à beira de um rio, ou numa ilha, onde a comida está por toda parte, e só o que se precisa é um teto de palha pra dia de chuva e uns palanques pra atar a rede. Para alguns, isso é pobreza. Só pobreza. Mas corre o risco de a pobreza estar mais no jeito de olhar para o outro, o que pode revelar um outro tipo de analfabetismo. Para Maria, a casa dela era a casa dela. A dimensão de uma casa só a pessoa que vive nela saber dizer.

– Eu varria o quintal todinho. Atava a rede pros menino embaixo de uns pé de jaca. Ou ia pescar. A gente saiu e derrubaram a casa todinha. Eu chorei.

E continua a chorar quando conta.

Entre todos, só Davi conhece bem as letras. É um menino quieto, de olhos grandes. Ele gosta de estudar, tem capricho no caderno que mostra, folha por folha.

– Eu não choro quando não tem comida na volta da escola. Eu fico só triste.

Davi tem 12 anos. As letras que só ele decifra são pesadas demais para um corpo tão franzino.

Davi, o que sabe ler. LILO CLARETO

Davi, o que sabe ler. LILO CLARETO

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São tempos de eufemismos. E eles estão por todos os lados. Em Altamira, a palavra do momento é “remoção”. Belo Monte, uma das maiores e mais controversas obras do Brasil atual, “removeu” e ainda “removerá” milhares de pessoas de suas terras e de suas casas sem que o governo federal tenha garantido à população o seu direito à assistência jurídica. Como Otávio das Chagas, muitos não sabem sequer ler. Cada cidadão brasileiro conhece o quanto o caminho da justiça é espinhoso. Mesmo quem empilha títulos acadêmicos, com frequência se descobre analfabeto para a linguagem jurídica. Pode então imaginar o que significa esse processo para pescadores e agricultores, assim como para moradores urbanos, que estavam ou ainda estão no caminho de uma obra com custo previsto de R$ 28,9 bilhões e no caminho de todos os poderosos interesses que uma soma desse porte movimenta. Homens e mulheres desamparados diante das demandas da Norte Energia (Nesa), sozinhos com a ampla equipe de advogados a serviço da concessionária, que se expressam com as palavras do seu mundo e por documentos que muitos não são capazes de ler. Não é preciso ser doutor para perceber a violência e a violação de direitos.

Essa situação é o retrato da relação dos governos Lula-Dilma Rousseff com a Norte Energia e o conjunto de empreiteiras que constrói Belo Monte, uma história que ainda está por ser contada em toda a sua inteireza. (leia aqui e aqui). Até um ano atrás ainda havia uma defensora pública do estado do Pará atuando em Altamira. Mas ela deixou a cidade e não foi substituída. Não há nem nunca houve uma sede da Defensoria Pública da União em Altamira, apesar de todos os problemas e necessidades previstas pela construção de uma obra com um impacto tão monumental sobre o meio ambiente e sobre vidas humanas.

Em novembro, a Procuradoria da República promoveu uma audiência pública para ouvir a população atingida. A Defensoria Pública da União enviou um representante, Francisco de Assis Nascimento Nóbrega. Os relatos foram tão aterradores que Nóbrega comprometeu-se a levar uma força-tarefa para a cidade. Em 19 de janeiro, seis defensores públicos federais e quatro servidores começaram a atuar em Altamira, em condições precárias, num prédio emprestado, sem acesso à internet e com um telefone que não faz chamadas para celulares. A cada duas semanas, a equipe é substituída, e os recém chegados precisam compreender uma situação muito complexa num curto espaço de tempo, para então serem substituídos mais uma vez, já que ao sair das cidades de origem deixaram por lá também um vazio. Só nas primeiras duas semanas, foram procurados por 400 famílias. A defensoria itinerante dura apenas até o final de abril. E então novamente a população ficará desamparada.

A seguir, o relato do defensor público federal Francisco Nóbrega, o primeiro a desembarcar na cidade, chefe do Grupo de Trabalho Indígena da Defensoria Pública da União e um dos coordenadores da força-tarefa de Altamira.

1) O espanto

“Posso afirmar que nunca tinha visto nada parecido, mesmo já sendo defensor público há quase 9 anos. Difícil de assimilar e de reproduzir o que acontece por lá, mas ousarei tentar. O governo federal é o verdadeiro responsável pelas injustiças observadas em Belo Monte. Não há clareza quanto aos papéis de cada sujeito: o governo é ao mesmo tempo contratante e principal interessado na obra; é importante acionista da empresa ganhadora da licitação, mas também comanda o órgão licenciador, Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), assim como detém o poder de punir/fiscalizar a empresa quanto ao cumprimento das normas e condicionantes por ele próprio fixadas. Tanto o Ibama quanto a Funai (Fundação Nacional do Índio) não atuam com independência técnica. Seus pareceres não têm refletido nas decisões políticas tomadas e, neste cenário, o Poder Judiciário também foi engolido pelo jogo político. Lamentavelmente, percebe-se, em especial na questão do reassentamento das famílias forçadamente removidas de suas casas, a total e completa ausência do Estado, com exceção do Ministério Público Federal. A liberdade dada ao empreendedor para interpretar o PBA (Plano Básico Ambiental) e para decidir quais famílias receberão casa, indenização, carta de crédito ou aluguel social, por exemplo, revela a transferência para a empresa da responsabilidade pela garantia do direito à moradia. O governo está distante do processo, seu único interesse é o cumprimento rápido dessa condicionante, é evitar o atraso no ligamento das turbinas, postura reforçada com as crises hídrica e de energia.”

2) A ausência

“A inexistência de uma sede permanente da DPU (Defensoria Pública da União) no município é reflexo do histórico desinteresse do governo em interiorizar e pulverizar a instituição. Lamentavelmente, não existe sede fixa da DPU em mais de 70% das cidades em que há seção judiciária da Justiça Federal. No país inteiro, existem pouco mais de 500 defensores públicos federais, enquanto o contingente de advogados do governo – aqui contabilizados os procuradores federais, os procuradores da Fazenda e os advogados da União – chega perto dos nove mil. A mesma absurda desproporção ocorre com relação ao número de juízes e de procuradores da República. Somos poucos defensores federais, com diminuto orçamento e sem estrutura de trabalho. Estamos precariamente instalados em Altamira, ocupando o prédio da Defensoria Pública do Estado, e lá não contamos com acesso à internet e o telefone não origina chamadas para celular. A procura por atendimento tem sido imensa e tem gerado filas assustadoras. Estamos fazendo o possível, com vontade e determinação, mas nossos braços são curtos. Atualmente, sequer há juiz na cidade. O juiz federal de lá foi removido para Belém e só vai para Altamira uma semana por mês, quando faz um ‘mutirão de audiências’.”

3) A obra

“É desafiador colocar em palavras as impressões e os sentimentos experimentados nessa imersão em Altamira. O trecho bloqueado do rio tem 7 quilômetros de extensão: 7 quilômetros de brita, pedregulhos, barro e desumanidade. Faltam apenas mais algumas centenas de metros para o Xingu ser completamente impedido de seguir seu curso. Ao passar na van por cima do barramento do rio, a funcionária do Consórcio Construtor de Belo Monte disse: ‘Não é lindo e grandioso o que está sendo feito aqui? Olha o tamanho dessa casa de turbina!’. Eu só conseguia enxergar o contraste cruel entre o rio de um lado, vivo, caudaloso, imponente, e o rio que sobrou no lado oposto: morto, parado, com aspecto de pântano. Aquela imagem jamais sairá da minha memória. Aquela dor vai me assombrar ainda por muito tempo. Tento, mas não sei explicar direito o que senti ali, entre os ‘dois rios’: talvez um sentimento de culpa, de vergonha, um pesar profundo pela brutalidade da interferência na natureza. Belo Monte é um pesadelo, infelizmente bem real para os atingidos que perderão suas casas, para os pescadores, índios e ribeirinhos que perderão seus peixes e para tantas e tantas pessoas que perderão seu modo de vida.”

4) A decepção

“Minha grande tristeza e decepção (e aqui falo como ex-militante do PT) é com o (inexistente) papel do governo. Após esses dias todos em Altamira, aprendi a não demonizar a Norte Energia. É a União, contratante da obra, que permite os excessos, que se omite em assumir suas responsabilidades enquanto poder público, enquanto principal causador dessa violência atroz que é a construção dessa usina. Num mundo ideal, em que um partido de esquerda mantivesse erguida alguma bandeira minimamente popular, o processo de reassentamento urbano seria acompanhado de perto pelo governo, com os casos de recusa, das pessoas que não aceitaram a proposta ofertada pela empresa, sendo submetidos ao poder público para resolução. Essa falta de sensibilidade para o que está acontecendo com a população removida compulsoriamente em Altamira beira o inacreditável.”

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Otávio das Chagas, o pescador arrancado do rio, é um dos casos atendidos pela Defensoria Pública da União. Francisco Nóbrega negocia junto à Norte Energia uma casa nos chamados “Reassentamentos Urbanos Coletivos”, os bairros construídos pela empresa para acomodar parte das famílias expulsas de suas terras e lotes. Ainda não houve acordo. Para o defensor, o caso do pescador revela o abismo entre os mundos.

– O senhor Otávio e seus nove filhos viveram a vida toda na Ilha da Maria, uma das 400 ilhas do Xingu, assim como os seus ascendentes. Ele explicou que, por conta do barramento do rio, a água subiu mais, destruindo a casa dele. Ele a reconstruiu, mas, no ano seguinte, a enchente também destruiu a casa dele. Ele então passou a construir uma casa mais simples, de palha e madeira. Nunca as alegações do senhor Otávio foram sequer reduzidas a termo pela empresa. Dentre outras coisas, alegaram que “no local sequer havia fogão”, o que comprovaria que ele ali não residia. Se tivesse um fogão, provavelmente exigiriam uma geladeira ou uma máquina de lavar para considerar a construção uma moradia. O fato de ele e sua família se ausentarem da ilha regularmente sempre que o rio subia, mas não no nível que passou a subir após o início do barramento, foi o suficiente para descaracterizar a residência. E, para piorar, ele ainda foi cadastrado por engano como proprietário de um terreno rural às margens de uma estrada, onde era caseiro parte do ano. Esse caso sintetiza a total falta de compreensão quanto às particularidades do modo de vida dos habitantes das ilhas do Xingu. Quando os técnicos da empresa estiveram lá para elaborar o laudo/perícia, o senhor Otávio ainda montava a estrutura simplificada que utilizava para dormir, já que desistira de reconstruir a casa, seguidamente levada pelo rio. Para eles, residir é morar no local todos os 365 dias do ano. Para eles, casa significa um local com paredes de concreto ou alvenaria, jamais de palha, e “pelo menos um fogão”. Para eles, um pescador com mais de 60 anos e semianalfabeto pode se reinserir no mercado de trabalho ou sobreviver com uma indenização de doze mil reais ou um aluguel social de 800 reais mensais por apenas um ano. Quando eu falo “eles” aqui, estou falando menos do empreendedor e mais do governo, verdadeiro responsável pelas injustiças observadas em Belo Monte.

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A Norte Energia não respondeu ao pedido de informações sobre o caso de Otávio das Chagas e as “remoções” de Belo Monte, enviado à sua assessoria de imprensa por esta coluna. Em 11 de fevereiro, a empresa pediu ao Ibama licença para operar a usina, apesar de não ter concluído a totalidade das condicionantes. Passou a semana passada com cerca de 100 índios, de sete diferentes etnias, bloqueando a estrada que dá acesso a um dos canteiros da obra em protesto por compromissos não cumpridos. É mais um capítulo de uma das maiores obras da democracia, que lembra cada vez mais a ditadura.

Nessa saga de gigantismos, a de Otávio, o pescador que se perdeu dos peixes, pode ser vista como apenas uma pequena história. O sacrifício do outro é sempre possível, porque é do outro. Que ele tinha uma vida sustentável na ilha agora afogada do Xingu e foi entregue à fome na periferia cada vez mais convulsa de Altamira, para muitos é só um detalhe. O discurso do combate à miséria pode ter mais ou menos palavras, conforme os interesses e a ocasião. A leitura complexa da floresta e do rio de pessoas como Otávio é descartável para quem sequer reconhece a sua casa como uma casa. Para quem possui todas as letras, ele é só mais um analfabeto, já que não percebem que, na floresta, quem pode ler é Otávio e os analfabetos mudam de lugar.

Enquanto Belo Monte se recorta na paisagem como um monumento – ao quê, a História ainda vai dizer –, o pescador exilado do rio é só um homem que vai virando deserto à margem de si mesmo.

A pergunta é: para o Brasil de hoje, qual é o tamanho de uma vida humana?

LILO CLARETO

Otávio – LILO CLARETO

(Publicado no El País em 16/02/2015)

 

Vamos precisar de um balde maior

Quem seremos nós, sem água? Caberá a essa geração imperfeita enfrentar os desafios de um futuro que chegou antes
Carro abandonado em Atibainha, que integra o sistema Cantareira. ANDRÉ PENNER AP (El País)

Carro abandonado em Atibainha, que integra o sistema Cantareira. ANDRÉ PENNER AP (El País)

Quando a gente abre a torneira em São Paulo e não sai nada, e sabe que logo chegará o dia que não haverá nada no dia seguinte e no dia seguinte ao dia seguinte e assim por um tempo que ninguém sabe quanto será e quem diz que sabe mente, descobrimos que nos tiraram muito mais do que água. Essa é a parte aterrorizante. E é aterrorizante para além das vidas secas. O terror é menos pelo que só agora faltou, mais pelo que nunca existiu. O terror é dado pela perda das ilusões de que tudo estava sob controle. E, de repente, aqueles que repetiam que estávamos todos bem bem mostraram que, na verdade, estamos todos bem perdidos. O estado de torpor dos moradores de São Paulo foi perfurado pela realidade, abriu-se um rombo que talvez seja impossível fechar. No fundo desse buraco não há vazio, mas espelho. É nesse ponto que existe algo de fascinante. É quando o morador de São Paulo vira todos, encarna o humano dessa época, uma catástrofe diante da catástrofe. Nós, o futuro que chegou primeiro.

Quem seremos nesse mundo em que o clima se mostra alterado, nesse planeta agora mais hostil pela nossa ação? Que filosofia produziremos? E que sentidos criaremos?

São Paulo sem água é uma imagem poderosa. A cidade expandida em que mais de 20 milhões vivem à beira de um rio que matamos. A cidade que virou estufa, abarrotada por carros que se movem mais e mais lentamente, queimando combustíveis fósseis e lançando gases na atmosfera. A cidade que desmatou o entorno dos mananciais e desprotegeu-se. A cidade em que, quando a chuva cai, parece que evapora antes de chegar ao chão convertido em concreto e, nas tempestades, alaga e é destruída porque o cimento não pode absorver a água. As chaminés das fábricas do século 20 da São Paulo “que amanhece trabalhando”, assim como os canos de descarga dos carros de cada dia, são falos decaídos. As ilusões de potência e de superação, o sem limites da modernidade, viram pó na cidade imensa, transformando São Paulo num monumento que ela não sonhou ser – e nós em seres trágicos.

O dia em que as autoridades ruíram

O momento em que a máquina do mundo se abriu para a maioria foi no final desse janeiro, ao ser anunciado que poderia haver um rodízio 5X2 – cinco dias sem água, dois com água. A classe média correu a comprar caixas d’água extras e galões, houve quem estocou centenas de litros, os baldes viraram objetos de desejo. Lembrou “Tubarão”, o filme de Steven Spielberg que talvez tenha inaugurado o conceito de blockbuster, na cena em que o monstro emerge com uma boca capaz de palitar os dentes com o barco que pretendia caçá-lo e o xerife da cidade diz, na frase que ficou antológica para quem gosta de cinema: “Vamos precisar de um barco maior”. Parece que, por aqui, nós vamos precisar de um balde maior.

Nosso momento presente é enorme. Precisaríamos ter na liderança um estadista, uma pessoa capaz de botar o interesse público acima de suas ambições eleitorais, alguém que compreende a amplitude do que está em jogo, um político com visão de século 21. Nosso desamparo é maior porque não temos essa figura nem no governo de São Paulo nem no governo do país. Temos no comando do estado alguém com uma mentalidade de vereador de cidade pequena. E nada contra vereadores de cidade pequena, existem os bons, apenas que para um governador o olhar precisa ser muito mais amplo e a política exercida num outro nível. E, no Planalto, temos uma presidente vendida como “gerente”, o que não é exatamente o que se espera de alguém que comanda um país, mas, como sempre pode piorar, se mostrou uma má gerente ainda no primeiro mandato.

O futuro chegou antes. E justamente no momento em que as instituições políticas e os grandes partidos estão desacreditados, em que se pode mentir para ganhar a eleição e dizer o contrário em seguida. É assim que a população descobre que as autoridades não só falsearam a realidade como não sabem o que fazer agora que a calamidade se instalou. As autoridades desautorizaram-se, num fenômeno político tão grave quanto complexo. E a população encontrou-se só e com o monstro na sala.

Se a realidade é assustadora, também é muito interessante. Nenhum dos governantes que deixaram a situação chegar a esse ponto – sem esquecer que Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo rumam no mesmo sentido – estão no poder por um processo autoritário. Não, estão lá porque a maioria dos que hoje se sentem desamparados votaram neles. No caso de São Paulo, o PSDB está indo para 24 anos no governo, há uma geração de paulistas que nasceu, passou pela infância e pela adolescência e virou adulto sob o comando da mesma sigla e nenhum alternância de poder. Dilma Rousseff está no segundo mandato, e o PT vai para 16 anos no Planalto. Geraldo Alckmin se elegeu no primeiro turno quando a “crise da água” era evidente, mesmo que o governador tenha negado a gravidade da realidade durante toda a campanha. Elegeu-se no primeiro turno em parte porque dava aos eleitores a chance de continuar fingindo que estava “tudo sob controle”. E, assim, ninguém precisou se mover, mudando velhos hábitos perniciosos e assumindo a responsabilidade de economizar água.

É como disse no Twitter André Vallias, poeta e designer gráfico, referindo-se à situação da água e da energia: “O Brasil não é o País do Futuro, mas da Fatalidade: atrás dessa palavra nossas autoridades se escondem para fugir à responsabilidade”. E isso vale também para os prefeitos, em especial para Fernando Haddad (PT), em São Paulo, e os das cidades da Grande São Paulo, que parece que acordaram só ontem, assim como para os parlamentares desse Congresso, que iniciam um novo mandato atolados na velha lama viciada, fazendo com que a maioria sequer espere qualquer coisa deles, a não ser mais do pior. Mas, se a responsabilidade das autoridades eleitas é muito maior e elas têm de responder pelo que não fizeram e pelo que não disseram, tanto quanto pelo que fizeram e disseram, numa democracia nenhum cidadão é inocente, ainda que alguns possam ser menos culpados do que outros.

A hora de se inspirar nos jovens e virar gente grande

Agora que as figuras paternas e maternas ruíram – e a gente tem certeza disso quando, diante da catástrofe em curso, elas mandam rezar para um Pai maior ou invocam São Pedro – seria uma boa hora para virar gente grande. E recuperar a amplidão da política, como nos lembraram os manifestantes de 2013. E continua a nos lembrar o Movimento Passe Livre em 2015, com os protestos pela tarifa zero. Precisamos ser eternamente gratos a esses jovens tão jovens, porque têm sido eles os verdadeiros adultos, no sentido de apontar que o rei está nu (e perdido) e somos nós que temos de assumir a responsabilidade de pensar a cidade. Cada vez que eles vão para as ruas contra o aumento da tarifa do transporte público, o que fazem é uma denúncia profunda do modelo desastroso de ocupação urbana e da opção criminosa pelo transporte privado e individual. Lembram-nos de que, sem a liberdade de ir e vir, não somos nada além de coisas. São eles que se movem diante da paralisia alienada dos mais velhos – e a experiência de literalmente se mover nas manifestações, por ruas de uma cidade que não se move, é de uma enorme força simbólica.

Na catástrofe da água que se anuncia já existem focos de cidadania consolidados, outros surgindo agora, que reúnem cidadãos que assumiram a responsabilidade de participar das decisões e de pressionar as autoridades. Enquanto o governador de São Paulo diz que não há certeza de que será preciso fazer rodízio, cidadãos começam a reivindicar que, sim, é preciso haver rodízio agora, neste instante, já que não é possível voltar atrás no tempo e começar a fazê-lo meses e até anos antes, o que teria tornado a situação de hoje menos desesperadora. Gente que percebeu que deveríamos desde sempre ter compreendido que não é possível consumir água dessa maneira descuidada, como se os recursos fossem infinitos, nem jamais deveríamos ter nos acostumado a abusos como usar água potável para dar descarga no banheiro ou deixar a água ir embora sem criar sistemas de reúso. Cidadãos que sabem que é preciso mudar não na emergência, mas para sempre. Enquanto o governador, mais uma vez, prioriza suas ambições eleitorais e ainda está “estudando” se haverá um plano de contingência, há cidadãos que decidiram lidar com a realidade e pressionar as autoridades a tomar decisões reais num mundo real, antes que só reste o êxodo.

Este é um dos poucos efeitos positivos da catástrofe que se anuncia. Aponta que ainda temos um caminho se cada um assumir a sua responsabilidade, incluindo aí a de pressionar o poder público a assumir a sua própria. Pertence a esse conjunto de reação a Aliança pela água, reunindo várias organizações que superaram suas diferenças em nome da emergência comum. Assim como os coletivos de jornalismo independente, entre eles a Mídia Ninja e a Ponte, que se uniram para documentar o colapso da água criando “a conta da água” na internet. Diante da pouca confiabilidade da informação oficial e da certeza de que foram enganadas por tempo demais, por todos os lados pessoas estão se juntando na busca de abarcar a dimensão do que está acontecendo e pensar no que fazer e em como viver daqui para a frente.

Um desses encontros aconteceu em 28 de janeiro na Casa de Lua, uma organização feminista que chamou os moradores de São Paulo pelas redes sociais para debater, produzindo um momento muito rico, tanto na intensidade das angústias quanto na sinceridade das respostas em construção. O encontro pode – e deve – ser assistido aqui. Entre os vários momentos interessantes, uma mulher fez a pergunta: “Eu sou uma pessoa comum, uma microempresária. Eu quero saber o que fazer, como eu posso ajudar”. A resposta de um dos debatedores, que restringiu-se a alterações no perímetro da casa e da família, não a satisfez. Ela então retrucou: “Vocês não estão entendendo. Eu acho que chegamos a esse ponto por que cada um sempre pensou em resolver apenas o seu problema. Eu quero saber o que posso fazer não para mim, mas para todos”.

“A negação como política de governo e como defesa psíquica”

A psicóloga paulistana Camila Pavanelli de Lorenzi, 32 anos, é uma das que está fazendo alguma coisa, se moveu. Ela começa a se tornar uma referência nas redes sociais por causa de seu Boletim da Falta D’água, criado em outubro de 2014. Nessa conversa comigo, ela conta como passou a dividir o doutorado na Universidade de São Paulo – sobre “os conceitos psicanalíticos de sublimação e realidade”, a partir da série de TV “The Wire” e de dois livros nos quais a série é baseada – com sua investigação pessoal sobre a catástrofe em curso. É revelador que seja uma psicóloga a tentar compreender o que as notícias da água dizem para além do que está escrito. Os grifos são meus, os parênteses são dela:

Como foi que começou a fazer o boletim?

Camila – Comecei numa noite em que eu estava especialmente de saco cheio de passar o dia lendo notícias – tanto sobre a falta d’água quanto sobre o posicionamento oficial do governo de que não faltava água – e decidi reunir e resumir tudo o que eu havia lido num texto só. Postei no Facebook. Compilar essas informações me trouxe algum alívio. Eu precisava (preciso ainda) entender o que diabos estava acontecendo. Havia muita coisa sendo publicada sobre a falta d’água, mas em veículos diferentes – era difícil ter uma visão mais abrangente da real gravidade da situação. Então fiz essa compilação de notícias naquela noite. Fiz a mesma coisa na noite seguinte, com o mesmo objetivo de me situar melhor em meio ao caos – e, de quebra, compartilhar o que eu estava lendo com meus amigos. E depois não vi motivos para parar. Eu sentia (sinto ainda) que não havia uma linguagem para falar sobre a chamada crise da água, e que era preciso (é ainda) criar essa linguagem. Depois de uma semana postando os boletins no Facebook, várias pessoas começaram a sugerir que eu criasse um blog ou tumblr só para eles. Achei que fazia sentido, e fiz um tumblr. Mas continuo postando os boletins na minha página pessoal do Facebook também, para facilitar os compartilhamentos.

Como você faz esse acompanhamento cotidiano?

Camila – No começo eu fazia todo dia. Acessava sites de notícia, fosse da grande mídia ou da mídia alternativa, e os órgãos oficiais do governo. Aí uma coisa levava a outra. Saía uma notícia sobre um processo ou decisão judicial, eu ia atrás desse documento. Saía uma notícia que não diferenciava muito bem os conceitos de pluviometria e vazão, eu ia atrás de um manual de hidrologia para entender os conceitos um pouco melhor. E assim fui construindo uma narrativa sobre a falta d’água no estado de São Paulo, dia a dia. Parcial, informal, incompleta, amadora. A minha narrativa do que estamos vivendo, enfim.

Como são seus dias desde então?

Camila – No ano passado, dediquei cerca de duas horas todas as noites à escrita do boletim. Passei a frequentar menos a academia. Passei a escrever menos no meu blog pessoal. Passei a escrever menos e-mails longos para os amigos. Neste ano, ainda não sei dimensionar quantas horas essa maluquice está me tomando. Ainda estou aprendendo a fazer um boletim semanal. Acabei de criar uma conta no Twitter (@bolfaltadagua) para me ajudar, para reunir uma pré-seleção de links. Vou tuitando e retuitando ali tudo o que leio de interessante. Desse mundaréu de notícias, vou selecionar algumas para costurar a narrativa da semana.

O que você faz quando não está olhando para a água ou para a falta dela?

Camila – Trabalho na minha tese, cozinho, cuido da casa, escrevo no meu blog. Levo a mais pequeno-burguesa das vidas, em suma.

O que te pega mais nessa questão da água?

Camila – A negação. Sobretudo a negação como política de governo. Eu não entendo nada de água, meio ambiente, gestão de recursos hídricos, nada disso. Mas eu entendo muito de negação como defesa psíquica. A negação foi catastrófica na minha vida pessoal e precisei de anos de análise para começar a elaborar alguns lutos (para não soar muito enigmática: minha mãe morreu quando eu tinha dez anos e sempre encarei isso como um fato normal e corriqueiro da vida, como se não fosse nada demais, “é chato, mas acontece” etc. Foi com a análise que pude sentir pela primeira vez a tragédia que foi eu ter perdido a minha mãe). Aí, de repente, eu vejo a negação sendo adotada pelo governo do estado como forma de lidar com uma crise sem precedentes na história do Brasil. E isso evidentemente tem efeitos sobre a população. Isso me fascina, na verdade: as relações entre a negação como política de governo e a negação como defesa psíquica. Porque ninguém, de verdade, acredita que a água vai acabar (ou, se acredita, não consegue conceber o que significa isso). E é compreensível que seja assim. Como acordar de manhã, ir para o trabalho, cuidar dos filhos – levar a vida de sempre, enfim – quando se tem a perspectiva de que a água pode acabar dentro de poucos meses? Melhor acreditar que a crise não é tão grave assim. E acabou que tivemos a união da sede com a vontade de beber. De um lado, a população que desejava ouvir que estava tudo bem e que poderia seguir com a vida normalmente; de outro, um governo que realizou plenamente esse desejo, garantindo que não faltava nem faltaria água em São Paulo.

Você termina seus boletins dizendo: “Pode entrar em pânico que segunda que vem tem mais”. Vi no debate da Casa de Lua que essa questão, entre ter calma, como foi colocado por outra debatedora, e a sua conclamação/autorização para, ao contrário, entrar em pânico, te perturbou. O que tem pensado sobre isso?

Camila – Fiquei perturbada, sim. Nos primeiros dias eu concluí o boletim com “calma que amanhã tem mais”. Mas logo me dei conta de que o problema era justamente que estávamos calmos demais. Pânico, para mim, não é “ó meu deus vamos todos morrer mesmo então melhor se matar antes”. Pânico, para os fins do Boletim da Falta d’Água em SP, é o oposto da letargia institucionalizada. É o oposto de “não falta água, não faltará água em São Paulo”. É o meu manifesto antinegação. É um apelo para que as pessoas se informem sobre o que está acontecendo e, a partir daí, tomem as ações que julgarem mais adequadas. Como não acredito em ação sem reflexão, acho importante estar bem informado para resolver o que fazer. E isso em todos os níveis: desde construir cisterna em casa até exigir providências das autoridades, passando pela organização de redes de solidariedade nos bairros e comunidades.

(Fim da conversa com Camila)

A disputa da narrativa já começou

A palavra “crise” me parece muito pequena diante do que já está desenhado. Talvez coubesse anos atrás, momento em que, se tivesse sido pronunciada, assumida e enfrentada, poderia ter tido seu impacto reduzido. Hoje, não mais. Alguns têm sugerido a palavra “colapso”. E colapso pode dar conta da impossibilidade de viver como antes, da convicção de que não existirá mais “a vida de sempre”, de algo que não pode ser refeito sobre as mesmas bases. O que se anuncia me parece poder ser representado por “catástrofe”, palavra que escolhi usar mesmo correndo o risco de ser chamada de “apocalíptica”, como já se acostumaram a ouvir todos aqueles que alertam para os rumos perigosos de São Paulo e do país, assim como para os desafios da mudança climática do planeta há anos, décadas. Já padecemos demais com os eufemismos esgrimidos pelas autoridades. Mas, ainda que saibamos que as palavras são importantes, jamais podemos esquecer que os extremos de nossa condição são irrepresentáveis, escapam da linguagem. É também a batalha da linguagem que travaremos – e nela está também tudo aquilo que não vira palavra.

É isso que Camila também diz quando afirma que ainda não encontrou a linguagem para expressar o que vive. Ela, assim como todos aqueles que, individual ou coletivamente, se mobilizaram para documentar a catástrofe da água são filhos desses tempos de internet e têm enorme importância para a construção da realidade do dia seguinte. Quanto mais múltiplas forem as versões, melhor para a busca das verdades dos fatos e para a interpretação das subjetividades. A disputa narrativa já começou, e as armadilhas são proporcionais ao tamanho do desafio.

Uma versão bastante difundida por alguns noticiários, em especial os da TV aberta, tem sido a de que o problema dos apagões de energia seriam decorrentes das hidrelétricas que ainda não foram concluídas, como Belo Monte, ou das que ainda não foram iniciadas. Em seguida, vem o culpado: “por atrasos/dificuldades no licenciamento ambiental”. Por que eu me refiro à escassez de energia quando estava falando da escassez de água? Primeiro, porque são temas relacionados. Segundo, porque aqui claramente é demonstrada a repetição do discurso da dissociação e da negação. E foi também a dissociação e a negação, em todos os planos, que nos trouxe até o estado atual de calamidade.

Talvez nunca tenhamos precisado tanto fazer relações e compreender o mundo dentro de uma teia de ação e consequências como hoje. A narrativa que compartimenta falseia e informa mal. Está superada em todas as áreas, inclusive na educação. No momento em que sofremos as consequências da irresponsabilidade de nossas escolhas, em que as questões ambientais devem estar no topo das nossas prioridades se quisermos ter alguma chance, em que executivos das grandes empreiteiras que constroem as grandes hidrelétricas e que são as grandes financiadoras de campanhas políticas estão na cadeia por conta da operação Lava Jato, tenta-se de novo e sempre colocar ambientalistas e preocupações ambientais como um “entrave”. Por que e a serviço de quem? Ignorância, má fé ou ambas?

Um exemplo. A falta de água se anuncia como catástrofe, mas, ao mesmo tempo, o governo federal quer concluir Belo Monte, no rio Xingu, apesar de todas as irregularidades e da denúncia de etnocídio indígena, e barrar o Tapajós. Aqui, há algumas relações que podem ser feitas: 1) as hidrelétricas têm grande impacto no desmatamento e na destruição ambiental, não apenas pela obra em si, mas também pelo desequilíbrio que provocam ao expulsar ou realocar comunidades, assim como a quantidade de migrantes que atraem e todas as consequências envolvidas nisso; 2) a devastação da Amazônia, onde hoje estão sendo feitas e planejadas as grandes barragens, já é dramática e compromete o clima; 3) há cientistas e trabalhos científicos de alto nível mostrando que a floresta amazônica tem um papel estratégico na regulação do clima do Brasil e do planeta, o que envolve a questão das chuvas no sudeste do país; 4) os reservatórios das hidrelétricas ficam baixos quando a chuva é escassa, comprometendo o abastecimento da energia; 5) priorizar hidrelétricas na Amazônia e culpar a resistência a elas pelo desabastecimento é encobrir que o governo federal não fez o necessário investimento na diversificação de fontes de energia; 6) é também escamotear que, em vez de conscientizar a população da necessidade de poupar, porque os recursos são finitos, o governo federal fez exatamente o contrário disso, estimulando o consumo; 7) os enormes problemas sociais e ambientais causados pelas hidrelétricas, e neste quesito Belo Monte é o nosso atual mostruário (ou “monstruário”, como alguns preferem), são causados também porque o processo de licenciamento ambiental não é respeitado nem as condicionantes legais, aquilo que é preciso fazer para que a obra possa ser realizada com danos menores, não são cumpridas.

Em resumo: a verdade é muito mais complicada e atrapalha os poderosos interesses envolvidos. Os links dos últimos parágrafos são de grande importância para quem compreender que precisa compreender o que está em jogo e participar das decisões. Se pode emergir algo de positivo desse momento que vivemos é o de fazer com que questionemos a nossa relação com o meio ambiente, assim como o nosso lugar num planeta cada vez mais hostil pela nossa ação, dando-nos a chance de nos tornarmos pessoas capazes de enfrentar os desafios dessa época, que, como qualquer um pode perceber, são enormes.

O que está em jogo não são obras, mas nossa relação desastrosa com o meio ambiente, nossa dissociação com a natureza e nossa ignorância. Ignorância no sentido de desconhecer até mesmo que é preciso conhecer. É imperativo romper com a negação. E podemos começar a fazer isso aumentando nossa leitura crítica e construindo as relações necessárias. Não custa lembrar sempre que, como diz a frase famosa, “na guerra, a verdade é a primeira vítima”.

Os possíveis cenários da “guerra da água”

Quem seremos nós quando a água acabar? Tudo indica que saberemos muito em breve. Uma reportagem de O Estado de S. Paulo mostra que, seis anos atrás, um estudo envolvendo 200 especialistas mostrou ao governo paulista uma projeção do que aconteceria se a crise não fosse enfrentada. O relatório chama-se “Cenários ambientais 2020”. Nele, projetava-se, a partir das informações disponíveis, o que aconteceria até este ano caso medidas não fossem tomadas. O objetivo do estudo era estabelecer planos de ação para impedir que os cenários mais pessimistas se realizassem – ou seja, para evitar a realidade de hoje.

É aterrador de várias maneiras, a começar pelo fato de que o estudo encomendado pelo governo do PSDB foi ignorado pelo governo do PSDB, resultando no que está aí. Mas é aterrador também pelo cenário sugerido no documento como o mais provável. O texto é escrito como se o narrador já estivesse em 2020 e tudo já tivesse acontecido.

Diz a reportagem: “O estado (de São Paulo) teria assistido nesse período (2015) a um ‘conflito pelo uso dos recursos hídricos’, que desencadeou uma ‘guerra da água’ entre algumas regiões. Essa guerra teria começado após ‘um ano atípico de chuvas, com precipitações muito abaixo do esperado’”. O documento diz ainda: “O ano de 2018 significou um marco na história do uso da água no estado de São Paulo e os problemas verificados podem ser considerados uma continuação daqueles da crise de 2015. Em determinadas regiões, em função do uso intensivo de agrotóxicos (defensivos agrícolas) e fertilizantes (adubos), as águas superficiais e subterrâneas foram afetadas, comprometendo o abastecimento público de alguns municípios. As ações judiciais se multiplicaram, no rastro das manifestações populares que reivindicaram o abastecimento público em detrimento do agronegócio. A Agência Nacional de Águas (ANA) disponibilizou técnicos que auxiliaram na mediação do conflito. No auge da crise, prefeitos e vereadores aprovaram pacotes com leis restringindo temporariamente atividades econômicas de uso intensivo de água”.

Esta é a projeção realizada em 2009 – e ignorada. Agora, estamos no presente, em 2015, ano em que a “guerra da água” começaria.

Que impacto terá a falta de água nos empregos? Como farão os pais para trabalhar se os filhos ficarem sem escola e sem creche? O que acontecerá com os doentes e os velhos? Que tipo de inferno ainda maior se tornarão os presídios e as instituições para crianças e adolescentes infratores? Como será nos hospitais se as doenças aumentarem? Será que devemos tentar fugir de São Paulo?

Estas são algumas das perguntas que aparecem nos debates sobre a água, vindas de uma plateia cheia de angústia diante da incerteza de um futuro que é logo amanhã. Da experiência concreta da realidade vem o exemplo da cidade paulista de Itu, no ano passado, quando donas de casa foram para as ruas com tomates e ovos e seus filhos com pedras, quando carros-pipa precisaram de escolta policial, quando surgiram traficantes de água, quando as pessoas foram assaltadas depois de horas na fila para encher um galão ou um balde. Quando os assaltantes queriam não mais dinheiro, mas água. A Grande São Paulo se tornará Itu, multiplicada por milhões?

Depende de nós construir, coletivamente, uma resposta que não seja a barbárie do individualismo e do salve-se quem puder ou quem tem mais dinheiro. Os mais ricos podem sair da cidade, a classe média vai ter que aprender com os mais pobres, que há muito estão submetidos ao regime de rodízio de água sem que ninguém se importe além deles, como é que se vive na escassez. O que não podemos permitir é que a catástrofe da água seja reduzida a um problema de segurança pública, com as forças de repressão do Estado a serviço dos mesmos de sempre, como já se tornou um hábito no tratamento das questões mais profundas, exatamente para desviar o foco, esvaziar o conteúdo e escapar das responsabilidades.

Para começar, precisamos entender que o que parece anormalidade, exceção, é possivelmente a normalidade daqui em diante. São Paulo apenas antecipa o futuro por todos os superlativos com os quais foi construída. Precisamos nos preparar para um clima de extremos, nosso mundo já é pior. E é pior, na compreensão de 97% dos artigos científicos sobre o clima, por causa da ação humana sobre o planeta. Assim, precisamos mudar mesmo. E a água é apenas o tema mais urgente que exige nossa participação nas decisões da cidade, do estado e do país – do mundo. E está relacionada com as principais questões socioambientais. A água não pode mais ser vista como mercadoria.

Não há tempo para formar uma geração que compreenda os desafios desse momento histórico. Teremos de enfrentá-los com os homens e mulheres imperfeitos de nossa época – arrogantes, consumistas, egoístas e inconsequentes, ainda com as ilusões da modernidade batendo em nossos corações enquanto o mundo ao nosso redor se arruína. Terá de sermos nós, a única matéria humana disponível, com o melhor que conseguirmos encontrar na escassez íntima de nossos interiores.

O tempo de despertar já passou. Agora é preciso acordar em pé.

(Publicado no El País em 02/02/2015)

 

Quem somos nós sem água?

Amigos,

Ando carregando baldes e bacias pela casa, tentando aprender como vive um camelo, e ouço uma das vizinhas tomando banho de banheira.

Enquanto esse drama se desenrola, escutei pessoas, acompanhei conversas, peregrinei pelo noticiário, li artigos científicos e pensei, pensei bastante. Saiu esse texto aqui, na minha coluna de hoje no El País.

“Vamos precisar de um balde maior”

 

Não há tempo para formar uma geração que compreenda os desafios desse momento histórico. Teremos de enfrentá-los com os homens e mulheres imperfeitos de nossa época – arrogantes, consumistas, egoístas e inconsequentes, ainda com as ilusões da modernidade batendo em nossos corações enquanto o mundo ao nosso redor se arruína. Terá de sermos nós, a única matéria humana disponível, com o melhor que conseguirmos encontrar na escassez íntima de nossos interiores.

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