Quem seremos nós, sem água? Caberá a essa geração imperfeita enfrentar os desafios de um futuro que chegou antes
Carro abandonado em Atibainha, que integra o sistema Cantareira. ANDRÉ PENNER AP (El País)
Quando a gente abre a torneira em São Paulo e não sai nada, e sabe que logo chegará o dia que não haverá nada no dia seguinte e no dia seguinte ao dia seguinte e assim por um tempo que ninguém sabe quanto será e quem diz que sabe mente, descobrimos que nos tiraram muito mais do que água. Essa é a parte aterrorizante. E é aterrorizante para além das vidas secas. O terror é menos pelo que só agora faltou, mais pelo que nunca existiu. O terror é dado pela perda das ilusões de que tudo estava sob controle. E, de repente, aqueles que repetiam que estávamos todos bem bem mostraram que, na verdade, estamos todos bem perdidos. O estado de torpor dos moradores de São Paulo foi perfurado pela realidade, abriu-se um rombo que talvez seja impossível fechar. No fundo desse buraco não há vazio, mas espelho. É nesse ponto que existe algo de fascinante. É quando o morador de São Paulo vira todos, encarna o humano dessa época, uma catástrofe diante da catástrofe. Nós, o futuro que chegou primeiro.
Quem seremos nesse mundo em que o clima se mostra alterado, nesse planeta agora mais hostil pela nossa ação? Que filosofia produziremos? E que sentidos criaremos?
São Paulo sem água é uma imagem poderosa. A cidade expandida em que mais de 20 milhões vivem à beira de um rio que matamos. A cidade que virou estufa, abarrotada por carros que se movem mais e mais lentamente, queimando combustíveis fósseis e lançando gases na atmosfera. A cidade que desmatou o entorno dos mananciais e desprotegeu-se. A cidade em que, quando a chuva cai, parece que evapora antes de chegar ao chão convertido em concreto e, nas tempestades, alaga e é destruída porque o cimento não pode absorver a água. As chaminés das fábricas do século 20 da São Paulo “que amanhece trabalhando”, assim como os canos de descarga dos carros de cada dia, são falos decaídos. As ilusões de potência e de superação, o sem limites da modernidade, viram pó na cidade imensa, transformando São Paulo num monumento que ela não sonhou ser – e nós em seres trágicos.
O dia em que as autoridades ruíram
O momento em que a máquina do mundo se abriu para a maioria foi no final desse janeiro, ao ser anunciado que poderia haver um rodízio 5X2 – cinco dias sem água, dois com água. A classe média correu a comprar caixas d’água extras e galões, houve quem estocou centenas de litros, os baldes viraram objetos de desejo. Lembrou “Tubarão”, o filme de Steven Spielberg que talvez tenha inaugurado o conceito de blockbuster, na cena em que o monstro emerge com uma boca capaz de palitar os dentes com o barco que pretendia caçá-lo e o xerife da cidade diz, na frase que ficou antológica para quem gosta de cinema: “Vamos precisar de um barco maior”. Parece que, por aqui, nós vamos precisar de um balde maior.
Nosso momento presente é enorme. Precisaríamos ter na liderança um estadista, uma pessoa capaz de botar o interesse público acima de suas ambições eleitorais, alguém que compreende a amplitude do que está em jogo, um político com visão de século 21. Nosso desamparo é maior porque não temos essa figura nem no governo de São Paulo nem no governo do país. Temos no comando do estado alguém com uma mentalidade de vereador de cidade pequena. E nada contra vereadores de cidade pequena, existem os bons, apenas que para um governador o olhar precisa ser muito mais amplo e a política exercida num outro nível. E, no Planalto, temos uma presidente vendida como “gerente”, o que não é exatamente o que se espera de alguém que comanda um país, mas, como sempre pode piorar, se mostrou uma má gerente ainda no primeiro mandato.
O futuro chegou antes. E justamente no momento em que as instituições políticas e os grandes partidos estão desacreditados, em que se pode mentir para ganhar a eleição e dizer o contrário em seguida. É assim que a população descobre que as autoridades não só falsearam a realidade como não sabem o que fazer agora que a calamidade se instalou. As autoridades desautorizaram-se, num fenômeno político tão grave quanto complexo. E a população encontrou-se só e com o monstro na sala.
Se a realidade é assustadora, também é muito interessante. Nenhum dos governantes que deixaram a situação chegar a esse ponto – sem esquecer que Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo rumam no mesmo sentido – estão no poder por um processo autoritário. Não, estão lá porque a maioria dos que hoje se sentem desamparados votaram neles. No caso de São Paulo, o PSDB está indo para 24 anos no governo, há uma geração de paulistas que nasceu, passou pela infância e pela adolescência e virou adulto sob o comando da mesma sigla e nenhum alternância de poder. Dilma Rousseff está no segundo mandato, e o PT vai para 16 anos no Planalto. Geraldo Alckmin se elegeu no primeiro turno quando a “crise da água” era evidente, mesmo que o governador tenha negado a gravidade da realidade durante toda a campanha. Elegeu-se no primeiro turno em parte porque dava aos eleitores a chance de continuar fingindo que estava “tudo sob controle”. E, assim, ninguém precisou se mover, mudando velhos hábitos perniciosos e assumindo a responsabilidade de economizar água.
É como disse no Twitter André Vallias, poeta e designer gráfico, referindo-se à situação da água e da energia: “O Brasil não é o País do Futuro, mas da Fatalidade: atrás dessa palavra nossas autoridades se escondem para fugir à responsabilidade”. E isso vale também para os prefeitos, em especial para Fernando Haddad (PT), em São Paulo, e os das cidades da Grande São Paulo, que parece que acordaram só ontem, assim como para os parlamentares desse Congresso, que iniciam um novo mandato atolados na velha lama viciada, fazendo com que a maioria sequer espere qualquer coisa deles, a não ser mais do pior. Mas, se a responsabilidade das autoridades eleitas é muito maior e elas têm de responder pelo que não fizeram e pelo que não disseram, tanto quanto pelo que fizeram e disseram, numa democracia nenhum cidadão é inocente, ainda que alguns possam ser menos culpados do que outros.
A hora de se inspirar nos jovens e virar gente grande
Agora que as figuras paternas e maternas ruíram – e a gente tem certeza disso quando, diante da catástrofe em curso, elas mandam rezar para um Pai maior ou invocam São Pedro – seria uma boa hora para virar gente grande. E recuperar a amplidão da política, como nos lembraram os manifestantes de 2013. E continua a nos lembrar o Movimento Passe Livre em 2015, com os protestos pela tarifa zero. Precisamos ser eternamente gratos a esses jovens tão jovens, porque têm sido eles os verdadeiros adultos, no sentido de apontar que o rei está nu (e perdido) e somos nós que temos de assumir a responsabilidade de pensar a cidade. Cada vez que eles vão para as ruas contra o aumento da tarifa do transporte público, o que fazem é uma denúncia profunda do modelo desastroso de ocupação urbana e da opção criminosa pelo transporte privado e individual. Lembram-nos de que, sem a liberdade de ir e vir, não somos nada além de coisas. São eles que se movem diante da paralisia alienada dos mais velhos – e a experiência de literalmente se mover nas manifestações, por ruas de uma cidade que não se move, é de uma enorme força simbólica.
Na catástrofe da água que se anuncia já existem focos de cidadania consolidados, outros surgindo agora, que reúnem cidadãos que assumiram a responsabilidade de participar das decisões e de pressionar as autoridades. Enquanto o governador de São Paulo diz que não há certeza de que será preciso fazer rodízio, cidadãos começam a reivindicar que, sim, é preciso haver rodízio agora, neste instante, já que não é possível voltar atrás no tempo e começar a fazê-lo meses e até anos antes, o que teria tornado a situação de hoje menos desesperadora. Gente que percebeu que deveríamos desde sempre ter compreendido que não é possível consumir água dessa maneira descuidada, como se os recursos fossem infinitos, nem jamais deveríamos ter nos acostumado a abusos como usar água potável para dar descarga no banheiro ou deixar a água ir embora sem criar sistemas de reúso. Cidadãos que sabem que é preciso mudar não na emergência, mas para sempre. Enquanto o governador, mais uma vez, prioriza suas ambições eleitorais e ainda está “estudando” se haverá um plano de contingência, há cidadãos que decidiram lidar com a realidade e pressionar as autoridades a tomar decisões reais num mundo real, antes que só reste o êxodo.
Este é um dos poucos efeitos positivos da catástrofe que se anuncia. Aponta que ainda temos um caminho se cada um assumir a sua responsabilidade, incluindo aí a de pressionar o poder público a assumir a sua própria. Pertence a esse conjunto de reação a Aliança pela água, reunindo várias organizações que superaram suas diferenças em nome da emergência comum. Assim como os coletivos de jornalismo independente, entre eles a Mídia Ninja e a Ponte, que se uniram para documentar o colapso da água criando “a conta da água” na internet. Diante da pouca confiabilidade da informação oficial e da certeza de que foram enganadas por tempo demais, por todos os lados pessoas estão se juntando na busca de abarcar a dimensão do que está acontecendo e pensar no que fazer e em como viver daqui para a frente.
Um desses encontros aconteceu em 28 de janeiro na Casa de Lua, uma organização feminista que chamou os moradores de São Paulo pelas redes sociais para debater, produzindo um momento muito rico, tanto na intensidade das angústias quanto na sinceridade das respostas em construção. O encontro pode – e deve – ser assistido aqui. Entre os vários momentos interessantes, uma mulher fez a pergunta: “Eu sou uma pessoa comum, uma microempresária. Eu quero saber o que fazer, como eu posso ajudar”. A resposta de um dos debatedores, que restringiu-se a alterações no perímetro da casa e da família, não a satisfez. Ela então retrucou: “Vocês não estão entendendo. Eu acho que chegamos a esse ponto por que cada um sempre pensou em resolver apenas o seu problema. Eu quero saber o que posso fazer não para mim, mas para todos”.
“A negação como política de governo e como defesa psíquica”
A psicóloga paulistana Camila Pavanelli de Lorenzi, 32 anos, é uma das que está fazendo alguma coisa, se moveu. Ela começa a se tornar uma referência nas redes sociais por causa de seu Boletim da Falta D’água, criado em outubro de 2014. Nessa conversa comigo, ela conta como passou a dividir o doutorado na Universidade de São Paulo – sobre “os conceitos psicanalíticos de sublimação e realidade”, a partir da série de TV “The Wire” e de dois livros nos quais a série é baseada – com sua investigação pessoal sobre a catástrofe em curso. É revelador que seja uma psicóloga a tentar compreender o que as notícias da água dizem para além do que está escrito. Os grifos são meus, os parênteses são dela:
Como foi que começou a fazer o boletim?
Camila – Comecei numa noite em que eu estava especialmente de saco cheio de passar o dia lendo notícias – tanto sobre a falta d’água quanto sobre o posicionamento oficial do governo de que não faltava água – e decidi reunir e resumir tudo o que eu havia lido num texto só. Postei no Facebook. Compilar essas informações me trouxe algum alívio. Eu precisava (preciso ainda) entender o que diabos estava acontecendo. Havia muita coisa sendo publicada sobre a falta d’água, mas em veículos diferentes – era difícil ter uma visão mais abrangente da real gravidade da situação. Então fiz essa compilação de notícias naquela noite. Fiz a mesma coisa na noite seguinte, com o mesmo objetivo de me situar melhor em meio ao caos – e, de quebra, compartilhar o que eu estava lendo com meus amigos. E depois não vi motivos para parar. Eu sentia (sinto ainda) que não havia uma linguagem para falar sobre a chamada crise da água, e que era preciso (é ainda) criar essa linguagem. Depois de uma semana postando os boletins no Facebook, várias pessoas começaram a sugerir que eu criasse um blog ou tumblr só para eles. Achei que fazia sentido, e fiz um tumblr. Mas continuo postando os boletins na minha página pessoal do Facebook também, para facilitar os compartilhamentos.
Como você faz esse acompanhamento cotidiano?
Camila – No começo eu fazia todo dia. Acessava sites de notícia, fosse da grande mídia ou da mídia alternativa, e os órgãos oficiais do governo. Aí uma coisa levava a outra. Saía uma notícia sobre um processo ou decisão judicial, eu ia atrás desse documento. Saía uma notícia que não diferenciava muito bem os conceitos de pluviometria e vazão, eu ia atrás de um manual de hidrologia para entender os conceitos um pouco melhor. E assim fui construindo uma narrativa sobre a falta d’água no estado de São Paulo, dia a dia. Parcial, informal, incompleta, amadora. A minha narrativa do que estamos vivendo, enfim.
Como são seus dias desde então?
Camila – No ano passado, dediquei cerca de duas horas todas as noites à escrita do boletim. Passei a frequentar menos a academia. Passei a escrever menos no meu blog pessoal. Passei a escrever menos e-mails longos para os amigos. Neste ano, ainda não sei dimensionar quantas horas essa maluquice está me tomando. Ainda estou aprendendo a fazer um boletim semanal. Acabei de criar uma conta no Twitter (@bolfaltadagua) para me ajudar, para reunir uma pré-seleção de links. Vou tuitando e retuitando ali tudo o que leio de interessante. Desse mundaréu de notícias, vou selecionar algumas para costurar a narrativa da semana.
O que você faz quando não está olhando para a água ou para a falta dela?
Camila – Trabalho na minha tese, cozinho, cuido da casa, escrevo no meu blog. Levo a mais pequeno-burguesa das vidas, em suma.
O que te pega mais nessa questão da água?
Camila – A negação. Sobretudo a negação como política de governo. Eu não entendo nada de água, meio ambiente, gestão de recursos hídricos, nada disso. Mas eu entendo muito de negação como defesa psíquica. A negação foi catastrófica na minha vida pessoal e precisei de anos de análise para começar a elaborar alguns lutos (para não soar muito enigmática: minha mãe morreu quando eu tinha dez anos e sempre encarei isso como um fato normal e corriqueiro da vida, como se não fosse nada demais, “é chato, mas acontece” etc. Foi com a análise que pude sentir pela primeira vez a tragédia que foi eu ter perdido a minha mãe). Aí, de repente, eu vejo a negação sendo adotada pelo governo do estado como forma de lidar com uma crise sem precedentes na história do Brasil. E isso evidentemente tem efeitos sobre a população. Isso me fascina, na verdade: as relações entre a negação como política de governo e a negação como defesa psíquica. Porque ninguém, de verdade, acredita que a água vai acabar (ou, se acredita, não consegue conceber o que significa isso). E é compreensível que seja assim. Como acordar de manhã, ir para o trabalho, cuidar dos filhos – levar a vida de sempre, enfim – quando se tem a perspectiva de que a água pode acabar dentro de poucos meses? Melhor acreditar que a crise não é tão grave assim. E acabou que tivemos a união da sede com a vontade de beber. De um lado, a população que desejava ouvir que estava tudo bem e que poderia seguir com a vida normalmente; de outro, um governo que realizou plenamente esse desejo, garantindo que não faltava nem faltaria água em São Paulo.
Você termina seus boletins dizendo: “Pode entrar em pânico que segunda que vem tem mais”. Vi no debate da Casa de Lua que essa questão, entre ter calma, como foi colocado por outra debatedora, e a sua conclamação/autorização para, ao contrário, entrar em pânico, te perturbou. O que tem pensado sobre isso?
Camila – Fiquei perturbada, sim. Nos primeiros dias eu concluí o boletim com “calma que amanhã tem mais”. Mas logo me dei conta de que o problema era justamente que estávamos calmos demais. Pânico, para mim, não é “ó meu deus vamos todos morrer mesmo então melhor se matar antes”. Pânico, para os fins do Boletim da Falta d’Água em SP, é o oposto da letargia institucionalizada. É o oposto de “não falta água, não faltará água em São Paulo”. É o meu manifesto antinegação. É um apelo para que as pessoas se informem sobre o que está acontecendo e, a partir daí, tomem as ações que julgarem mais adequadas. Como não acredito em ação sem reflexão, acho importante estar bem informado para resolver o que fazer. E isso em todos os níveis: desde construir cisterna em casa até exigir providências das autoridades, passando pela organização de redes de solidariedade nos bairros e comunidades.
(Fim da conversa com Camila)
A disputa da narrativa já começou
A palavra “crise” me parece muito pequena diante do que já está desenhado. Talvez coubesse anos atrás, momento em que, se tivesse sido pronunciada, assumida e enfrentada, poderia ter tido seu impacto reduzido. Hoje, não mais. Alguns têm sugerido a palavra “colapso”. E colapso pode dar conta da impossibilidade de viver como antes, da convicção de que não existirá mais “a vida de sempre”, de algo que não pode ser refeito sobre as mesmas bases. O que se anuncia me parece poder ser representado por “catástrofe”, palavra que escolhi usar mesmo correndo o risco de ser chamada de “apocalíptica”, como já se acostumaram a ouvir todos aqueles que alertam para os rumos perigosos de São Paulo e do país, assim como para os desafios da mudança climática do planeta há anos, décadas. Já padecemos demais com os eufemismos esgrimidos pelas autoridades. Mas, ainda que saibamos que as palavras são importantes, jamais podemos esquecer que os extremos de nossa condição são irrepresentáveis, escapam da linguagem. É também a batalha da linguagem que travaremos – e nela está também tudo aquilo que não vira palavra.
É isso que Camila também diz quando afirma que ainda não encontrou a linguagem para expressar o que vive. Ela, assim como todos aqueles que, individual ou coletivamente, se mobilizaram para documentar a catástrofe da água são filhos desses tempos de internet e têm enorme importância para a construção da realidade do dia seguinte. Quanto mais múltiplas forem as versões, melhor para a busca das verdades dos fatos e para a interpretação das subjetividades. A disputa narrativa já começou, e as armadilhas são proporcionais ao tamanho do desafio.
Uma versão bastante difundida por alguns noticiários, em especial os da TV aberta, tem sido a de que o problema dos apagões de energia seriam decorrentes das hidrelétricas que ainda não foram concluídas, como Belo Monte, ou das que ainda não foram iniciadas. Em seguida, vem o culpado: “por atrasos/dificuldades no licenciamento ambiental”. Por que eu me refiro à escassez de energia quando estava falando da escassez de água? Primeiro, porque são temas relacionados. Segundo, porque aqui claramente é demonstrada a repetição do discurso da dissociação e da negação. E foi também a dissociação e a negação, em todos os planos, que nos trouxe até o estado atual de calamidade.
Talvez nunca tenhamos precisado tanto fazer relações e compreender o mundo dentro de uma teia de ação e consequências como hoje. A narrativa que compartimenta falseia e informa mal. Está superada em todas as áreas, inclusive na educação. No momento em que sofremos as consequências da irresponsabilidade de nossas escolhas, em que as questões ambientais devem estar no topo das nossas prioridades se quisermos ter alguma chance, em que executivos das grandes empreiteiras que constroem as grandes hidrelétricas e que são as grandes financiadoras de campanhas políticas estão na cadeia por conta da operação Lava Jato, tenta-se de novo e sempre colocar ambientalistas e preocupações ambientais como um “entrave”. Por que e a serviço de quem? Ignorância, má fé ou ambas?
Um exemplo. A falta de água se anuncia como catástrofe, mas, ao mesmo tempo, o governo federal quer concluir Belo Monte, no rio Xingu, apesar de todas as irregularidades e da denúncia de etnocídio indígena, e barrar o Tapajós. Aqui, há algumas relações que podem ser feitas: 1) as hidrelétricas têm grande impacto no desmatamento e na destruição ambiental, não apenas pela obra em si, mas também pelo desequilíbrio que provocam ao expulsar ou realocar comunidades, assim como a quantidade de migrantes que atraem e todas as consequências envolvidas nisso; 2) a devastação da Amazônia, onde hoje estão sendo feitas e planejadas as grandes barragens, já é dramática e compromete o clima; 3) há cientistas e trabalhos científicos de alto nível mostrando que a floresta amazônica tem um papel estratégico na regulação do clima do Brasil e do planeta, o que envolve a questão das chuvas no sudeste do país; 4) os reservatórios das hidrelétricas ficam baixos quando a chuva é escassa, comprometendo o abastecimento da energia; 5) priorizar hidrelétricas na Amazônia e culpar a resistência a elas pelo desabastecimento é encobrir que o governo federal não fez o necessário investimento na diversificação de fontes de energia; 6) é também escamotear que, em vez de conscientizar a população da necessidade de poupar, porque os recursos são finitos, o governo federal fez exatamente o contrário disso, estimulando o consumo; 7) os enormes problemas sociais e ambientais causados pelas hidrelétricas, e neste quesito Belo Monte é o nosso atual mostruário (ou “monstruário”, como alguns preferem), são causados também porque o processo de licenciamento ambiental não é respeitado nem as condicionantes legais, aquilo que é preciso fazer para que a obra possa ser realizada com danos menores, não são cumpridas.
Em resumo: a verdade é muito mais complicada e atrapalha os poderosos interesses envolvidos. Os links dos últimos parágrafos são de grande importância para quem compreender que precisa compreender o que está em jogo e participar das decisões. Se pode emergir algo de positivo desse momento que vivemos é o de fazer com que questionemos a nossa relação com o meio ambiente, assim como o nosso lugar num planeta cada vez mais hostil pela nossa ação, dando-nos a chance de nos tornarmos pessoas capazes de enfrentar os desafios dessa época, que, como qualquer um pode perceber, são enormes.
O que está em jogo não são obras, mas nossa relação desastrosa com o meio ambiente, nossa dissociação com a natureza e nossa ignorância. Ignorância no sentido de desconhecer até mesmo que é preciso conhecer. É imperativo romper com a negação. E podemos começar a fazer isso aumentando nossa leitura crítica e construindo as relações necessárias. Não custa lembrar sempre que, como diz a frase famosa, “na guerra, a verdade é a primeira vítima”.
Os possíveis cenários da “guerra da água”
Quem seremos nós quando a água acabar? Tudo indica que saberemos muito em breve. Uma reportagem de O Estado de S. Paulo mostra que, seis anos atrás, um estudo envolvendo 200 especialistas mostrou ao governo paulista uma projeção do que aconteceria se a crise não fosse enfrentada. O relatório chama-se “Cenários ambientais 2020”. Nele, projetava-se, a partir das informações disponíveis, o que aconteceria até este ano caso medidas não fossem tomadas. O objetivo do estudo era estabelecer planos de ação para impedir que os cenários mais pessimistas se realizassem – ou seja, para evitar a realidade de hoje.
É aterrador de várias maneiras, a começar pelo fato de que o estudo encomendado pelo governo do PSDB foi ignorado pelo governo do PSDB, resultando no que está aí. Mas é aterrador também pelo cenário sugerido no documento como o mais provável. O texto é escrito como se o narrador já estivesse em 2020 e tudo já tivesse acontecido.
Diz a reportagem: “O estado (de São Paulo) teria assistido nesse período (2015) a um ‘conflito pelo uso dos recursos hídricos’, que desencadeou uma ‘guerra da água’ entre algumas regiões. Essa guerra teria começado após ‘um ano atípico de chuvas, com precipitações muito abaixo do esperado’”. O documento diz ainda: “O ano de 2018 significou um marco na história do uso da água no estado de São Paulo e os problemas verificados podem ser considerados uma continuação daqueles da crise de 2015. Em determinadas regiões, em função do uso intensivo de agrotóxicos (defensivos agrícolas) e fertilizantes (adubos), as águas superficiais e subterrâneas foram afetadas, comprometendo o abastecimento público de alguns municípios. As ações judiciais se multiplicaram, no rastro das manifestações populares que reivindicaram o abastecimento público em detrimento do agronegócio. A Agência Nacional de Águas (ANA) disponibilizou técnicos que auxiliaram na mediação do conflito. No auge da crise, prefeitos e vereadores aprovaram pacotes com leis restringindo temporariamente atividades econômicas de uso intensivo de água”.
Esta é a projeção realizada em 2009 – e ignorada. Agora, estamos no presente, em 2015, ano em que a “guerra da água” começaria.
Que impacto terá a falta de água nos empregos? Como farão os pais para trabalhar se os filhos ficarem sem escola e sem creche? O que acontecerá com os doentes e os velhos? Que tipo de inferno ainda maior se tornarão os presídios e as instituições para crianças e adolescentes infratores? Como será nos hospitais se as doenças aumentarem? Será que devemos tentar fugir de São Paulo?
Estas são algumas das perguntas que aparecem nos debates sobre a água, vindas de uma plateia cheia de angústia diante da incerteza de um futuro que é logo amanhã. Da experiência concreta da realidade vem o exemplo da cidade paulista de Itu, no ano passado, quando donas de casa foram para as ruas com tomates e ovos e seus filhos com pedras, quando carros-pipa precisaram de escolta policial, quando surgiram traficantes de água, quando as pessoas foram assaltadas depois de horas na fila para encher um galão ou um balde. Quando os assaltantes queriam não mais dinheiro, mas água. A Grande São Paulo se tornará Itu, multiplicada por milhões?
Depende de nós construir, coletivamente, uma resposta que não seja a barbárie do individualismo e do salve-se quem puder ou quem tem mais dinheiro. Os mais ricos podem sair da cidade, a classe média vai ter que aprender com os mais pobres, que há muito estão submetidos ao regime de rodízio de água sem que ninguém se importe além deles, como é que se vive na escassez. O que não podemos permitir é que a catástrofe da água seja reduzida a um problema de segurança pública, com as forças de repressão do Estado a serviço dos mesmos de sempre, como já se tornou um hábito no tratamento das questões mais profundas, exatamente para desviar o foco, esvaziar o conteúdo e escapar das responsabilidades.
Para começar, precisamos entender que o que parece anormalidade, exceção, é possivelmente a normalidade daqui em diante. São Paulo apenas antecipa o futuro por todos os superlativos com os quais foi construída. Precisamos nos preparar para um clima de extremos, nosso mundo já é pior. E é pior, na compreensão de 97% dos artigos científicos sobre o clima, por causa da ação humana sobre o planeta. Assim, precisamos mudar mesmo. E a água é apenas o tema mais urgente que exige nossa participação nas decisões da cidade, do estado e do país – do mundo. E está relacionada com as principais questões socioambientais. A água não pode mais ser vista como mercadoria.
Não há tempo para formar uma geração que compreenda os desafios desse momento histórico. Teremos de enfrentá-los com os homens e mulheres imperfeitos de nossa época – arrogantes, consumistas, egoístas e inconsequentes, ainda com as ilusões da modernidade batendo em nossos corações enquanto o mundo ao nosso redor se arruína. Terá de sermos nós, a única matéria humana disponível, com o melhor que conseguirmos encontrar na escassez íntima de nossos interiores.
O tempo de despertar já passou. Agora é preciso acordar em pé.
(Publicado no El País em 02/02/2015)