O momento do Brasil, culminando com as manifestações de 13 de março, mostra os riscos de uma adesão pela fé: é preciso resistir pela razão
Manifestantes levantam o boneco que remete ao ex-presidente Lula, na avenida Paulista, no domingo (13). PAULO WHITAKER REUTERS (Reprodução do El País)
Não se constrói um projeto político com crentes. Mas a angústia, no Brasil de hoje, se dá também pela vontade de acreditar que algo é verdadeiro num cotidiano marcado por falsificações. O perigo é que, quando o roteiro dos dias parece ter sido escrito por marqueteiros, não cabe razão nesse acreditar. Exige-se fé. Quando a política demanda adesão pela fé, é preciso ter muito cuidado. Os partidos que estão aí, puxando para um ou outro credo, podem acreditar que lhes é favorável ter uma população de crentes legitimando seus projetos de poder. Mas a adoração, rapidamente, pode se deslocar para outro lugar, como alguns já devem ter começado a perceber depois das manifestações do domingo, 13 de março. Ou pior, para um ídolo de barro qualquer. Rebaixar a política nunca é uma boa ideia para o futuro. Quem acha que controla crentes, com suas espirais de amor e de ódio, não aprendeu com a história nem entende o demasiado humano das massas que gritam.
Há uma enorme descrença nos políticos e nos partidos tradicionais, este já é um lugar comum. Mas é importante perceber que a esta descrença se contrapõe não mais razão, mas uma vontade feroz de crença. Quando os dias, as vozes e as imagens soam falsas, e a isso ainda se soma um cotidiano corroído, há que se agarrar em algo. Quando se elege um culpado, um que simboliza todo o mal, também se elege um salvador, um que simboliza todo o bem. A adesão pela fé, manifeste-se ela pelo ódio ou pelo amor, elimina complexidade e nuances, reduz tudo a uma luta do bem contra o mal. E isso, que me parece ser o que o Brasil vive hoje, pode ser perigoso. Não só para uma ditadura, como é o medo de alguns, mas para que se instale uma democracia de fachada, como já vivemos em alguns aspectos.
Uma democracia demanda cidadãos autônomos, adultos emancipados, capazes de se responsabilizar pelas suas escolhas e se mover pela razão. O que se vê hoje é uma vontade de destruição que atravessa a sociedade e assinala mesmo pequenos atos do cotidiano. O linchamento, que marca a história do país e a perpassa, é um ato de fé. Não passa pela lei nem pela razão. Ao contrário, elimina-as, ao substituí-las pelo ódio. É o ódio que justifica a destruição daquele que naquele momento encarna o mal. Isso está sendo exercido no Brasil atual não apenas na guerra das redes sociais, mas de formas bem mais sofisticadas. Isso tem sido estimulado. Quem acha que controla linchadores, não sabe nada.
Talvez o mais importante, neste momento tão delicado, seja resistir. Resistir a aderir pela fé ao que pertence ao mundo da política. Fincar-se na razão, no pensamento, no conhecimento que se revela pelo exercício persistente da dúvida. É mais difícil, é mais lento, é menos certo e sem garantias. Mas é o que pode permitir a construção de um projeto para o Brasil que não seja o da destruição. Quem sofre primeiro e sofre mais com a dissolução em curso são os mais pobres e os mais frágeis. É preciso resistir também como um imperativo ético.
Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus.
Mas nunca, desde a redemocratização, pelo menos, foi tão difícil vencer esse paradoxo: à enorme descrença se contrapõe uma enorme vontade de crença. Uma vontade desesperada de fé. E isso vale para todos os lados.
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Seria bom se a gente pudesse acreditar que as centenas de milhares que foram às ruas neste domingo querem o fim da corrupção no Brasil. A beleza de um país unido contra aquilo que o arrasta para o esgoto é uma imagem forte, poderosa. Mas a massa verde-amarela, vista de perto, delata a si mesma. Quem quer o fim da corrupção no Brasil não levanta bonecos de Lula (PT) e de Dilma (PT) e esquece todos os outros que não pertencem ao partido que quer arrancar do Governo. Quem quer o fim da corrupção no Brasil jamais teria negociado com Eduardo Cunha (PMDB), como lideranças que organizaram as manifestações negociaram há pouco tempo atrás. Nem usa camiseta da CBF, mais corrupta impossível. Nem tira selfies com uma polícia que sistematicamente viola a lei.
A corrupção é uma bandeira conveniente para quem nada quer mudar mas precisa fazer de conta que quer. Ela sempre cabe, porque, ao mesmo tempo que é consenso – ou alguém vai se declarar a favor da corrupção? –, é difusa. Elege-se os corruptos a destruir, que viram bonecos, rostos a ser eliminados. E nada se muda da estrutura que provoca as desigualdades e permite a corrupção de fundo. É interessante perceber, quando não se adere pela fé, que os alvos nas ruas são os políticos – majoritariamente Lula e Dilma, contra quem até agora nada foi ainda provado. Há indícios, há delações, há investigações em curso. Mas nada ainda foi provado. Mas o que importam os fatos quando o que vale é a propaganda? O que importa a verdade quando a demanda é por crença?
O rosto dos corruptos nas ruas, aqueles que simbolizam a corrupção que se diz combater, é o rosto de governantes, um ex-presidente e sua sucessora. É um único partido, quando há vários outros envolvidos. Os alvos nas ruas são aqueles identificados com o Estado. Não há bonecos de expoentes do empresariado nacional, alguns deles já presos, julgados e condenados. As entidades de classe empresarial que conclamaram seus associados à adesão aos protestos deste domingo não bradaram contra seus pares na prisão. A cara do Mercado, a outra face dessa história, não está as ruas como ré, apesar de também ser protagonista do esquema que está sendo desvendado pela Operação Lava Jato.
E por que não está? Para entender um quadro por completo, tão importante quanto ver quem está é perceber quem não está.
Não há como afirmar o que cada um que foi às ruas deseja, qual foi a insatisfação que o levou até ali. São muitas as paixões – e o espaço público pertence a todas elas. Mas é importante observar que o senador Aécio Neves e o governador Geraldo Alckmin, dois dos presidenciáveis do PSDB, entraram na Avenida Paulista alegremente e saíram dela hostilizados, o que talvez lhes ensine alguma coisa. Quem foi ovacionado aos gritos de “Mito! Mito! Mito!”, ao participar da manifestação em Brasília, foi o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC), expoente nacional da direita caricata, que odeia gays e adora armas. E, acima de todos, como ícone positivo e salvador da Pátria, a figura onipresente do juiz Sérgio Moro, em cartazes e camisetas. A mais notória delas em inglês: “In Moro we trust” (Em Moro, nós confiamos). Ela parodia o lema dos Estados Unidos estampado nas notas do dólar: “In God we trust” (Em Deus, nós confiamos).
É importante escutar o discurso dos líderes dos movimentos que organizaram os protestos, assim como perceber com que partidos se aliam em suas aspirações políticas. A parte final do artigo escrito pelo coordenador do MBL (Movimento Brasil Livre) e colunista da Folha de S. Paulo, Kim Kataguiri, é particularmente reveladora, ao fazer uma analogia entre o momento atual e a série de TV Power Rangers, para conclamar os brasileiros a comparecer à manifestação: “Com seis anos, eu lutava contra monstros que eram derrotados e voltavam gigantes. Lula, depois de ter sido derrotado no mensalão, voltou ainda maior no petrolão. Os Rangers uniam-se e fundiam seus veículos para compor o robô gigante. Precisamos de algumas centenas de milhares de brasileiros para montar o nosso”. Deve acreditar ter conseguido “montar” seu “robô gigante” nos protestos de domingo.
Escutando as lideranças dos protestos pelo impeachment da presidente com atenção é fácil perceber que este novo é velho. Tão velho quanto a rasteira luta do bem contra o mal.
Seria bom acreditar que a massa verde-amarela nas ruas quisesse de fato o fim da corrupção no Brasil. Pela razão, não é possível acreditar. Pela crença, sim.
Seria bom se a gente pudesse acreditar que a oposição ao Governo e ao PT tivesse um projeto para o país que não fosse apenas um projeto de ocupação e loteamento do poder. Ou de manutenção do poder, caso do PMDB, partido que hoje comanda seis ministérios e a vice-presidência da República. É preciso muita fé para acreditar nisso depois do jantar de 9 de março entre líderes do PSDB e do PMDB, em Brasília. Entre eles Aécio Neves e José Serra, dois dos presidenciáveis do PSDB, reunidos com, entre outros, o peemedebista Renan Calheiros, presidente do Senado e alvo de seis inquéritos na Lava Jato. Na semana passada, a abertura de um sétimo inquérito foi pedida ao Supremo Tribunal Federal.
Presidenciáveis do PSDB negociando com Renan Calheiros, aquele que apenas horas antes havia entregue a Lula um exemplar da Constituição, testando até que ponto se pode manipular as imagens, aprofundar o escárnio e debochar da lei. PMDB e PSDB, juntos, debatendo sobre a partilha do poder depois da queda de Dilma Rousseff e do PT. Ou sobre como dividir os despojos daqueles cuja morte já decretaram. Jantando o Governo e o PT e apertando as mãos na sobremesa, certos de que o futuro é deles, como já foi o passado. É só com muita fé para acreditar que essa imagem de butim seria o melhor para o país. Ou que representaria o fim da corrupção. No sábado, três dias depois deste jantar e na véspera das manifestações, o PMDB decidiu dar um “aviso prévio” à presidente Dilma Rousseff e ao PT, anunciando que deve desembarcar do Governo para não sair do poder.
Seria fundamental uma oposição forte e responsável ao Governo. Sempre é para uma democracia funcionar. Mas, entre os grandes partidos, não se ouviu uma única voz capaz de superar suas paixões pessoais e liderar com razão e responsabilidade. O que se viu foram mercadores desonestos, carniceiros. Urubus que, ao acreditar que comem carniça, não percebem que devoram junto suas próprias garras.
Seria bom se a gente pudesse acreditar que o juiz Sérgio Moro tivesse de fato convicção que a “condução coercitiva” de Lula não só cumpria os requisitos da lei como evitaria confrontos, como afirmou em nota pública. E, mais ainda, que “cuidados foram tomados para preservar, durante a diligência, a imagem do ex-presidente”. Que tipo de candura seria necessária a Moro e também aos procuradores do Ministério Público Federal para não imaginarem que, para o Brasil, o que viraria verdade é que Lula foi preso diante das câmeras? E que isso, por si só, já julgaria e condenaria o ex-presidente sem julgamento nem condenação? Que tipo de inocência seria necessária a Moro e a seus pares para não perceber que “condução coercitiva”, termo que não faz parte do vocabulário da população nem é de fácil apreensão, seria sinônimo de prisão? E que o espetáculo, com forte aparato policial, como se Lula fosse o próprio Al Capone, seria decodificado como a prisão de Lula? Espetáculo, é importante sublinhar, para o qual uma parte da imprensa foi convidada para garantir a produção e a difusão da imagem de forte poder simbólico.
É preciso que estes homens da lei (?) sejam ingênuos, o que também não é uma boa característica para a profissão. Ou, o que é mais fácil de mobilizar, como se viu: é preciso de fé. Da nossa fé.
O que aconteceu naquela sexta-feira feira, 4 de março, em que Lula foi tirado de casa por policiais federais e levado para o Aeroporto de Congonhas, foi grave. Muito grave. O juiz e os procuradores deveriam ser os primeiros a querer evitar de todos os modos essa simbologia. A imagem de Lula preso, para o Brasil inteiro, não mostra que a lei vale inclusive para ícones populares e ex-presidentes. Mas que a lei também não vale para ícones populares e ex-presidentes. Que o abuso e a violação de direitos, cuja maior representação são os milhares de presos sem julgamento atirados em penitenciárias medievais, assim como os negros humilhados pelas polícias nas periferias, são a regra para todos – ou quase todos.
O que o juiz e os procuradores estimularam nesta cena foi a vontade de linchamento. Porque levar alguém para depor dessa maneira, produzir esse tipo de imagem, também é um tipo de linchamento. E foram aplaudidos por parte da população por isso, porque atenderam à sanha, legitimaram a vontade de vingança ao dar-lhe roupagens de lei. Quando o rito da lei é substituído pela vingança, e essa substituição é permitida por quem é um agente da lei, é muito grave. É exatamente em períodos tão delicados da história que a lei precisa ser interpretada de forma mais conservadora. E seus agentes precisam ter a grandeza de abrir mão das vaidades pessoais e reprimir as paixões que também os habitam.
Sérgio Moro e os procuradores, assim como os policiais federais, não são heróis nem vingadores. São funcionários públicos. E é como funcionários públicos que precisam se comportar se quiserem estar à altura do cargo. Deles só se espera que façam bem – e discretamente – o seu trabalho.
E o que dizer dos promotores do Ministério Público de São Paulo, pedindo a prisão de Lula a três dias da manifestação de domingo? E sem nenhuma justificativa razoável, para além das confusões “filosóficas” que viraram piada nas redes sociais, quando, entre outras bobagens, confundiram Hegel com Engels? Importa perceber que a manchete, com foto, foi garantida: “MP de São Paulo pede a prisão de Lula”. E a manchete é mais forte do que os editoriais e as matérias internas. Qual é a verdade que se fabrica ali, e que tem sido repetida em cada esquina do país? Lula é culpado.
Mas até ser julgado e condenado, Lula não é culpado. Ou a lei não vale. E, atenção: se a lei não vale para Lula, também não vale para você ou eu.
É interessante perceber ainda que os promotores de São Paulo, chamados publicamente por alguns de “os três patetas”, obtiveram unanimidade num momento em que a unanimidade parecia impossível. O pedido de prisão de Lula foi condenado por todos os lados. Mas, pela razão, vale a pena duvidar um pouco dessa unanimidade. O estrago de um pedido de prisão nas manchetes já estava feito, o serviço já tinha sido cumprido. Talvez seja apenas esperteza condenar os agentes menos importantes. Não apenas para dar aparência de isenção, mas principalmente para salvar a imagem dos que realmente importam, que são os agentes da Lava Jato. Este pode ser um daqueles casos em que aqueles que se julgavam espertos, ao aproveitar o momento nacional em busca de glória, encontraram espertos ainda mais espertos. De imediato, “os três patetas” viraram bois de piranha nas redes sociais. E como sangraram.
Quando a justiça invade o espaço da política – e a política demanda adesão pela crença, em vez de pela razão, o risco é grande. O que aqueles que demandam fé não percebem é que o risco é grande para todos.
Seria bom acreditar que Lula, que personificou o principal projeto da esquerda na redemocratização do país, que de fato encarnou uma mudança histórica no Brasil ao ser o primeiro operário a se tornar presidente, é apenas um perseguido. Seria tudo mais fácil se assim fosse. Mas só com fé. Pela razão não dá.
Acossado, Lula fez o que melhor sabe fazer, aquilo que o tornou um dos presidentes mais populares da história. Lula foi Lula, o Lula que fala a linguagem do povo porque compreende o povo como poucos. E, por um momento, a maioria dos que um dia acreditaram, porque havia o que acreditar, foram tentados, fortemente tentados, a voltar a acreditar. Porque é tão mais fácil acreditar. Mas a estranheza, a estranheza que vem pelo pensamento, foi se imiscuindo. Mesmo quando empurrada para baixo, ela teima em subir à superfície. E, aos poucos, torna-se claro: Lula estava encenando Lula.
Ou melhor: o Lula atual estava encenando o Lula de antes. Porque o Lula de antes já não existe, nem poderia, já que qualquer pessoa é mudada pelas suas experiências. E Lula, mais do que a maioria, circulou por muitos mundos novos desde que se tornou presidente, e mesmo antes. Assim, o discurso virou farsa. Não fraude, mas farsa. E mesmo o que havia de verdade, porque obviamente ainda existe o Lula no Lula, revelou-se como falseamento quando visto pelas lentes da razão, do pensamento que alcança o conhecimento pela via da dúvida.
É um fato que o governo de Lula incluiu dezenas de milhões de brasileiros e melhorou a vida de todos. É um fato que a miséria e a fome diminuíram significativamente no seu governo. É um fato que o Brasil mudou – e mudou para melhor com Lula. E isso não é pouco, mas não é mesmo. Isso é enorme.
O “nunca antes neste país”, usado por ele e satirizado pelos adversários, é um fato em vários setores. Mas não é por isso que ele está sendo investigado. Mas sim pelo que também pode ter de fato feito. Pelo que há indícios de que tenha feito. Assim como outros membros do PT já foram julgados, condenados e presos pelo que de fato fizeram. Isso não é perseguição, isso é justiça. Buscar confundir, deliberadamente, uma coisa com outra, demanda fé. E má fé.
Para acreditar no discurso de Lula é preciso crer como um crente. E não é de hoje que Lula exorta seus eleitores a esse tipo de crença. Lula como presidente cultivou uma mística, a mística do pai. E, assim, reduziu eleitores a filhos – em vez de cidadãos. Em vez de estimular emancipação e autonomia, demandou obediência. Em vez de mostrar que políticas públicas são direitos, apresentou-as como bondades. Filhos que adoram não perdoam fraturas na imagem do pai. A paixão, que é um tipo de fé, em determinadas condições vira ódio. Lula arriscou-se quando se permitiu ser adorado – e gozar com isso. Assim como não se controla linchadores, também não se controla adoradores.
Hoje Lula é linchado simbolicamente por muitos que o veneravam, inclusive por parte daqueles que melhoraram sua vida radicalmente durante o seu Governo. Para estes, ele era um objeto antes, segue sendo um objeto agora. Apenas que antes movia paixão, e agora ódio.
Lula, que compreendeu o Brasil e os brasileiros como poucos, em qualquer tempo, perdeu um capítulo. E não qualquer capítulo, mas um fundamental: Lula ainda não compreendeu as manifestações de junho de 2013.
Ao lançar Dilma Rousseff como sua sucessora, Lula já tinha sido tomado por um delírio de onipotência, já era ele mesmo um crente de si mesmo. E poucas coisas são mais perigosas para uma pessoa pública do que isso. Ao partido, só cabia obedecer. Lula elegeu Dilma e a reelegeu, mas a que preço. Também tentou lançá-la como a “mãe dos pobres” e a “mãe do PAC”. Mas Dilma jamais teve essa vocação. Entre todas as mentiras apresentadas como verdades nessa realidade em que um Eduardo Cunha é o presidente da Câmara e um Renan Calheiros é presidente do Senado e um Michel Temer é vice-presidente do país, talvez seja Dilma justamente quem traga um pouco de honestidade pessoal ao enredo. É ela, a tão claramente atrapalhada, a tão claramente incompetente, a tão claramente irascível, que acaba, involuntariamente, revelando-se em atos falhos sem fim. Como no mais recente, em que negou que estivesse cogitando uma renúncia dizendo: “Eu me renuncio…”.
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Quando o cenário desmorona e a vida é corroída no cotidiano, a vontade de acreditar aumenta. Quanto maior o falseamento e mais frágeis as verdades, maior a vontade de crença. Entre as crenças que talvez uma parte da esquerda esteja tentada a embarcar está a de que este é um momento de estar em um lado ou em outro lado. Havia pelo menos uma condição que na ditadura era mais fácil, a de que ou se estava contra ela ou a favor. Era muito fácil saber quem eram os inimigos – e os que não eram inimigos eram amigos. A democracia complica as coisas ao aumentar as nuances. Apesar de muito mais difícil, é bem melhor que as coisas sejam vistas como de fato são: complexas. Nostalgias do preto e branco podem ser perigosas, mais ainda num cérebro com vontade de crença.
Posso estar equivocada, errar é um risco de quem se arrisca a pensar. Mas recuso – e recuso pelo pensamento – a polarização. Há muitos, nos quais me incluo, que não estão nem cá nem lá. E, ao contrário do que dizem uns e outros, também não estão em cima do muro. Há posição e há posicionamento forte para além da polarização. Já afirmei, mais de uma vez neste espaço, que, no meu modo de ver, a alegada polarização é mais uma falsificação entre tantas neste momento conturbado do país. O problema de Lula e do PT é muito mais quem não está nas ruas contra eles, mas também já não estaria a favor. Este recusar um lado e outro é ativo, é posição.
Repudio o que Sérgio Moro e seus pares fizeram com Lula não por ele ser ex-presidente, mas porque sempre denunciei o abuso de policiais e de outros agentes da lei como prática de sua atuação junto às populações mais pobres e desamparadas das periferias, do campo e da floresta. Incluindo nesta denúncia todas as prisões ilegais feitas nos protestos de 2013 pela tarifa zero, nos de 2014 contra as remoções promovidas em nome da Copa do Mundo e nos de 2015 contra a “reorganização escolar” feita por Geraldo Alckmin. Reconheço o que os governos Lula-Dilma fizeram no combate à miséria e na ascensão social de milhões. Assim como reconheço seu protagonismo no tema das cotas raciais e na ampliação do acesso à universidade, entre outros temas de fundamental relevância.
Mas repudio a violação escandalosa de direitos em grandes obras na Amazônia, como Belo Monte. Se o esquema de corrupção revelado nas delações da Lava Jato for comprovado, é apenas uma das pontas. A violência promovida pela Norte Energia e pelo Governo Federal, duas esferas que seguidamente se misturavam, é bem documentada há anos. Assim como repudio o desrespeito aos direitos indígenas e o sumiço da reforma agrária da pauta.
Lamento a falta de investimento em saneamento básico, uma das principais razões da expansão do Aedes aegypti e sua coleção de doenças. Assim como o investimento insuficiente em educação, principal instrumento da emancipação de um povo, para muito além do acesso a bens de consumo. Também lamento uma visão medíocre de cidade e de cidadania. E abomino a cegueira socioambiental deste Governo, mais criminosa ainda por vivermos em tempos de mudança climática.
Quando Lula e o PT reclamam dos abusos de Sérgio Moro, dos procuradores e da Polícia Federal, têm razão em alguns casos, como o da “condução coercitiva”. Mas a razão que têm não faz desaparecer o fato de que este Governo colocou a Força Nacional a serviço da Norte Energia – e das empreiteiras – na ocupação do canteiro de Belo Monte por indígenas, ribeirinhos e movimentos sociais de Altamira, no Xingu, assim como na repressão aos Munduruku, que protestavam contra a construção de hidrelétricas no rio Tapajós. Nem faz desaparecer o quanto este Governo compactuou com a repressão e a prisão de manifestantes na Copa do Mundo de 2014. Muito menos faz desaparecer a abominação da lei antiterrorismo, de iniciativa deste Governo, que está na mesa de Dilma Rousseff para ser sancionada.
Aponto as contradições dos governos Lula-Dilma desde muito antes de a The Economist publicar uma capa do Cristo Redentor decolando como um foguete (e depois outra com o mesmo Cristo afundando após um voo curto). Ou de a Newsweek chamar a presidente de “Dilma Dinamite”, avisando: “Não mexa com Dilma”. Já criticava Dilma Rousseff quando setores que hoje a lincham a exaltavam. Concordo com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando ele diz que “Dilma é um fóssil”. Minha avaliação é de que ela tem uma cabeça cimentada no século 20 e não consegue compreender nenhum dos grandes debates que vieram depois. Considero Dilma Rousseff um desastre pela sua miopia sobre os grandes temas do Brasil e do mundo.
Ainda assim, enquanto não houver provas de que a presidente cometeu ilegalidades, não me parece possível apoiar seu impeachment. Respeito o voto da maioria, mesmo quando não concordo com ele. Ser cidadão é ser adulto – e ser adulto é responsabilizar-se pelo seu voto e lutar pelo respeito ao voto do outro. Se as provas aparecerem, e só assim, esse processo pode ganhar legitimidade e então apoio.
Jamais estaria ao lado dos que promoveram as manifestações de 13 de março. Conheço esses protagonistas de outras décadas. O figurino de novidade não cobre o mofo de quem sempre esteve no mesmo lugar. O que representam nunca saiu do poder no Brasil. E, quando escutados com atenção, é possível ouvir o som de fundo: tudo o que querem é manter seus privilégios intactos. Não será com a minha fé.
Setores do PT traíram um projeto que não pertencia apenas a eles, mas a pelo menos duas gerações de esquerda. É preciso construir outro, por outros caminhos, que passa por tudo o que se aprendeu com 2013. Neste momento histórico, o que sabemos fazer já não é suficiente. É preciso encontrar uma outra forma de fazer. Tudo o que importa está paralisado por essa falsa polarização. É preciso se mover e fazer o que importa. No cotidiano, dia após dia. Esta não pode se tornar uma democracia de fachada. Como já escrevi, não porque temos esperança. Neste momento histórico, a esperança é um luxo, um supérfluo. É preciso fazer por imperativo ético.
Diante da necessidade de se construir um novo projeto para o país, me parece necessário resistir à vontade de crença. Prefiro ser ateísta também na política.
(Publicado no El País em 14 de março de 2016)