Quando a narrativa da propina se impõe sobre a da violação de direitos humanos, as contradições em jogo neste momento histórico são denunciadas
Um dos buracos artificiais de Belo Monte. LILO CLARETO
E Belo Monte finalmente chegou às manchetes da grande imprensa – e aos corações e mentes dos “cidadãos de bem” deste Brasil – como denúncia. Segundo a Folha de S. Paulo, Otávio Marques de Azevedo, ex-presidente da Andrade Gutierrez, uma das maiores empreiteiras do país, revelou à Operação Lava Jato um esquema de propinas no valor de 150 milhões de reais envolvendo a hidrelétrica. O dinheiro seria dividido em partes iguais entre PT e PMDB e teria sido entregue pelas construtoras envolvidas na obra da hidrelétrica na forma de doações legais às campanhas eleitorais de 2010, 2012 e 2014. Basicamente, lavagem de dinheiro de propina via financiamento de campanha. Se o esquema exposto em delação premiada for comprovado – e só depois disso – Belo Monte poderá alcançar a presidente Dilma Rousseff.
Há algo, porém, que a relação entre as delações premiadas da Operação Lava Jato sobre Belo Monte já expõe de forma explícita. Onde está o valor – ou onde estão as prioridades. A hidrelétrica só se torna objeto de denúncia quando a ela é relacionado um esquema de propinas que ainda precisa ser comprovado. Em seguida, setores que sempre defenderam a construção de Belo Monte e a enalteceram como uma “magistral obra de engenharia”, como se fosse a parte boa do governo de Dilma Rousseff, passam a denunciar a usina na expectativa de que, desta vez, a presidente seja alcançada.
Acontece com Belo Monte o que aconteceu com o tema da corrupção: ele passa a ser apropriado pela direita. Ou, dito de outro modo: as denúncias envolvendo a construção da hidrelétrica são sequestradas para dentro do amplo guarda-chuva da corrupção. Com mais entusiasmo, porque, se comprovadas, Belo Monte pode levar ao que faltava, uma ligação com a campanha de 2014. Diante das denúncias, Dilma Rousseff e a Norte Energia, empresa concessionária, negaram irregularidades.
Essa apropriação é particularmente interessante porque aponta as dificuldades de parte da esquerda neste momento. Se o esquema de propinas ainda precisa ser comprovado, as violações de direitos humanos e a destruição ambiental produzidas pela hidrelétrica estão fartamente documentadas. Mas a esquerda ligada ao PT silenciou sobre essa violência todos esses anos. E silenciou mais uma vez quando a licença de operação foi dada à hidrelétrica sem que a empresa tivesse cumprido a totalidade das condicionantes que, como o nome diz, eram as condições para que pudesse funcionar. Se o tema dos direitos humanos não é exclusivo de um campo ideológico, é certo que sempre foi um tema caro à esquerda. Por ter silenciado, esta esquerda se deslegitima. E já não sabe o que é num momento em que precisa desesperadamente provar sua diferença com relação aos que lhe apontam um dedo acusatório.
Belo Monte torna-se, assim, um problema também para todos aqueles que, de forma suprapartidária, apresentam-se “contra o golpe” e “em defesa da democracia”. O ponto defendido é claro: ao posicionar-se contra o impeachment de Dilma Rousseff porque não há base legal para ele, defende-se a escolha das urnas, o voto, a democracia. Mas, ainda assim, a maioria dos participantes destes atos e manifestos precisam repetir o tempo todo que a defesa da democracia não se confunde com a defesa do governo, na medida em que vários aspectos deste governo são indefensáveis. É tudo menos fácil se manifestar pela democracia e o cumprimento integral do mandato de Dilma Rousseff enquanto, ao mesmo tempo, a presidente sanciona a lei antiterrorismo que, conforme a interpretação de quem aplica a lei, pode criminalizar justamente manifestações e movimentos sociais.
Essa dificuldade aumenta quando Belo Monte desponta no noticiário e no discurso do oponente como uma denúncia de corrupção. É fácil afirmar que este governo está sendo atacado, e com ele a democracia, porque “defendeu os direitos dos mais pobres”, como foi repetido em todos os atos e manifestações que acompanhei. Esta é uma parte da verdade, mas bem longe de ser o todo. É muito mais difícil dizer algo como “este governo violou os direitos dos mais desamparados para construir a hidrelétrica de Belo Monte” ou “a hidrelétrica de Belo Monte, uma das maiores obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), produziu o etnocídio de povos indígenas”. E concluir: “Mas ainda assim é preciso defender a democracia e a escolha das urnas”. É possível afirmar isso, mas complica-se. É preciso enfrentar a complicação – e pronunciar todas as palavras, abandonando de uma vez as mistificações que facilitam o discurso.
Belo Monte torna-se o incontornável neste momento. Quando o processo de implantação da hidrelétrica entra na pauta da direita, abrigado no guarda-chuva da corrupção, o que setores da esquerda vão fazer? Há duas alternativas: recolocar as prioridades, o que significa incluir o possível esquema de corrupção no campo dos direitos humanos e ambientais, ou silenciar mais uma vez.
É pela sequência de silêncios constrangedores, quando não covardes, das contradições não enfrentadas, dos enfrentamentos adiados porque havia uma eleição a ganhar, uma disputa a vencer, uma guinada à esquerda para fazer ou ainda o “menos pior” a ser defendido, que tudo o que de melhor os que se posicionam “em defesa da democracia” podem dizer hoje é que defender a democracia não significa defender o governo. É isso – ou assumir-se a serviço do apagamento.
Mas, é preciso alertar mais uma vez, Belo Monte é o incontornável. O processo histórico já provou que silenciar sobre as verdades que não convêm para vencer uma disputa no campo da política é uma escolha perigosa. Só me parece possível defender a democracia, sem defender o governo, enfrentando as contradições deste ato. No caso de Belo Monte, isso significa enfrentar as violações de direitos consumadas antes, durante e depois da obra. Enfrentar as violações de direitos humanos e a destruição ambiental que acontecem agora, neste momento, no Xingu. E que não podem, mais uma vez, ser invisibilizadas em nome das conveniências – ou ser reduzidas a um esquema de propinas ainda por ser comprovado.
Escrevi, mais de uma vez, nos últimos anos, que Belo Monte, quando totalmente desvelada, é o nó que revelará o Brasil. Essa obra gigantesca contém a anatomia inteira das relações entre empreiteiras e governos (no plural) que assinala a história do país desde a construção de Brasília, em meados do século passado. Que essa operação entre Estado e empreiteiras tenha começado a ser desenhada na construção da capital do país, um monumento modernista erigido sobre a destruição da natureza representada pelo Cerrado, é de um simbolismo explícito. E cá estamos nós, mais de meio século depois, diante de Belo Monte, um monumento deslocado no meio do Xingu, um dos rios mais ricos em biodiversidade da Amazônia, no momento da história em que já não é possível negar a ação do homem na mudança climática.
Se Belo Monte for reduzida a um capítulo da Operação Lava Jato, apagam-se livros inteiros. É isso que, de novo, não se pode permitir que aconteça. Só há chance de “refundar a democracia no Brasil” – ou a República –, como alguns têm defendido, se Belo Monte for enxergada com tudo o que é. Para muito além do que a Lava Jato pode mostrar. É preciso olhar o “Belo Monstro”, como é chamada na região do Xingu, no olho. Para descobrir que estão todos lá, amarelos e vermelhos, brancos, qualquer cor. Direita, esquerda. Belo Monte é um monumento que expõe as contradições tanto dos que gritam “contra a corrupção” e “pelo impeachment de Dilma Rousseff” – quanto dos que gritam “em defesa da democracia” e “contra o golpe”. Em Belo Monte, pouca gente não tem sangue nas mãos.
Vale a pena lembrar alguns episódios dessa história em movimento.
– Belo Monte vai sair!
Esta foi a frase de Dilma Rousseff, então ministra das Minas e Energia de Lula, em 2004. É importante prestar atenção na data: essa cena ocorreu no segundo ano do primeiro mandato de Lula. À declaração, seguiu-se um murro na mesa. Dilma então se levantou e deu as costas para os representantes dos movimentos sociais da região, que cobravam coerência do PT, partido que apoiaram e ao qual a maioria estava filiada. Essa cena, contada por Antonia Melo, a maior liderança viva do Xingu, é a síntese da escolha que o partido fez, lá atrás, ao anunciar que a hidrelétrica seria construída de qualquer maneira e antes de escutar os diretamente afetados por ela, numa decisão prévia, anterior à análise das consequências. Ali, já estava muito dito – senão tudo. Para quem estivesse disposto a escutar, é claro. Quase ninguém estava. É também ali que se explica a escolha de Dilma Rousseff para ser sucessora de Lula.
Entre o murro da ministra e o início da geração de energia por Belo Monte, ocorrido na semana passada, passaram-se 12 anos. E uma das maiores coleções de violações de direitos da história recente do Brasil. Belo Monte é mais do que um mostruário de crimes socioambientais: é um monstruário. Já era muito antes de as primeiras delações premiadas revelarem as supostas propinas envolvendo a obra, já era muito antes de o juiz Sérgio Moro, dos procuradores e da Polícia Federal sequer sonharem com a Lava Jato. E ninguém, de lado nenhum, pode dizer que não sabia, que não foi informado. Desinformação é um luxo não disponível neste momento.
Em 2011, por exemplo, Célio Bermann, professor da Universidade de São Paulo (USP) especializado na área energética, afirmou em entrevista: “Não se trata de construir uma usina para produzir energia elétrica. Uma vez construída, alguém vai precisar produzir energia elétrica, mas não é para isso que Belo Monte está sendo construída. O que está em jogo é a utilização do dinheiro público e especialmente no espaço de cinco, seis anos em que o empreendimento será construído. É neste momento que se fatura. É na construção o momento onde corre o dinheiro. É quando prefeitos, vereadores, governadores são comprados e essa situação é mantida. Estou sendo muito claro ao expor a minha percepção do que é uma usina hidrelétrica como Belo Monte”. E depois: “Há as pessoas que ganham pela obra – fabricantes de equipamentos, empreiteiras. E há quem ganhe não financeiramente, mas politicamente, por permitir que essa articulação seja possível, porque é esse pessoal que vai bancar a campanha para o próximo mandato”.
Bermann tinha credenciais para afirmar o que afirmava. Ele havia participado dos debates da área energética e ambiental para a elaboração do programa de Lula na campanha de 2002 e foi assessor de Dilma Rousseff entre 2003 e 2004, no Ministério de Minas e Energia. Desfiliou-se do PT, segundo ele, quando “o bigode do Sarney estava aparecendo muito nas fotos”. Em 2011, declarações como as do professor, fora das redes socioambientais, eram fortemente desqualificadas. Quem apontava as já claríssimas contradições de Belo Monte era acusado de não compreender as necessidades do desenvolvimento do país.
Vale a pena recuar mais alguns anos e reler a entrevista dada pelo economista Delfim Netto, ex-ministro da ditadura civil-militar, à revista Veja, no início de 2007. Ao defender o Programa de Aceleração do Crescimento de Lula, seu novo amigo, Delfim afirmou: “O mérito do plano foi recuperar um projeto de desenvolvimento econômico e procurar acender o espírito animal dos empresários. O setor privado precisa de duas garantias para investir: a de que haverá crescimento e a de que não faltará energia. Se houver essas duas garantias, os investimentos virão. Veja o caso do complexo hidrelétrico Belo Monte, no Rio Xingu. Por mais nobre que seja a questão indígena, é absurdo exigir dos investidores que reduzam pela metade a potência de energia prevista num projeto gigantesco porque doze índios cocorocós moram na região e um jesuíta quer publicar a gramática cocorocó em alemão”.
Segundo a Folha de S. Paulo, Flávio Barra, alto executivo da Andrade Gutierrez, afirmou em delação premiada que Delfim Netto teria recebido 15 milhões de reais de propina para acomodar os interesses das empreiteiras na formação dos consórcios da usina de Belo Monte. Ainda segundo o mesmo jornal, Delfim “refutou de maneira veemente” as acusações por meio de seus advogados.
A “acomodação” das empreiteiras na obra de Belo Monte foi explícita. Em 2010, pouco antes do leilão da usina, grandes empreiteiras, como Camargo Corrêa e Odebrecht, desistiram subitamente da disputa, alegando falta de “condições econômico-financeiras”. O leilão foi vencido por um grupo de empreiteiras de menor porte, sob o nome de “Norte Energia”. Para simular uma concorrência, havia outro grupo, do qual participavam pelo menos uma das grandes, a Andrade Gutierrez. Este grupo foi derrotado.
Duas operações ocorreram na sequência. Numa delas, as empreiteiras pequenas foram deixando o consórcio vencedor, até que ele assumiu a configuração atual da Norte Energia: principalmente estatais do setor, como Eletrobras e Eletronorte, e fundos de pensão. Na outra operação, a Norte Energia contratou as grandes empreiteiras para que executassem a obra, assim como as menores que haviam deixado o consórcio. O conjunto de empreiteiras formou o terceiro elemento, além do Estado e da Norte Energia: o chamado Consórcio Construtor Belo Monte. É na construção, como se sabe, que está o dinheiro.
Essa “engenharia” não é nenhuma novidade. Tudo isso foi contado, poucos acharam que valia a pena pelo menos um espanto. O que importava era o “desenvolvimento”. E, para alguns setores, a manutenção da crença de que o PT, ainda que associado com as velhas oligarquias políticas, seguia sendo um partido de esquerda. E, assim, sem estranhezas maiores, com escassez de perguntas – por parte de todos os lados e também de parte da imprensa –, Belo Monte foi construída em grande parte com dinheiro público, vindo do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Vale lembrar que, entre o leilão da usina e o início da operação, o valor estimado da obra saltou de 19 para mais de 30 bilhões de reais.
O suposto esquema de propinas recém começou a ser investigado. Delação é início, não conclusão. Mas a violação de direitos humanos e a destruição ambiental que resultou dessa articulação entre público e privado estão, como já foi dito, amplamente documentadas. Essa engenharia já era bem conhecida – e teve, vale sublinhar, respaldo de parte do Judiciário. É uma vergonha que só a partir das delações premiadas da Lava Jato exista espanto, porque isso é muito revelador de que a vida dos mais vulneráveis pouco importa. Não apenas para este governo, mas para a maioria da população brasileira, independentemente do lado em que está ou da cor da roupa que veste. E isso, gostaria de avisar aos que bradam contra a corrupção, é corrupção. A sua, e não apenas a do governo.
Quando indígenas, ribeirinhos e pescadores atingidos, assim como moradores dos baixões de Altamira, fizeram protestos contra Belo Monte, este governo colocou a Força Nacional para defender a Norte Energia. Lideranças e movimentos sociais foram criminalizados. Milhares de pessoas foram expulsas de suas casas e também de ilhas do Xingu, perdendo o seu modo de vida, suas relações comunitárias, seu pertencimento.
Este governo deixou essa população sem nenhuma proteção jurídica para enfrentar a banca de advogados da Norte Energia. E, portanto, sem chance de negociar em termos minimamente aceitáveis sua “remoção compulsória”. Analfabetos assinaram com o dedo documentos que não eram capazes de ler. Somente quando a obra se aproximava do fim, no início de 2015, um grupo itinerante da Defensoria Pública da União conseguiu vencer todas as resistências e alcançar Altamira.
Essa violência foi vivida por Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, por Raimunda, que teve sua casa incendiada pela Norte Energia, por João, que paralisou a voz e as pernas no escritório da empresa, e por Antonia Melo, que quase perdeu o coração antes de perder a casa. Apenas alguns exemplos cujas histórias podem ser lidas entre os milhares de refugiados de seu próprio país gerados por Belo Monte.
Por que tão poucos se indignaram? Quem denuncia um golpe contra a democracia precisa enfrentar essa pergunta. Quem defende o impeachment de Dilma Rousseff também. No momento em que Dom Erwin Kräutler, o bispo do Xingu que há mais de dez anos é obrigado a andar com escolta policial para não ser assassinado por sua luta pela floresta, afirmou que “Lula e Dilma são traidores da Amazônia”, será que os setores da esquerda que se calaram concluíram que Dom Erwin estava a serviço da direita? E os indignados com a corrupção, acham que o problema é só a suposta propina?
Vejamos o que aconteceu com aqueles que Delfim Netto chamou de “doze índios cocorocós”. A Norte Energia deu, por dois anos, uma “mesada” de 30.000 reais em mercadorias para as aldeias indígenas atingidas. Foi o que técnicos chamaram de “o maior processo de cooptação de lideranças indígenas e desestruturação social”. Aldeias racharam, os indígenas pararam de plantar suas roças porque a comida chegava em latinhas, mesmo povos de recente contato passaram a consumir açúcar, salgadinhos e refrigerantes.
Em vez de aplicar os recursos na redução e na compensação dos impactos causados pela obra, o dinheiro foi usado para a distribuição dos espelhinhos modernos, mais de 500 anos depois da invasão dos europeus, em plena democracia. A desnutrição infantil nas aldeias indígenas aumentou em 127% entre 2010 e 2012, mas indiozinhos desnutridos por obra de uma empresa financiada por dinheiro público parecem não comover os “cidadãos de bem”. Ninguém bateu panelas por eles.
A lógica determinaria que, no momento em que uma das maiores obras do PAC atinge aldeias indígenas, o governo, no mínimo, fortalecesse o órgão de proteção. Curiosamente, neste período, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) foi esvaziada: em Altamira, o quadro de funcionários foi reduzido de 60 para 23 servidores. Os caciques passaram a negociar diretamente com a Norte Energia, Belo Monte virou um balcão em que direitos eram trocados por aparelhos de TV.
Tudo isso aconteceu – e acontece. Nos últimos meses, os impactos causados pelo enchimento do lago da usina começaram a se tornar evidentes, toneladas de peixes morreram e aldeias indígenas foram tomadas por uma invasão de mosquitos. As famílias ribeirinhas, ainda mais invisíveis que os indígenas, lutam para que sejam cumpridas as ações que permitem a retomada do seu modo de vida enquanto sentem, dia após dia, as chances de sobrevivência encolherem. Hoje, a situação é ainda pior, com uma empresa que já conseguiu tudo o que queria e um governo que não governa.
Quem melhor explicou a anatomia de Belo Monte, em que Estado e empreendedor perversamente se misturam, foi Thais Santi, procuradora da República em Altamira. “Belo Monte é o caso perfeito para se estudar o mundo em que tudo é possível. Hannah Arendt lia os estados totalitários. Ela lia o mundo do genocídio judeu. E eu acho que é possível ler Belo Monte da mesma maneira”, afirmou em entrevista a esta coluna. “A sustentação de Belo Monte não é jurídica. É no Fato, que a cada dia se consuma mais. O mundo do tudo é possível é um mundo aterrorizante, em que o Direito não põe limite. O mundo do tudo possível é Belo Monte.”
Procuradores da República no Pará denunciaram as violações da lei cometidas no processo de Belo Monte em mais de 20 ações na Justiça. Parte delas teve decisão liminar favorável em primeira instância, para em seguida ser derrubada por presidentes de tribunais por um instrumento autoritário chamado de “suspensão de segurança”. Pela alegação de que há perigo de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, o mérito da ação não é julgado nestas decisões. Foi também assim que o governo de Dilma Rousseff conseguiu, com a complacência de parte do Judiciário, garantir que a Norte Energia tornasse Belo Monte um fato consumado no meio do Xingu, barrando o rio e toda a possibilidade de questionar as ilegalidades no processo de implantação da hidrelétrica. Quando as ações contra Belo Monte finalmente forem julgadas no mérito, a destruição de floresta e de vidas humanas e não humanas já estará consumada há muito.
Talvez o mais revelador da hipocrisia que atravessa a sociedade brasileira fique ainda mais explícita na ação que denuncia o etnocídio indígena. Em 121 páginas, os procuradores revelam passo a passo a destruição cultural de povos indígenas promovida pela Norte Energia e o Estado, com a consequente vulnerabilidade física. E pedem o reconhecimento de que “o processo de implementação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte constitui ação etnocida do Estado brasileiro, da concessionária Norte Energia e da FUNAI”.
A ação, levada ao Judiciário em dezembro de 2015, é inédita na justiça brasileira, mas foi ignorada pela maior parte da imprensa. As manifestações, de um lado e outro, estavam em curso, mas etnocídio indígena nunca entrou na pauta. Que Delfim Netto, como se viu, manifeste descaso pela vida e pelo destino de homens, mulheres e crianças indígenas, entende-se ao lembrar que ele foi ministro de uma ditadura que exterminou aldeias inteiras. Mas e os brasileiros que querem “moralizar” esse país? Ou os que defendem “a democracia, contra o golpe”?
Neste momento, os refugiados de Belo Monte estão lá, enfrentando dia após dia uma catástrofe humanitária ignorada pelo restante do país. Em ofício datado de 7 de abril, a procuradora Thais Santi alerta: “da forma como se fez (e faz), o projeto de Belo Monte se materializa como um motor de eliminação da vida humana na Volta Grande do Xingu”. Quem acha que sua vida está muito ruim, precisa se lembrar que tudo o que piora, piora muito mais para os mais frágeis. Mais ainda se sua dor é geograficamente longe do centro de decisões políticas e econômicas do país.
O esquema de propinas de Belo Monte possivelmente será revelado por completo pela Lava Jato. Mas e o resto? Como se combate a corrupção dos tantos que se calaram esses anos todos? A corrupção como cidadão, como gente, a corrupção íntima? Como se combate a corrupção que atravessa todos os lados do Brasil falsamente polarizado? É este o nó que precisa ser desatado. Ou, mais uma vez, tudo mudará para continuar igual.
Se Belo Monte não for enfrentada, na totalidade do que representa, no tanto que diz sobre as fraturas históricas deste país, para muito além da suposta propina, nenhuma proposta é séria. Não há como acusar só o outro nesta história. Esta é a parte incômoda. Ninguém gosta de não se sentir tão limpinho assim, ou que seu lado certo não é tão certo assim. Belo Monte é incontornável em qualquer manifesto ou manifestação, de qualquer lado e também para além dos lados.
Restringir a tragédia de Belo Monte à propina é também uma forma de contorná-la. É possivelmente o que vai acontecer. Porque a podridão do Brasil também está exposta no fato de que a propina causa comoção e revolta, mas a destruição da vida de indígenas, ribeirinhos e pobres urbanos, assim como do rio e da floresta, mostrou-se, na prática, perfeitamente aceitável esses anos todos.
A maior denúncia é justamente o fato de que Belo Monte só vira denúncia quando aparece um esquema de propinas que, se comprovado, pode atingir a última campanha presidencial. É aí que se revela o que tem valor. E o quanto a indignação é seletiva e depende dos fins. Se compactuarmos que este é o valor no que se refere à Belo Monte, em nome do qual tantos tiveram suas vidas aniquiladas para que as engrenagens seguissem se movendo, não seremos diferentes daqueles que acusamos. Se não houver mudança no que tem valor, não haverá mudança nenhuma.
Como defendo, artigo após artigo, colocar-se fora do Brasil falsamente polarizado é uma posição. Não fujo a ela. O mais difícil neste momento do Brasil é enfrentar as contradições – e resistir à tentação de contorná-las. Seria muito mais fácil se houvesse um lado bom e o outro mau. Mas não há. Cada posição é espinhosa, é uma cadeira de pregos. O prego maior, praticamente uma estaca, é Belo Monte, ainda que muitos sigam se recusando a enxergar. Belo Monte é a versão mais completa das contradições dos governos Lula-Dilma e também do país, por isso é incontornável neste momento. Está lá, milhares de toneladas de cimento e de aço sobre o Xingu que contam uma história terrível.
Por isso, é duro. Mas só há posição honesta assumindo e enfrentando as contradições. A minha posição segue sendo contra o impeachment, enquanto não houver base legal para o impeachment, conforme o que está previsto na Constituição. E até agora não há. É uma pequena ironia pessoal, mas, como cidadã, tenho o dever de defender o voto de todos aqueles que ignoraram o que foi contado sobre Belo Monte. E, assim, ou por deliberadamente ignorar ou por achar pouco importante, elegeram esta presidente e este projeto para a Amazônia. Defender o voto da maioria não é uma escolha, mas uma obrigação. Defendo a manutenção do Estado de Direito porque defendi a manutenção do Estado de Direito que os governos de Lula e de Dilma Rousseff romperam para materializar Belo Monte.
Belo Monte é incontornável. A história mostrará. Que venham os dias.
(Publicado no El País em 11 de abril de 2016)