Casa é onde não tem fome

O que é uma casa é uma das principais questões que atravessam a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Acompanho Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, pelos seus descaminhos depois de ser expulso da ilha com sua família. Ele já está na terceira não-casa. Em todas elas, ele e sua família passam fome. A fome eu não escrevo. É irredutível às palavras.

Quem determina quem é aquele que é?

A resposta desenhará o futuro dos ribeirinhos do Xingu. A história não acaba aqui.

Minha coluna no El País:

Foto: Lilo Clareto?Acervo Pessoal

Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

A história da família de ribeirinhos que, depois de expulsa por Belo Monte, nunca consegue chegar

Otávio das Chagas, o pescador sem rio e sem letras, não consegue chegar em casa. Desde que ele e sua família foram expulsos de sua ilha pela hidrelétrica de Belo Monte, Otávio já está na terceira casa. Mas não consegue chegar. Porque para ele aquela terceira ainda não é uma casa. Como não era a primeira nem era a segunda. Sem casa, Otávio não tem mundo. Sem mundo, um homem não tem onde pisar. Os conhecidos avisam: você já viu, seu Otávio está encolhendo. E ele está, porque é isso o que acontece com os homens sem mundo.

O que é uma casa é a pergunta que atravessa a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, no Estado do Pará. A pergunta que não foi feita no cadastro nem em momento algum. É a pergunta que diz quem aquela pessoa é. E onde ela precisa viver para ser o que é. Quando é o empreendedor, o novo nome do colonizador na Amazônia, que determina o que é uma casa, com base no seu mundo e nas suas referências, em geral forjadas na realidade bem diversa do centro-sul do Brasil, a violência se instala. E vidas são aniquiladas.

Acompanho Otávio das Chagas desde 2014. Naquele momento, ele, sua mulher Maria e os nove filhos estavam na primeira casa que não podia ser casa. Uma casa de madeira alugada numa periferia violenta de Altamira. Em 2015, mudaram-se para uma “unidade” de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), nome dos conjuntos habitacionais padronizados que a Norte Energia construiu para abrigar as vítimas de “remoção compulsória”. Em 2016, dividiram-se: os dois filhos mais velhos permaneceram na casa padronizada, um deles já com sua própria família; Otávio, Maria e os filhos mais jovens transferiram-se para uma casa doada por um grupo de austríacos que se comoveu com as tribulações do pescador sem rio e sem letras.

A primeira não-casa: a família de Otávio das Chagas na casa alugada na periferia de Altamira, em novembro de 2014. Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

A primeira não-casa: a família de Otávio das Chagas na casa alugada na periferia de Altamira, em novembro de 2014. Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

Todas as vezes em que bati em cada uma das três portas, eles passavam fome. Tinham teto, mas passavam fome. Era oficialmente uma casa, mas passavam fome. Em todas as vezes, só havia água na geladeira. Na semana passada, havia também uma cebola pequena. Fome é algo que fracasso em descrever. A fome não se escreve. Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a escritora brasileira que conhecia a fome, escreveu: “A fome é amarela”.

Maria, a mãe, tenta fazer caber nas palavras o que sente quando chega a passar até dois dias sem comer: “Dá uma dor no estômago, uma tontice”. É uma pista, mas ainda não é a fome por escrito. “Eu não sei o que fazer quando as crianças ficam pedindo por comida”, ela continua. É outra pista, mas ainda não é a fome por escrito. Jamais será. A fome é algo tão avassalador que irredutível às palavras. Encaro os olhos fundos de Adriano, o menino de sete anos, e entendo sem letras. Entendo, mas sigo sem alcançar. Meu olhar não afunda nos olhos de poço, me falta a experiência. Adriano é mais uma doce criança com olhos de velho deste mundo. Quando o encontrei na segunda casa, a do RUC, em 2015, era o dia do seu aniversário. E não havia sequer um pedaço de pão para Adriano comer.

Otávio das Chagas e sua família viviam há mais de 30 anos na Ilha de Maria, uma das centenas de ilhas do Xingu. Viver talvez não seja a palavra exata. Eles pertenciam à ilha de Maria. É inversa essa questão da posse. E não apenas por questões da lei. Mas porque é a ilha que se apossa das pessoas, que lhes conforma o corpo e a existência, que lhes desenha a arquitetura do tempo. Na ilha, Otávio, Maria e seus filhos sabiam. Quando expulsos para a “rua”, nome que os ribeirinhos agroextrativistas de várias regiões amazônicas dão à “cidade”, são esvaziados de saber. Assim, essas casas, na “rua”, serão de certo modo sempre “rua” – e não casa.

Otávio das Chagas explica: “Pra roçar uma juquira, pra trabalhar de roça, pra toda coisa de mato, eu sou profissional. Peixe, eu sou profissional também. Mas pras coisas da rua, a gente não sabe. Meus menino ainda sabe ler, mas é só uma coisinha. Não tem vida pra nós aqui”. Maria completa: “Aqui na rua é tudo no dinheiro. Se não tem dinheiro, não come. Até a água é paga, todo mês 120 real”.

A segunda não-casa: Otávio das Chagas e a mulher Maria numa unidade de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), na periferia de Altamira, em setembro de 2015, com as plantas que restaram. Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

A segunda não-casa: Otávio das Chagas e a mulher Maria numa unidade de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), na periferia de Altamira, em setembro de 2015, com as plantas que restaram. Foto: Lilo Clareto/Acervo Pessoal

Quando são expulsos da ilha a qual pertencem, Otávio, Maria e seus filhos já não reconhecem nem se reconhecem, porque a ilha era também espelho. Se alguém é obrigado a deixar sua terra por conta de uma guerra, de um terremoto ou da fome, haverá sempre a terra que ficou, haverá ruínas, haverá os mortos ali enterrados para dar conta do que foram, mesmo que nunca possam voltar. Otávio, Maria e seus filhos perderam a materialidade do que viveram, a memória física do que eram, do que são. Tudo o que dizia deles virou água pela força de Belo Monte. Da ilha afogada não há sequer um retrato. Restou a eles apontar as cicatrizes que documentam uma vida no único território que lhes restou: o do próprio corpo.

Desde então, eles pisam “na rua”, mas não encontram o chão. Essa experiência desestruturante é de difícil compreensão para aqueles que sempre têm para onde voltar. É penosa de entender mesmo quando se quer entender. Mas quando os colonizadores sequer percebem que é necessário compreender, caso dos protagonistas da hidrelétrica, seja como governo, seja como empresa, resta só a violência. E ela vai matando aos poucos.

A terceira não-casa: Otávio das Chagas, Maria e os filhos menores na casa doada por uma família austríaca que se comoveu com a história do pescador sem rio e sem letras, em julho de 2016. Foto Lilo Clareto/Acervo Pessoal

A terceira não-casa: Otávio das Chagas, Maria e os filhos menores na casa doada por uma família austríaca que se comoveu com a história do pescador sem rio e sem letras, em julho de 2016. Foto Lilo Clareto/Acervo Pessoal

Leia o texto completo na minha coluna no El País

 

Leia mais artigos, entrevistas e reportagens sobre este tema, aqui:

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Foto: Lilo Clareto

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Foto: Lilo Clareto

Foto: Lilo Clareto

Exaustos-e-correndo-e-dopados

Minha coluna no El País:

 

Na sociedade do desempenho, conseguimos a façanha de abrigar o senhor e o escravo no mesmo corpo

Foto: Alejandro Ruesga

Foto: Alejandro Ruesga

 

Nos achamos tão livres como donos de tablets e celulares, vamos a qualquer lugar na internet, lutamos pelas causas mesmo de países do outro lado do planeta, participamos de protestos globais e mal percebemos que criamos uma pós-submissão. Ou um tipo mais perigoso e insidioso de submissão. Temos nos esforçado livremente e com grande afinco para alcançar a meta de trabalhar 24X7. Vinte e quatro horas por sete dias da semana. Nenhum capitalista havia sonhado tanto. O chefe nos alcança em qualquer lugar, a qualquer hora. O expediente nunca mais acaba. Já não há espaço de trabalho e espaço de lazer, não há nem mesmo casa. Tudo se confunde. A internet foi usada para borrar as fronteiras também do mundo interno, que agora é um fora. Estamos sempre, de algum modo, trabalhando, fazendo networking, debatendo (ou brigando), intervindo, tentando não perder nada, principalmente a notícia ordinária. Consumimo-nos animadamente, ao ritmo de emoticons. E, assim, perdemos só a alma. E alcançamos uma façanha inédita: ser senhor e escravo ao mesmo tempo.

Como na época da aceleração os anos já não começam nem terminam, apenas se emendam, tanto quanto os meses e como os dias, a metade de 2016 chegou quando parecia que ainda era março. Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exaustos e correndo. E a má notícia é que continuaremos exaustos e correndo, porque exaustos-e-correndo virou a condição humana dessa época. E já percebemos que essa condição humana um corpo humano não aguenta. O corpo então virou um atrapalho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo. Pelo menos até conseguirmos nos livrar desse corpo que se tornou uma barreira. O problema é que o corpo não é um outro, o corpo é o que chamamos de eu. O corpo não é limite, mas a própria condição. O corpo é.

Os cliques da internet tornaram-se os remos das antigas galés. Remem remem remem. Cliquem cliquem cliquem para não ficar para trás e morrer. Mas o presente, nessa velocidade, é um pretérito contínuo. Se a internet parece ter encolhido o mundo, e milhares de quilômetros podem ser reduzidos a um clique, como diz o clichê e alguns anúncios publicitários, nosso mundo interno ficou a oceanos de nós. Conectados ao planeta inteiro, estamos desconectados do eu e também do outro. Incapazes da alteridade, o outro se tornou alguém a ser destruído, bloqueado ou mesmo deletado. Falamos muito, mas sozinhos. Escassas são as conversas, a rede tornou-se em parte um interminável discurso autorreferente, um delírio narcisista. E narciso é um eu sem eu. Porque para existir eu é preciso o outro.

Há tanta informação disponível, mas talvez estejamos nos imbecilizando. Porque nos falta contemplação, nos falta o vazio que impele à criação, nos falta silêncios. Nos falta até o tédio. Sem experiência não há conhecimento. E talvez uma parcela do ativismo seja uma ilusão de ativismo, porque sem o outro. Talvez parte do que acreditamos ser ativismo seja, ao contrário, passividade. Um novo tipo de passividade, cheia de gritos, de certezas e de pontos de exclamação. Os espasmos tornaram-se a rotina e, ao se viver aos espasmos, um espasmo anula o outro espasmo que anula o outro espasmo. Quando tudo é grito não há mais grito. Quando tudo é urgência nada é urgência. Ao final do dia que não acaba resta a ilusão de ter lutado todas as lutas, intervindo em todos os processos, protestado contra todas as injustiças. Os espasmos esgotam, exaurem, consomem. Mas não movem. Apaziguam, mas não movem. Entorpecem, mas será que movem?

Leia o texto completo na minha coluna no El País

Foto: Bruno de los Santos/Fotos Públicas (06//4/2016)

Foto: Bruno de los Santos/Fotos Públicas (06/04/2016)

Os cliques da internet são os remos das antigas galés. Remem… Cliquem….

Foto: Marcos Santos/USP Imagens/ Fotos Públicas (20/04/2016)

A autoexploração é mais eficiente do que a exploração do outro, porque caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade

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