De uma branca para outra

Acredito muito em cartas, porque elas pressupõem um remetente e um destinatário. Sugerem uma conversa, um convite ao diálogo. E, como uma carta é longa, ou seria um bilhete, exige que as palavras demorem ao serem marcadas. E então podemos apalpar o corpo das palavras antes de as lançarmos ao mundo.

Ao acompanhar a “polêmica do turbante”, decidi que só poderia falar sobre isso através de uma carta, porque precisava falar sobre isso com afeto. É uma carta para Thauane, para todas as mulheres brancas, para tod@s e também para mim mesma.

Nela, explico aquilo que tenho sentido cada vez mais fortemente nos meus ossos e que nomeio como “existir violentamente”.

Espero que esta carta possa atravessar os muros e chegar ao seu destino.

Marcha das Mulheres Negras em Brasília, em 2015. MARCELO CASAL JR AGÊNCIA BRASIL (Reprodução do El País)

Marcha das Mulheres Negras em Brasília, em 2015. MARCELO CASAL JR AGÊNCIA BRASIL (Reprodução do El País)

O turbante e o conceito de existir violentamente

Thauane,

 

O episódio relatado por você e a repercussão do seu relato são tudo menos uma banalidade. Ambos contam de um momento muito particular do Brasil no que se refere à denúncia do racismo. Um momento que, por sua riqueza, não pode ser interditado por muros. É por isso que decidi escrever minha coluna pública como uma carta para você. Porque não poderia falar de você como “a branca do turbante”, apenas. Sim, você é branca. E você colocou um turbante. Mas você também é Thauane, uma mulher e suas circunstâncias. E, assim, a carta é o gênero com que posso melhor expressar meu afeto.

Leia o texto completo na minha coluna no El País

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O que o velho Araweté pensa dos brancos enquanto seu mundo é destruído?

Se não nos movermos, o mundo encolherá para além do imaginável. Não só no lá distante. Mas aqui. (Tudo agora é um grande aqui.) Era Belo Monte, agora é Belo Monte + Belo Sun. Antes era energia. Agora é ouro. É monstruoso o que está acontecendo com os povos indígenas, e os impactos de Belo Monte mal começaram. E, mesmo com uma tragédia em curso e se agravando, Belo Sun foi liberada dias atrás na já arrasada Volta Grande do Xingu, também atingindo terras indígenas. Etnocídio não pode ser uma palavra desencarnada. Escrevi este texto para lembrar do sangue e da alma dos que morrem. Já vi muita coisa nesses Brasis tantos, mas fui marcada pela experiência deste final de janeiro. A experiência de existir violentamente.

Sei que às vezes é árido ler sobre Belo Monte. Mas garanto que é mais árido para os Araweté e outros, que passam horas sentados em nossas cadeiras de plástico, ouvindo sua morte ser decretada numa língua que não compreendem.

Foto: Lilo Clareto

Foto: Lilo Clareto

O Brasil etnocida avança na Amazônia paraense: primeiro Belo Monte, agora Belo Sun

Ele era um ancião. Seu povo, Araweté. Tinha o corpo vermelho de urucum. O cabelo num corte arredondado. E estava sentado ereto, as mãos abraçando o arco e as flechas à sua frente. Ficou assim por quase 12 horas. Não comeu. Não vergou. Eu o olhava, mas ele jamais estabeleceu um contato visual comigo. Diante dele, lideranças indígenas dos vários povos atingidos por Belo Monte se revezavam no microfone exigindo o cumprimento dos acordos pela Norte Energia, a empresa concessionária da hidrelétrica, e o fortalecimento da Funai. Ele, como outros, não entendia o português. Estava ali, sentado numa cadeira de plástico vermelho, no centro de convenções de Altamira, no Pará. O que ele via? Há 40 anos, ele e seu povo nem mesmo sabiam que existia algo chamado Brasil. Possivelmente isso siga não fazendo nenhum sentido, mas agora ele está ali, debaixo de luminárias, sentado numa cadeira de plástico vermelho, aguardando seu destino ser decidido em português. O que ele via?

Não sei o que ele via. Sei o que eu via. E o que vi me fez alcançar não uma dimensão dele, mas de mim. Ou de nós, “os brancos”. Sempre que escrevo sobre os meandros técnicos e jurídicos de Belo Monte, e agora também de Belo Sun, sei que perco algumas centenas de leitores por frase, por mais que simplifique o que é complexo. Porque a linguagem da justiça, assim como a da burocracia, com todas as suas siglas, é feita para produzir analfabetos mesmo em quem tem doutorado em letras. Mas o que resta para os indígenas que se esforçam para se expressar na língua daqueles que os destroem no mesmo momento em que a vida é destruída? O que resta para o velho Araweté sentado ali por quase 12 horas? Ele não tem escolha, já que é com estas palavras que sua existência é aniquilada.

 

Leia na minha coluna no El País