No fim do mundo de Alice Juruna tem Peppa Pig

Qual é o impacto de viver dia após dia acreditando que uma barragem pode se romper a qualquer momento e afogar toda a vida, o mundo inteiro que se conhece? E acreditando que uma nova ameaça avança sobre a aldeia em ritmo acelerado? É possível perceber que o impacto desta experiência traumática é enorme. Seria sobre qualquer pessoa. Mas como dimensionar esse impacto sobre um povo tradicional, cujo próprio dizer de si contém o rio, quando o rio que sempre foi vida se torna uma ameaça de morte? São perguntas que o Estado brasileiro e a Norte Energia um dia terão que responder diante da humanidade.

Alice Juruna, em fotografia de 2015, salta para mergulhar no rio Xingu. LILO CLARETO

Alice Juruna, em fotografia de 2015, salta para mergulhar no rio Xingu. LILO CLARETO

Impactados por Belo Monte, ameaçados por Belo Sun, os indígenas da Volta Grande do Xingu acordam a cada dia com o temor de que a catástrofe final chegará no próximo segundo

É difícil explicar o que é etnocídio. Morte cultural de um povo. Parece sempre abstrato, coisa de antropólogo. Mas Luane Alice pode nos contar como um jeito de ser e de estar no mundo morre. E contar também que é bem menos abstrato do que parece. Há menos de dois anos, em setembro de 2015, a canoa onde eu navegava na Volta Grande do Xingu alcançou Muratu, a aldeia dos Juruna. Crianças indígenas saltavam do barranco para o rio, numa alegria que há muito eu não via em crianças urbanas. De fato, talvez nunca tenha visto em crianças urbanas. Por alguns instantes, elas voavam. Foi num ponto deste voo que o fotógrafo Lilo Clareto congelou a imagem de Alice, a mais animada delas. Hoje, a imagem segue existindo como arte. E como documento. Mas a vida já não existe.

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Em foto de 24 de março de 2017, Alice (sentada) assiste a desenhos na TV, hoje principal lazer das crianças indígenas, proibidas de se aproximar do rio. LILO CLARETO

Em foto de 24 de março de 2017, Alice (sentada) assiste a desenhos na TV, hoje principal lazer das crianças indígenas, proibidas de se aproximar do rio. LILO CLARETO

 

Veja o filme, leia o livro, alcance a vida

Às vezes uma obra cultural é tão original que provoca um impacto na nossa forma de perceber o Brasil, a cidade, nós mesmos. “Era o Hotel Cambridge” é um destes cortes no tecido do tempo. Não é apenas um filme e um livro, mas um acontecimento.

Na coluna de hoje, no El País:

Cena do filme Era o Hotel Cambridge. DIVULGAÇÃO

Cena do filme Era o Hotel Cambridge. DIVULGAÇÃO

 

– A gente não tá podendo nem cuidar de nós, os brasileiros, e ainda temos que cuidar dos refugiados do Congo, refugiados da Colômbia, dos libaneses e palestinos… É difícil. Na reunião da ocupação do Hotel Cambridge, no centro de São Paulo, os moradores tinham acabado de saber que a juíza concedera a reintegração de posse do prédio. A fala acima é de um brasileiro. Ela revela a tensão sobre quem teria mais direitos entre aqueles que ali estão, e que ali estão porque seus direitos têm sido sistematicamente violados. Um congolês levanta-se e dá uma resposta imediata:

– Se você não sabe, o Brasil lá na ONU faz bonito na política internacional, aí concede refúgio pra nós. Quando nós entramos aqui, é cada um se vira. Nós somos problemas do Brasil, sim, porque Brasil concedeu refúgio.

Outro se levanta:

– Eu sou refugiado palestino. Vocês são refugiados brasileiros no Brasil.

Carmen da Silva Ferreira, a líder da Frente de Luta por Moradia (FLM) e coordenadora da ocupação do Hotel Cambridge, faz a síntese:

– Brasileiro, estrangeiro… somos todos refugiados, refugiados da falta dos nossos direitos.

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8M: Pacto contra o ódio

Mulher protesta contra os feminicídios na Argentina DAVID FERNÁNDEZ EFE (Reprodução do El País)

Mulher protesta contra os feminicídios na Argentina DAVID FERNÁNDEZ EFE (Reprodução do El País)

É importante perceber onde hoje existe potência. E especialmente a potência de criar pactos que permitam recriar os laços sociais. Prepara-se para esta quarta-feira, 8 de Março, uma greve internacional de mulheres, organizada por ativistas de mais de 40 países. O movimento surgiu a partir das greves feitas na Polônia e na Argentina no ano passado (escrevo sobre elas aqui) e também a partir da marcha das mulheres contra Trump, nos Estados Unidos, assim como outras manifestações pelo mundo. Os manifestos e convocatórias propõem um novo ciclo do feminismo, capaz de articular várias lutas. Esta agenda expandida é a parte mais interessante: as mulheres na produção, no trabalho remunerado, reivindicando melhores condições de trabalho e salários equivalentes, mas as mulheres também no trabalho não remunerado dentro de casa e no trabalho da reprodução, reivindicando direitos reprodutivos; as mulheres contra o feminicídio, contra a violência doméstica, contra o estupro e outras violências de gênero, mas também um feminismo contra o racismo, a xenofobia, a homofobia e a transfobia. É também uma posição contra “o ataque neoliberal em curso sobre os direitos sociais e trabalhistas”, como diz o manifesto assinado por intelectuais americanas, entre elas Angela Davis.  A internacionalização da greve é geográfica, mas também simbólica: ela supera as fronteiras ao propor um feminismo atravessado por todas as questões cruciais deste tempo. Assim, as convocatórias estão chamando todas as mulheres, o que significa incluir também as mulheres trans. No Brasil, onde há articulações significativas em algumas cidades e quase inexistentes em outras, é forte a oposição à reforma da previdência proposta pelo governo Temer, já que ela poderá ter grande impacto sobre todos e especialmente sobre as mulheres mais pobres, a maioria delas negras. Mas, como qualquer movimento que pretenda ganhar as ruas, o que de fato acontecerá neste 8 de março é uma incógnita. Ni Una Menos, o mote da greve argentina, se expandiu pelo mundo. Nem uma a menos é um pacto de vida. É também um pacto contra o ódio.

Nos vemos nas ruas, no 8M!

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