Minha resposta a Mario Vargas Llosa em minha coluna do El País
Durante palestra em Montevideo, o prêmio nobel de Literatura Mario Vargas Llosa posicionou-se diante da eleição brasileira do próximo outubro. Disse o escritor peruano: “As palhaçadas de Bolsonaro são muito difíceis de admitir para um liberal. Agora, entre Bolsonaro e Lula, eu prefiro Bolsonaro”. Não é a primeira vez que o consagrado escritor faz declarações políticas controversas, usando aqui um eufemismo. Mas defender Jair Messias Bolsonaro contra Luiz Inácio Lula da Silva são vários tons acima até mesmo para os padrões de Vargas Llosa. Nunca foi tão importante diferenciar um liberal de um extremista de direita. Declarações como estas, porém, borram as fronteiras e contribuem para a corrosão da democracia.
Vejamos o que o suposto liberal Mario Vargas Llosa, personagem que frequentou círculos intelectuais refinados da Europa ao longo de décadas, considera “palhaçadas de Bolsonaro”: o ataque persistente às urnas eletrônicas e ao processo eleitoral, para justificar um golpe de Estado em caso de não se reeleger; a agressão recorrente às instituições que não conseguiu controlar, como o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal; os quase 700 mil mortos por covid-19, resultado de comprovada execução de um plano de disseminação do vírus para obter “imunidade de rebanho”, com ataque sistemático contra o uso de máscaras e contra as vacinas; o apoio a mineradores ilegais, madeireiros e grileiros (ladrões de terras públicas) responsáveis pela contaminação dos rios por mercúrio, desmatamento recorde e uso de violência contra defensores da floresta, além de estupro de mulheres indígenas, no caso da mineração; o desmonte da legislação ambiental construída durante décadas, o esvaziamento dos órgãos de proteção e o afrouxamento da punição a destruidores da natureza; os constantes ataques às mulheres, aos povos originários e aos negros; as cada vez mais evidentes relações com as milícias que controlam o crime organizado e a defesa do armamento da população civil. A lista de “palhaçadas” não cabe no espaço desta coluna, seria necessária uma edição inteira do El País de domingo, com todos os cadernos incluídos.
Mas o suposto liberal Mario Vargas Llosa prefere Bolsonaro a Lula porque o ex-presidente, favorito nas pesquisas, “esteve preso” e os juízes o condenaram “como ladrão”. Vargas Llosa não deve estar informado que Lula passou, sim, 580 dias na prisão, mas posteriormente o Supremo Tribunal Federal anulou condenações e determinou que as ações recomeçassem do início por erros processuais, o que o torna inocente até prova em contrário. Se as condenações tivessem sido mantidas, Lula não poderia ser candidato.
O que está em jogo nas eleições brasileiras de outubro é a própria democracia. Por maiores críticas que se possa fazer a Lula e aos seus governos – e há muitas –, ele é um democrata. Bolsonaro, contra quem há várias comunicações por genocídio no Tribunal Penal Internacional, é um defensor da ditadura militar, que tem o principal torturador do regime como herói declarado, e fez do Brasil um país em estado de golpe.
Para um liberal genuíno, os atos de Bolsonaro não deveriam ser “difíceis de admitir” – e sim impossíveis de aceitar. Admiti-los como um mal menor é desrespeitar a vida dos mais frágeis e a própria democracia. Que entre a civilização e a barbárie, uma pessoa com a ressonância pública de Vargas Llosa se manifeste publicamente pela barbárie, reduzindo a “palhaçada” atos que tiraram a vida de tantos e levam ao ponto de não retorno a maior floresta tropical do mundo, explica muito por que as democracias estão em crise e dá pistas sobre os instintos autoritários e racistas de parte significativa das elites intelectuais da América Latina. A Vargas Llosa devemos dizer: o que você chama de “palhaçada” nós, que sofremos o cotidiano de violência imposto por Bolsonaro, chamamos sangue.