A coluna que (quase) ninguém lê

Para que mais uma morte de pobre não vire estatística – ou vaia de ruralista

Bocão morreu. Tinha esse apelido por causa do sorriso largo, que dava vontade de rir com ele. Por que Bocão ria? Não sei. Por teimosia, talvez. Ou porque sabia que a expectativa de vida dele era de menos da metade da média dos brasileiros e já nascera com menos dias de riso. Bocão tinha ainda outros dois nomes: o do registro, Alexsandro Rocha da Silva, e o do rap ligado ao Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS (GAPA), MC Alex. Ele fugiu de casa aos 7 anos para morar nas ruas de Porto Alegre porque o padrasto batia na mãe. E ele bateu no padrasto. E o padrasto bateu nele. História comum entre as crianças e adolescentes das ruas do Brasil. Morreu neste final de maio de uma doença oportunista da AIDS, empurrado de um hospital a outro. Foi enterrado pelo pai que o procurava – e o encontrou.

Bocão viveu mais do que todos. Fez, como costumava dizer, “hora-extra na Terra”. Ele era o último protagonista de uma das histórias mais bonitas que testemunhei em minha vida de repórter, de gente. Em março de 1994, um grupo de guris de rua da capital gaúcha rodeou uma mulher que conheciam por causa do sopão dos pobres. Deirdre Bicca era o seu nome. Ela era professora de matemática. Aqueles meninos estropiados de frio, de fome, de tiro, de droga, de polícia, de HIV, a rodearam não para assaltá-la, como a maioria pode ter pensado. Eles pediram a ela algo pungente: pediram escola.

“A senhora pode dar aula para nós? A gente precisa de estudo para o nosso futuro.” Deirdre começou então a alfabetizá-los primeiro numa praça, depois na escadaria da Igreja das Dores, de onde foram expulsos. E ainda foram enxotados de muitos lugares até conseguirem ter aulas ao relento, no Parque da Redenção. Fora, sempre fora.

Formavam a Turma do Cachorrinho, assim batizados pela rua porque guardavam carros na praça onde também estacionava o cachorro-quente mais famoso da cidade, o cachorro-quente do Rosário. E Rosário é o nome de um tradicional colégio privado onde jamais entrariam. Aqueles meninos com olhos de velho realizaram uma das utopias mais belas e dolorosas deste país – uma escola que sobrevivia a eles. Em um ano em que os acompanhei, sete morreram antes dos 20 anos. Mas, para cada um que morria, eles botavam outro guri de rua no lugar. Para que a escola vivesse. Eles morriam, mas o sonho não. Bocão foi o último.

Mas o último dos primeiros. Uma década atrás, duas jornalistas (Clarinha Glock e Rosina Duarte) criaram com a Turma do Cachorrinho o jornal Boca de Rua. Pelo jornal, com suas mãos e mentes, os meninos se inscreveram na história. Agora não é mais a escola, mas o jornal que vive além deles. E é o bocão de Bocão que estampa o primeiro número – hoje histórico – do jornal. Como diz Rosina, Bocão trazia o nome do jornal no próprio nome.

Uma das muitas noites tristes da vida de Bocão aconteceu ao apanhar da polícia por arrombar um carro para dormir no banco de trás porque temia morrer de frio no inverno gaúcho. Em outra foi marcado por um corte de palmo e meio na barriga que levou seis meses para fechar. Um dos dias felizes da vida de Bocão aconteceu ao ser barrado em um dos principais centros culturais da cidade pelo segurança. Ele lá estava com os companheiros para exibir um filme sobre a experiência do jornal. O segurança perguntou diante de suas roupas de muitas mãos: “Quem são vocês?”. E Bocão não hesitou, apropriando-se do que havia se tornado: “Nós somos os autores”. E foi Bocão que, ao escolherem o título de um livro sobre as escrituras do povo de rua, disse, em um belo achado de linguagem: “Histórias de Mim”.

Quando morreu, uma assistente social comentou: “Ele não tinha nenhum documento. Parecia que nunca havia existido”. Ela estava enganada. Bocão existiu de várias maneiras. E seguirá existindo – porque a ideia que ajudou a construir vive. A morte o calou, mas o que escreveu segue falando pelo Boca de Rua. E seu sorriso está lá, nos lembrando que a vida quer viver.

Alguns podem ter estranhado o título desta coluna. A quem chegou até aqui – porque boa parte não chega –, quero explicar. Em mais de dois anos escrevendo neste espaço, comprovei que os textos menos lidos são aqueles sobre moradores de rua. No início, isso me chocava e me entristecia profundamente. Hoje, entendo que é lógico que, assim como a maioria finge não vê-los nas ruas concretas, também finge não vê-los em todas as camadas de mundo. Para mim, que não me pauto pela audiência, mas pela relevância, esta é uma excelente razão para continuar escrevendo sobre moradores de rua. Meus leitores podem não ler, mas vão ter de fazer a escolha de não ler. Porque aqui está visível. E será preciso assumir a decisão de fazer de conta que eles não existem. E que cada um de nós não tem nada a ver com a sua vida – e com a sua morte.

Quem quiser se conectar com a realidade na qual estamos todos implicados, mesmo quando fingimos que não estamos, pode acessar as colunas menos lidas de minha trajetória neste site: O homem sem país, Uma história de luz, A guria dos 7.

Quem sabe um dia mais gente comece a estranhar que alguns já nasçam com direito apenas a um terço da vida.

bocao

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A semana passada foi uma vergonha para este país. No mesmo dia em que a Câmara dos Deputados aprovou um Código Florestal que beneficia quem vem acabando com o meio ambiente e comprometendo o futuro de todos os brasileiros – e também do planeta –, foram assassinados dois líderes extrativistas que defendiam o manejo sustentável da floresta. José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo Silva foram mortos a tiros na terça-feira, 24/5, em Nova Ipixuna, no sudeste do Pará. Depois, José Cláudio teve parte da orelha decepada. Quando foi anunciado na Câmara o duplo assassinato, o que fez a bancada ruralista? Vaiou. Dois brasileiros foram executados – e alguns de nossos representantes vaiaram.

Como Chico Mendes e Dorothy Stang, o casal também avisava há muito, como mostra este vídeo, que estava “com uma bala na cabeça”. E, como parece sempre acontecer nesse país, a profecia se realizou. Mas, diferente de Chico Mendes e de Dorothy Stang, o espaço dado à sua morte na imprensa foi bem menor. Possivelmente porque a luta de Chico Mendes foi noticiada primeiro pelo New York Times – e Dorothy Stang tinha família americana. Assim como os outros 18 executados no ano passado no Pará por conflitos agrários, como mostra a matéria Eles morreram pela floresta, José Cláudio e Maria eram brasileiros pobres que lutavam pelo que nós todos deveríamos estar lutando. E morreram porque não foram escutados. Também por nós.

Foi uma semana feliz para os assassinos do Brasil – os assassinos de gente, e os de futuro que circulam pelo Congresso. Prestem atenção na votação do novo Código Florestal no Senado, anotem o nome de quem faz o que, porque é uma ideia de país que está em jogo. Não custa lembrar que todos aqueles homens e mulheres que estão decidindo o nosso futuro – boa parte deles mais preocupado com o próprio presente – foram escolhidos e legitimados pelo nosso voto, o que nos coloca na condição de cúmplices da ruína ética a que assistimos no Congresso mandato após mandato. Na sexta-feira, 27/5, Adelino Ramos, outra liderança que combatia o desmatamento da floresta, foi assassinado quando vendia verduras. Desta vez, em Rondônia. Coincidência?

Não é com parlamentares como estes – capazes de queimar a Amazônia em benefício próprio e vaiar quando é anunciado o assassinato de brasileiros que defendiam a floresta – que vamos a algum lugar. Nem com cidadãos que testemunham a indignidade e seguem calados. Essa classe de políticos só tem a ousadia de ser tão vil em suas barganhas e em seus atos porque sabe que sempre pode contar com a nossa omissão.

Não há nenhuma discussão, hoje, no país, mais importante que a do Código Florestal. Seu desfecho determinará muito do que seremos – ou não seremos. Quem sabe ainda dê tempo para mais gente estranhar um Código Florestal que anistia desmatadores ser aprovado pela Câmara em pleno ano de 2011, quando o desafio urgente é – ou deveria ser – o desenvolvimento sustentável do país. E mais gente comece a desconfiar que assassinatos de defensores da Amazônia não combinam com as pretensões do Brasil de ocupar um lugar de destaque no cenário mundial.

(Publicado na Revista Época em 30/05/2011)