A repórter que condenou e humilhou um suspeito não é exceção. O episódio mostra a conivência histórica entre parte da imprensa, da polícia e do sistema penitenciário na violação dos direitos de presos pobres (ou presos e pobres)
– Não estuprou, mas queria estuprar!
A frase foi dita pela repórter Mirella Cunha, no programa “Brasil Urgente”, da Band da Bahia, a um jovem de 18 anos, preso em uma delegacia desde 31 de março. Algemado, ele diz que arrancou o celular e a corrente de ouro de uma mulher, mas repete que não a estuprou. Na reportagem, a jornalista o chama de “estuprador”. Pergunta se a marca que ele tem no rosto é resultado de um tiro. Ele responde que foi espancado. A repórter não estranha que um homem detido, sob responsabilidade do Estado, tenha marcas de tortura. O suspeito diz que fará todos os exames necessários para que seja provado que ele não estuprou a mulher. Ele não sabe o nome do exame, não sabe o que é “corpo de delito” e pronuncia uma palavra inexistente. Ela debocha e repete a pergunta para expô-lo ao ridículo. Ele então pronuncia uma palavra semelhante à “próstata”. A jornalista o faz repetir várias vezes o nome do exame para que ela e os telespectadores possam rir. Depois, pergunta se ele gosta de fazer exame de próstata. No estúdio, o apresentador Uziel Bueno diz: “Tá chorando? Você não fez o exame de próstata. Senão, meu irmão, você ia chorar. É metido a estuprador, é? É metido a estuprador? É o seguinte. Nas horas vagas eu sou urologista…”.
A chamada da reportagem era: “Chororô na delegacia: acusado de estupro alega inocência”. A certa altura, a jornalista olha para a câmera e diz ao apresentador, rindo:
– Depois, Uziel, você não quer que o vídeo vá pro YouTube…
Ela tinha razão: o vídeo foi postado no YouTube. A versão mais curta dele já foi vista por quase 1 milhão de pessoas. Aqui neste link, se quiser, você pode assistir a uma versão um pouco mais longa, de quase cinco minutos.
O vídeo foi divulgado nas redes sociais, na semana passada, com grande repercussão e forte pressão por providências. Um grupo de jornalistas fez uma carta aberta: “A reportagem de Mirella Cunha, no interior da 12ª Delegacia de Itapoã, e os comentários do apresentador Uziel Bueno, no estúdio da Band, afrontam o artigo 5º da Constituição Federal: ‘É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral’. E não faz mal reafirmar que a República Federativa do Brasil tem entre seus fundamentos ‘a dignidade da pessoa humana’. Apesar do clima de barbárie num conjunto apodrecido de programas policialescos, na Bahia e no Brasil, os direitos constitucionais são aplicáveis, inclusive aos suspeitos de crimes tipificados pelo Código Penal”.
E, mais adiante: “É importante ressaltar que a responsabilidade dos abusos não é apenas dos repórteres, mas também dos produtores do programa, da direção da emissora e de seus anunciantes – e nesta última categoria se encontra o governo do Estado que, desta maneira, se torna patrocinador das arbitrariedades praticadas nestes programas”. Em 23/5, o Ministério Público Federal abriu representação contra a jornalista. Em nota, a Band afirmou que tomaria “todas as medidas disciplinares necessárias” e que “a postura da repórter fere o código de ética do jornalismo da emissora”.
Em visita ao suspeito, a Defensoria Pública assim o descreveu: “É réu primário, vive nas ruas desde criança, apesar de ter residência em Cajazeiras 11. Tem seis irmãos, é analfabeto e já vendeu doces e balas dentro de ônibus. Ao ser questionado sobre como se sentiu durante a entrevista, ele diz: ‘Eu me senti humilhado, porque ela ficou rindo de mim o tempo todo. Eu chorei porque sabia que eu iria pagar por algo que não fiz, e que minha mãe, meus parentes e amigos iriam me ver na TV como estuprador, e eu sou inocente’”.
A reportagem é um exemplo de mau jornalismo do começo ao fim. E, para completar, ainda presta um desserviço à saúde pública, ao reforçar todos os clichês e preconceitos relacionados ao exame de próstata. Por causa dessa mistura de ignorância e machismo, homens demais morrem de câncer de próstata no país. Os abusos cometidos pela repórter e pelo apresentador foram tantos, porém, que esse prejuízo passou quase despercebido.
Por que vale a pena refletir sobre esse episódio? Primeiro, porque ele está longe de ser uma exceção. Se fosse, estaríamos vivendo em um país muito melhor. O microfone (e a caneta) tem sido usado no Brasil, assim como em outros países, também para cometer violências. Nestas imagens, se observarmos bem, a repórter manipula o microfone como uma arma. (Outras interpretações, vou reservar para os psicanalistas.)
Muitos passam mal ao assistir ao vídeo porque o que se assiste é uma violência sem contato físico, sem marcas visíveis. Uma violação cometida com o microfone e uma câmera, exibida para milhões de pessoas, contra um homem algemado (e, portanto, indefeso), sob a responsabilidade do Estado, que, em vez de garantir os direitos do suspeito, o expõe à violência.
O suspeito é humilhado por algo que deveria ser uma vergonha para o Estado e para todos nós: a péssima qualidade da educação. E, no caso dele, o analfabetismo de um jovem de 18 anos no ano de 2012, na “sexta economia do mundo”. Ao afirmar que o rapaz era um estuprador, a repórter colocou em risco também a vida do suspeito, já que todos sabem – e muitos toleram – o que acontece dentro das cadeias e prisões com quem comete um estupro.
A repórter e o apresentador, porém, são apenas a parte mais visível da rede de violações. Estão longe de serem os únicos responsáveis. Para que esse caso se torne emblemático e para que a Justiça valha é preciso que todas as responsabilidades sejam apuradas, a começar pela do Estado. Tanto em permitir que alguém sob sua custódia fosse exibido dessa maneira, e possivelmente contra a sua vontade, numa rede de TV, quanto nas marcas de tortura no seu rosto. As marcas e o relato de espancamento, aliás, seriam objeto da apuração de qualquer bom jornalista. No caso, não suscitaram nenhuma surpresa.
Basta ligar a televisão para ter certeza de que nem essa jornalista, nem esse apresentador, nem essa rede de TV são os únicos a violar direitos previstos em lei, especialmente contra presos e contra favelados e moradores das periferias do Brasil. Especialmente, portanto, contra os mais frágeis e com menos acesso à Justiça. Vale a pena lembrar que o número de defensores públicos no Brasil é insuficiente – em São Paulo, por exemplo, segundo relatório feito pela Pastoral Carcerária Nacional e pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, há apenas 500 defensores públicos para prestar assistência jurídica à população carente. E quase 60 mil presos que nunca foram julgados.
Como também sabemos, nenhum jornalista publica ou veicula o que quer. Para que reportagens como esta tenham espaço é preciso que exista antes uma estrutura disposta a permitir que os maus profissionais violem as leis. Em última instância, também quem anuncia seus produtos em programas que exibem esse tipo de reportagem está sendo conivente e estimulando a violação de direitos.
A responsabilidade não acaba aí. Nos blogs, onde o vídeo foi denunciado como uma violação de Direitos Humanos, parte dos comentários dos leitores pode ser assim resumida: “Ah, mas ele não é nenhum inocente”. Ou: “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”. São afirmações estúpidas, mas elas ajudam a explicar por que esse tipo de abordagem tem audiência. Persiste ainda no Brasil uma ideia de condenação sem julgamento – e o linchamento público, via TV, é uma das formas mais apreciadas de exercer a barbárie. Até porque, dessa forma, ninguém precisa sujar as mãos de sangue.
É preciso, porém, lembrar o óbvio: até ser julgado, um suspeito é um suspeito. E só o ritual da Justiça poderá dizer se ele é culpado ou inocente. E, mesmo culpado, ele vai cumprir a pena determinada pela lei, mas continuará a ter direitos. E esta é uma conquista da civilização – contra a barbárie.
É também por causa da vontade de fazer “justiça” com as próprias mãos de parte da população que o mau jornalista se sente “autorizado” a se colocar no lugar de juiz e condenar um suspeito no tribunal midiático. Quem o legitima não são as leis tão duramente conquistadas no processo democrático, mas a audiência. Quem legitima o mau jornalismo é justamente esse tipo de comentário: “Ah, mas ele não é nenhum inocente” ou “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.
“Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.
Para esse tipo de raciocínio valer e o mau jornalismo continuar tendo espaço é preciso que a sociedade decida que não existem leis no Brasil e que os suspeitos perdem todos os direitos e devem ser linchados sem julgamento, nas ruas ou na TV. E isso vale para todos – e também para aqueles que gostam de expressar sua sanha porque pensam estar a salvo da sanha alheia.
Por sorte, não chegamos a esse ponto. Mas, para que violências como a que assistimos não se repitam, não basta punir quem as comete, é preciso que cada um saiba que, ao dar audiência para o mau jornalismo, está escolhendo a barbárie. O telespectador também tem responsabilidade. Cada um de nós tem responsabilidade. É assim numa democracia: a responsabilidade é compartilhada. Quem escolhe, se posiciona e se responsabiliza. E quem se omite também escolhe e se responsabiliza.
Este episódio, que, repito, está longe de ser exceção, poderia ser usado para iluminar capítulos não contados, ou pouco contados, ou ainda mal contados da imprensa. É importante compreender que, historicamente, parte do jornalismo policial tem uma relação promíscua com a polícia. Desde sempre. Parte porque há grandes e decentes repórteres na história da crônica policial brasileira. Mas, arrisco-me a dizer, não representam a maioria.
Na ditadura, parte dos jornalistas policiais foi conivente com a tortura dos presos políticos, da mesma maneira que já era conivente, antes, com a tortura dos presos comuns. E que, depois do fim da ditadura, continuou a ser conivente com a tortura largamente praticada até hoje nas cadeias e presídios do país. Há histórias escabrosas e ainda não bem contadas de repórteres que, inclusive, assistiam às sessões de tortura e até ajudavam a torturar. Estas só tomei conhecimento pela narrativa de colegas mais velhos – obviamente, nunca presenciei.
Na transição democrática, nos anos 80, eu cheguei a conviver com jornalistas da editoria de polícia que andavam armados e achavam não só natural, mas desejável, a tortura de presos. Outros se limitavam a não denunciá-las. Era comum o repórter chegar à delegacia e ouvir a seguinte frase: “Espera um pouquinho, que estamos maquiando o elemento”.
“Maquiar” o preso significava que estavam apagando as marcas de tortura, para que ele pudesse ser fotografado ou filmado. Algumas marcas, claro, restavam. E ninguém – nem repórter, nem fotógrafo, nem mesmo os leitores – achava estranho.
É por causa dessa mentalidade, ainda hoje largamente disseminada entre a população brasileira, que as denúncias das torturas praticadas nas cadeias e prisões não causam revolta – para além das organizações de direitos humanos e alguns segmentos restritos da sociedade. Como se, ao ser condenado ou apenas suspeito de um crime, as pessoas perdessem todos os seus direitos, inclusive os fundamentais.
Se a tortura de presos políticos durante a ditadura tem grande repercussão na classe média, a tortura contumaz dos presos comuns, praticada antes, durante e depois do regime militar, é tolerada por parte da população – até hoje. Sobre a tortura disseminada nas cadeias e prisões brasileiras, aliás, aguarda-se a divulgação do relatório da ONU, cujos resultados e recomendações estão nas mãos do governo federal desde fevereiro.
Se no passado alguém estranhasse as marcas dos presos, bastava alegar “resistência à prisão” – “explicação” até hoje amplamente usada pelas polícias para justificar a morte de suspeitos. É assim que a pena de morte – punição inexistente na legislação brasileira – tem vigorado na prática no país. Suspeitos são executados pela polícia – e a justificativa é “morto ao resistir à prisão” ou “morto em confronto” ou “morto durante troca de tiros”.
Ontem – como hoje –, na prática, o preso não tinha nenhum direito a não querer dar entrevista ou ser fotografado ou filmado. Estava implícito que, se tentasse protestar, seria agredido. Era comum os policiais levantarem a cabeça do preso para as câmeras. Tanto daqueles que não queriam ter seu rosto exposto quanto daqueles que tinham sido tão torturados que não conseguiam manter a cabeça ereta sobre o pescoço.
Esta era a cultura que imperava – e em geral as redações não estranhavam, ou quem estranhava preferia deixar por isso mesmo para não ter de se confrontar com a “naturalidade” reinante. Não me parece – pelo que assistimos nesse vídeo – que hoje a situação seja muito diferente.
No início dos anos 90, um colega de jornal, Solano Nascimento (hoje professor do curso de jornalismo da UnB), que raramente cobria a área policial, presenciou um agente dar um tapa em um preso. Vários jornalistas, de outros veículos, testemunharam a cena. Mas só ele estranhou e denunciou a violência na sua matéria. O fato – o de um jornalista ter denunciado algo que para muitos era corriqueiro – causou espanto nas redações. Ainda assim, a polícia foi obrigada a abrir uma sindicância.
Uma pesquisa realizada em 2009 por Marcos Rolim, Luiz Eduardo Soares e Silvia Ramos com profissionais de segurança pública mostrou que 20,5% dos quase 65 mil policiais que responderam ao questionário – 1 em cada 5 – afirmaram ter sofrido torturas em seu processo de formação. O curioso é que a cultura de violência também se fazia presente na formação dos repórteres de polícia, ainda que em proporções mais amenas. Uma espécie de “batismo de sangue” (no caso, sangue alheio) era motivo de orgulho e até de certa superioridade diante dos “frouxos” de outras editorias. Posso afirmar que isso persistiu até pelo menos a década de 90 – mas há motivos para supor que ainda exista em algumas regiões do país.
Entre os jornalistas, a iniciação era feita de várias maneiras. Uma repórter contou que, em seu primeiro dia de trabalho, foi escoltada das 7h às 21h por um jornalista veterano, com um revólver calibre 38 na cintura (era a década de 80 e o “três-oitão” ainda vivia momentos de glória). Nestas 14 horas ininterruptas, eles acompanharam todas as mortes ocorridas na cidade – não só os assassinatos, mas também os suicídios. O veterano obrigou a “foca” a examinar os cadáveres, verificar o que havia nos bolsos, apalpar os “presuntos”, como ele chamava. Ao final do processo de violação dos corpos, ela tinha de relatar o número de buracos de bala e de perfurações de faca, sob os olhos cúmplices dos policiais responsáveis pela investigação.
Nos deslocamentos entre um morto e outro, o veterano contava sobre como gostava de torturar “vagabundos” e lamentava o fim da ditadura. Quando a noite chegou, ele a levou ao plantão de polícia do pronto-socorro público. Lá ela viu uma mulher chegar gritando e chorando, com o corpo todo esfaqueado e o sangue saindo por todos os furos. Pela mão, a mulher levava um menino com cerca de cinco ou seis anos. Quando a jovem repórter viu os olhos do menino, deu alguns passos e desmaiou no corredor do hospital. Quando acordou, descobriu que tinha urinado na roupa durante o desmaio.
O veterano a levou para casa no carro do jornal e, ao descobrir que ela morava sozinha, impôs sua autoridade para deixá-lo entrar, com a justificativa de que era sua responsabilidade profissional ter certeza de que ela, uma subordinada, ficaria bem. Enquanto a jornalista tomava banho, ele revistou a sua casa. Nada pior aconteceu porque ela arranjou um jeito de dizer que o sogro era professor universitário e a família do namorado deveria estar preocupada com o seu atraso. Por muitos meses ela sentiu-se violentada e não conseguia dormir sozinha em casa. Trocou as fechaduras da porta, lavou todas as suas roupas, porque o veterano repórter de polícia as tinha tocado, e botou fora tudo aquilo que não era documento, inclusive seus bichos de pelúcia.
Assim eram as coisas há não tanto tempo atrás. E acredito que ainda sejam em algumas redações do país. A reportagem que gerou a polêmica não é um episódio isolado. Assim como a teia de responsáveis é ampla e não se restringe à repórter e ao apresentador. E, por fim, a realidade a que assistimos hoje é parte de um processo histórico da imprensa brasileira, com capítulos ainda obscuros. Basta lembrar que conhecemos os nomes dos torturadores e dos legistas que assinavam os laudos falsos da ditadura, mas desconhecemos o nome dos jornalistas que foram cúmplices do regime também nos porões da repressão.
Uma linha de investigação interessante para um livro ou uma pesquisa acadêmica seria entender como a cultura da violência e a relação de promiscuidade de parte dos jornalistas de polícia com os aparatos de repressão da ditadura manteve-se e encontrou novas expressões a partir da retomada da democracia. Uma dessas expressões são os programas considerados sensacionalistas, mas com grande audiência, com reportagens como a que agora discutimos.
Estabelece-se no país a tolerância à violação dos direitos dos presos e dos pobres, mesmo na democracia – bastando apenas fazer uma careta e dizer que os programas são “sensacionalistas”. Os “esclarecidos” dizem que não assistem “a esse lixo” – e isso seria suficiente. O “jornalismo sério” considera-se separado da ralé – e isso seria suficiente. Na prática, sabemos que, na guerra pela audiência, cada vez mais acirrada, a contaminação entre o jornalismo “sério” e o “sensacionalista” é crescente e estimulada. E, mesmo na imprensa considerada séria, parte dos jornalistas que cobrem a área, como se diz no jargão, continua “comendo na mão da polícia”. E não é uma parte tão pequena assim.
Qual é a novidade? A grande – e boa – novidade é a capacidade de mobilização e de pressão pelas redes sociais. Até não muito tempo atrás, duvido que a apuração da responsabilidade de jornalistas como os do vídeo fosse sequer cogitada. Alertado por Fabrício Ramos, pelo Facebook, o vídeo foi postado em 21/5 no blog de Renato Roval. Em menos de 24 horas foi replicado em centenas de blogs e disseminado pelo Twitter, ganhando repercussão nacional.
Se estamos discutindo esse episódio aqui é porque as pessoas estão usando a internet para exercer sua cidadania e se responsabilizar pela democracia, que vai muito além do voto. Usando os instrumentos da internet para exercer pressão legítima, forçando a quebra do corporativismo, o funcionamento das instituições e o cumprimento das leis. Não me parece que nos faltem leis – o que nos falta é justiça. E, para a parte mais frágil da população, acesso à Justiça.
Na semana passada, os responsáveis pela condenação e humilhação públicas de um suspeito negro, pobre e analfabeto descobriram que os jornalistas não estão acima da lei. Enfim, uma boa notícia.
Basta ligar a televisão para ter certeza de que nem essa jornalista, nem esse apresentador, nem essa rede de TV são os únicos a violar direitos previstos em lei, especialmente contra presos e contra favelados e moradores das periferias do Brasil. Especialmente, portanto, contra os mais frágeis e com menos acesso à Justiça. Vale a pena lembrar que o número de defensores públicos no Brasil é insuficiente – em São Paulo, por exemplo, segundo relatório feito pela Pastoral Carcerária Nacional e pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, há apenas 500 defensores públicos para prestar assistência jurídica à população carente. E quase 60 mil presos que nunca foram julgados.
Como também sabemos, nenhum jornalista publica ou veicula o que quer. Para que reportagens como esta tenham espaço é preciso que exista antes uma estrutura disposta a permitir que os maus profissionais violem as leis. Em última instância, também quem anuncia seus produtos em programas que exibem esse tipo de reportagem está sendo conivente e estimulando a violação de direitos.
A responsabilidade não acaba aí. Nos blogs, onde o vídeo foi denunciado como uma violação de Direitos Humanos, parte dos comentários dos leitores pode ser assim resumida: “Ah, mas ele não é nenhum inocente”. Ou: “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”. São afirmações estúpidas, mas elas ajudam a explicar por que esse tipo de abordagem tem audiência. Persiste ainda no Brasil uma ideia de condenação sem julgamento – e o linchamento público, via TV, é uma das formas mais apreciadas de exercer a barbárie. Até porque, dessa forma, ninguém precisa sujar as mãos de sangue.
É preciso, porém, lembrar o óbvio: até ser julgado, um suspeito é um suspeito. E só o ritual da Justiça poderá dizer se ele é culpado ou inocente. E, mesmo culpado, ele vai cumprir a pena determinada pela lei, mas continuará a ter direitos. E esta é uma conquista da civilização – contra a barbárie.
É também por causa da vontade de fazer “justiça” com as próprias mãos de parte da população que o mau jornalista se sente “autorizado” a se colocar no lugar de juiz e condenar um suspeito no tribunal midiático. Quem o legitima não são as leis tão duramente conquistadas no processo democrático, mas a audiência. Quem legitima o mau jornalismo é justamente esse tipo de comentário: “Ah, mas ele não é nenhum inocente” ou “Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.
“Queria ver se fosse você que ele tivesse assaltado”.
Para esse tipo de raciocínio valer e o mau jornalismo continuar tendo espaço é preciso que a sociedade decida que não existem leis no Brasil e que os suspeitos perdem todos os direitos e devem ser linchados sem julgamento, nas ruas ou na TV. E isso vale para todos – e também para aqueles que gostam de expressar sua sanha porque pensam estar a salvo da sanha alheia.
Por sorte, não chegamos a esse ponto. Mas, para que violências como a que assistimos não se repitam, não basta punir quem as comete, é preciso que cada um saiba que, ao dar audiência para o mau jornalismo, está escolhendo a barbárie. O telespectador também tem responsabilidade. Cada um de nós tem responsabilidade. É assim numa democracia: a responsabilidade é compartilhada. Quem escolhe, se posiciona e se responsabiliza. E quem se omite também escolhe e se responsabiliza.
Este episódio, que, repito, está longe de ser exceção, poderia ser usado para iluminar capítulos não contados, ou pouco contados, ou ainda mal contados da imprensa. É importante compreender que, historicamente, parte do jornalismo policial tem uma relação promíscua com a polícia. Desde sempre. Parte porque há grandes e decentes repórteres na história da crônica policial brasileira. Mas, arrisco-me a dizer, não representam a maioria.
Na ditadura, parte dos jornalistas policiais foi conivente com a tortura dos presos políticos, da mesma maneira que já era conivente, antes, com a tortura dos presos comuns. E que, depois do fim da ditadura, continuou a ser conivente com a tortura largamente praticada até hoje nas cadeias e presídios do país. Há histórias escabrosas e ainda não bem contadas de repórteres que, inclusive, assistiam às sessões de tortura e até ajudavam a torturar. Estas só tomei conhecimento pela narrativa de colegas mais velhos – obviamente, nunca presenciei.
Na transição democrática, nos anos 80, eu cheguei a conviver com jornalistas da editoria de polícia que andavam armados e achavam não só natural, mas desejável, a tortura de presos. Outros se limitavam a não denunciá-las. Era comum o repórter chegar à delegacia e ouvir a seguinte frase: “Espera um pouquinho, que estamos maquiando o elemento”.
“Maquiar” o preso significava que estavam apagando as marcas de tortura, para que ele pudesse ser fotografado ou filmado. Algumas marcas, claro, restavam. E ninguém – nem repórter, nem fotógrafo, nem mesmo os leitores – achava estranho.
É por causa dessa mentalidade, ainda hoje largamente disseminada entre a população brasileira, que as denúncias das torturas praticadas nas cadeias e prisões não causam revolta – para além das organizações de direitos humanos e alguns segmentos restritos da sociedade. Como se, ao ser condenado ou apenas suspeito de um crime, as pessoas perdessem todos os seus direitos, inclusive os fundamentais.
Se a tortura de presos políticos durante a ditadura tem grande repercussão na classe média, a tortura contumaz dos presos comuns, praticada antes, durante e depois do regime militar, é tolerada por parte da população – até hoje. Sobre a tortura disseminada nas cadeias e prisões brasileiras, aliás, aguarda-se a divulgação do relatório da ONU, cujos resultados e recomendações estão nas mãos do governo federal desde fevereiro.
Se no passado alguém estranhasse as marcas dos presos, bastava alegar “resistência à prisão” – “explicação” até hoje amplamente usada pelas polícias para justificar a morte de suspeitos. É assim que a pena de morte – punição inexistente na legislação brasileira – tem vigorado na prática no país. Suspeitos são executados pela polícia – e a justificativa é “morto ao resistir à prisão” ou “morto em confronto” ou “morto durante troca de tiros”.
Ontem – como hoje –, na prática, o preso não tinha nenhum direito a não querer dar entrevista ou ser fotografado ou filmado. Estava implícito que, se tentasse protestar, seria agredido. Era comum os policiais levantarem a cabeça do preso para as câmeras. Tanto daqueles que não queriam ter seu rosto exposto quanto daqueles que tinham sido tão torturados que não conseguiam manter a cabeça ereta sobre o pescoço.
Esta era a cultura que imperava – e em geral as redações não estranhavam, ou quem estranhava preferia deixar por isso mesmo para não ter de se confrontar com a “naturalidade” reinante. Não me parece – pelo que assistimos nesse vídeo – que hoje a situação seja muito diferente.
No início dos anos 90, um colega de jornal, Solano Nascimento (hoje professor do curso de jornalismo da UnB), que raramente cobria a área policial, presenciou um agente dar um tapa em um preso. Vários jornalistas, de outros veículos, testemunharam a cena. Mas só ele estranhou e denunciou a violência na sua matéria. O fato – o de um jornalista ter denunciado algo que para muitos era corriqueiro – causou espanto nas redações. Ainda assim, a polícia foi obrigada a abrir uma sindicância.
Uma pesquisa realizada em 2009 por Marcos Rolim, Luiz Eduardo Soares e Silvia Ramos com profissionais de segurança pública mostrou que 20,5% dos quase 65 mil policiais que responderam ao questionário – 1 em cada 5 – afirmaram ter sofrido torturas em seu processo de formação. O curioso é que a cultura de violência também se fazia presente na formação dos repórteres de polícia, ainda que em proporções mais amenas. Uma espécie de “batismo de sangue” (no caso, sangue alheio) era motivo de orgulho e até de certa superioridade diante dos “frouxos” de outras editorias. Posso afirmar que isso persistiu até pelo menos a década de 90 – mas há motivos para supor que ainda exista em algumas regiões do país.
Entre os jornalistas, a iniciação era feita de várias maneiras. Uma repórter contou que, em seu primeiro dia de trabalho, foi escoltada das 7h às 21h por um jornalista veterano, com um revólver calibre 38 na cintura (era a década de 80 e o “três-oitão” ainda vivia momentos de glória). Nestas 14 horas ininterruptas, eles acompanharam todas as mortes ocorridas na cidade – não só os assassinatos, mas também os suicídios. O veterano obrigou a “foca” a examinar os cadáveres, verificar o que havia nos bolsos, apalpar os “presuntos”, como ele chamava. Ao final do processo de violação dos corpos, ela tinha de relatar o número de buracos de bala e de perfurações de faca, sob os olhos cúmplices dos policiais responsáveis pela investigação.
Nos deslocamentos entre um morto e outro, o veterano contava sobre como gostava de torturar “vagabundos” e lamentava o fim da ditadura. Quando a noite chegou, ele a levou ao plantão de polícia do pronto-socorro público. Lá ela viu uma mulher chegar gritando e chorando, com o corpo todo esfaqueado e o sangue saindo por todos os furos. Pela mão, a mulher levava um menino com cerca de cinco ou seis anos. Quando a jovem repórter viu os olhos do menino, deu alguns passos e desmaiou no corredor do hospital. Quando acordou, descobriu que tinha urinado na roupa durante o desmaio.
O veterano a levou para casa no carro do jornal e, ao descobrir que ela morava sozinha, impôs sua autoridade para deixá-lo entrar, com a justificativa de que era sua responsabilidade profissional ter certeza de que ela, uma subordinada, ficaria bem. Enquanto a jornalista tomava banho, ele revistou a sua casa. Nada pior aconteceu porque ela arranjou um jeito de dizer que o sogro era professor universitário e a família do namorado deveria estar preocupada com o seu atraso. Por muitos meses ela sentiu-se violentada e não conseguia dormir sozinha em casa. Trocou as fechaduras da porta, lavou todas as suas roupas, porque o veterano repórter de polícia as tinha tocado, e botou fora tudo aquilo que não era documento, inclusive seus bichos de pelúcia.
Assim eram as coisas há não tanto tempo atrás. E acredito que ainda sejam em algumas redações do país. A reportagem que gerou a polêmica não é um episódio isolado. Assim como a teia de responsáveis é ampla e não se restringe à repórter e ao apresentador. E, por fim, a realidade a que assistimos hoje é parte de um processo histórico da imprensa brasileira, com capítulos ainda obscuros. Basta lembrar que conhecemos os nomes dos torturadores e dos legistas que assinavam os laudos falsos da ditadura, mas desconhecemos o nome dos jornalistas que foram cúmplices do regime também nos porões da repressão.
Uma linha de investigação interessante para um livro ou uma pesquisa acadêmica seria entender como a cultura da violência e a relação de promiscuidade de parte dos jornalistas de polícia com os aparatos de repressão da ditadura manteve-se e encontrou novas expressões a partir da retomada da democracia. Uma dessas expressões são os programas considerados sensacionalistas, mas com grande audiência, com reportagens como a que agora discutimos.
Estabelece-se no país a tolerância à violação dos direitos dos presos e dos pobres, mesmo na democracia – bastando apenas fazer uma careta e dizer que os programas são “sensacionalistas”. Os “esclarecidos” dizem que não assistem “a esse lixo” – e isso seria suficiente. O “jornalismo sério” considera-se separado da ralé – e isso seria suficiente. Na prática, sabemos que, na guerra pela audiência, cada vez mais acirrada, a contaminação entre o jornalismo “sério” e o “sensacionalista” é crescente e estimulada. E, mesmo na imprensa considerada séria, parte dos jornalistas que cobrem a área, como se diz no jargão, continua “comendo na mão da polícia”. E não é uma parte tão pequena assim.
Qual é a novidade? A grande – e boa – novidade é a capacidade de mobilização e de pressão pelas redes sociais. Até não muito tempo atrás, duvido que a apuração da responsabilidade de jornalistas como os do vídeo fosse sequer cogitada. Alertado por Fabrício Ramos, pelo Facebook, o vídeo foi postado em 21/5 no blog de Renato Roval. Em menos de 24 horas foi replicado em centenas de blogs e disseminado pelo Twitter, ganhando repercussão nacional.
Se estamos discutindo esse episódio aqui é porque as pessoas estão usando a internet para exercer sua cidadania e se responsabilizar pela democracia, que vai muito além do voto. Usando os instrumentos da internet para exercer pressão legítima, forçando a quebra do corporativismo, o funcionamento das instituições e o cumprimento das leis. Não me parece que nos faltem leis – o que nos falta é justiça. E, para a parte mais frágil da população, acesso à Justiça.
Na semana passada, os responsáveis pela condenação e humilhação públicas de um suspeito negro, pobre e analfabeto descobriram que os jornalistas não estão acima da lei. Enfim, uma boa notícia.
(Publicado na Revista Época em 28/05/2012)