Ao propor “abolir” a prostituição na França, o governo socialista reacendeu o debate, tão velho quanto atual, sobre a quem pertence o corpo da mulher
Quem acompanha a polêmica que se desenrola na França, pode estar se perguntando: por que, a essa altura, a prostituição ainda move tantas paixões? É uma boa pergunta, com muitas respostas possíveis. Se os argumentos contra o sexo pago são bem conhecidos e enraizados na sociedade ocidental, inclusive na brasileira, o debate francês tem sido uma excelente oportunidade para conhecer os argumentos a favor. Manifestos tanto de “trabalhadoras do sexo” como de intelectuais renomados têm invocado questões profundas do nosso tempo: até onde o Estado pode intervir na vida privada, ainda que supostamente “em nome do bem”, é uma delas.
O estopim da polêmica foi uma declaração da ministra dos Direitos das Mulheres e porta-voz do governo da França, Najat Vallaud-Belkacem. Ela afirmou, em julho: “A questão não é a de saber se queremos abolir a prostituição: a resposta é ‘sim’. Mas temos de nos dar os meios de fazê-lo. Meu desejo, assim como o do Partido Socialista, é o de ver a prostituição desaparecer”. Aqui é preciso notar que ela usa o verbo “abolir”. A escolha é proposital: na opinião da ministra, assim como de parte dos socialistas e de parte do movimento feminista, a prostituição é uma forma de escravidão. Logo, não basta proibir – é preciso “abolir”.
Aos 35 anos, bonita, mãe de gêmeos, Najat é dona de uma biografia interessante: nascida em um vilarejo rural do Marrocos, numa família de sete filhos, ela emigrou para a França ainda criança, formou-se em Ciências Políticas na badalada Sciences Po e tornou-se uma ativista dos direitos humanos. Assim que fez a declaração, tornou-se alvo de uma ofensiva das prostitutas organizadas, que saíram às ruas para protestar. Entre elas, uma francesa de 25 anos, pós-graduanda em Literatura, chamada Morgane Merteuil. Secretária-geral do Sindicato das Trabalhadoras do Sexo (Strass), prostituta que atende em domicílio em programas combinados pela internet, ela lançou em setembro um manifesto provocativo chamado: “Liberem o feminismo!”.
Logo na abertura do texto, Morgane diz: “No meu emprego de recepcionista de um bar americano, eu rapidamente me dei conta de que, se eu quisesse ganhar mais de 20 euros por noite, eu teria que fazer sexo oral. Ao refletir, não vi nenhum inconveniente, preferindo fazer isso para pagar meus estudos do que tanto outros empregos piores”.
Em seu manifesto, Morgane acusa as feministas de impor “uma imagem mainstream e burguesa da mulher”. Segundo ela, parte do movimento feminista construiu uma propaganda em torno de um ideal de dignidade e de um modelo de emancipação para a qual “todas as mulheres supostamente deveriam ser irresistivelmente atraídas”. Em contraposição, Morgane defende “um feminismo plural”, que acolha as diferenças entre as mulheres e compreenda que nem todas elas compartilham das mesmas aspirações. A Strass, que Morgane Merteuil representa, chegou a pedir a demissão da ministra Najat Vallaud-Belkacem.
A prostituição tem sido um tema espinhoso tanto para a Esquerda quanto para o feminismo, ao longo da História. É emblemático que essas duas mulheres, a ministra e a prostituta, representantes de seus respectivos movimentos políticos, combatam em campos opostos, quando possivelmente estejam do mesmo lado na maioria dos temas de direitos humanos. Em especial, é bastante revelador que elas se digladiem em campos opostos, mas em nome de um mesmo ideal: a autonomia da mulher.
Antes de continuarmos, vale a pena um parêntese: a prostituição é o ato em que uma mulher adulta vende sexo por escolha própria. Aqui ou na França, as prostitutas ficam furiosas quando se fala em “prostituição infantil”. “Não existe prostituição infantil”, elas dizem. “Se uma criança está transando por dinheiro, ela não está se prostituindo, está sendo estuprada.” Têm toda razão. Há várias violências ligadas ao ato sexual, sobre as quais não há nenhuma discussão: abuso sexual infantil, tráfico de mulheres etc. Estas são consideradas crimes na maioria dos países. Estabelecer essa diferença é fundamental em qualquer debate sério sobre o tema.
Dito isso, a discussão sobre o que é ou significa a prostituição é um campo minado. Por isso a polêmica na França. Para a ministra e os socialistas no poder, a prostituição é uma forma persistente de opressão contra a mulher. Neste olhar, a prostituta é uma vítima da sociedade patriarcal. Nesta relação, o homem abusa do corpo da mulher, colocado no lugar de objeto, e aniquila a sua dignidade. E a mulher, ao estar no papel de prostituta, ocupa uma posição sempre passiva.
Para as igrejas, em especial a Católica, a questão da prostituição é de ordem moral. A prostituta é uma pecadora contumaz. Ainda que possa ser perdoada, é uma mulher decaída que, além de profanar o próprio corpo, usa o sexo para corromper inocentes, conspurcar matrimônios e destruir lares. Ao considerar que a mulher peca ao se prostituir, porém, o olhar religioso pelo menos concede algo de protagonismo à mulher, já que pecar, em geral, é um gesto ativo, ainda que se possa considerar que ela seja induzida ao pecado por um homem mau – ou pelo próprio demônio.
Para parte do movimento feminista – e é importante sublinhar que é parte, porque o tema tem muitas nuances dentro do próprio movimento –, é a sociedade patriarcal que “peca” contra as mulheres. O combate à prostituição ganha conteúdo ideológico explícito e passa a ser tema também da Esquerda, na percepção de que as prostitutas são vítimas do capitalismo: sem condições de exercerem um trabalho digno, por pertencerem às classes mais baixas, as mulheres seriam obrigadas a vender seus corpos. Neste caso, as prostitutas seriam vítimas tanto da sociedade patriarcal, das relações desiguais de gênero, como do capitalismo. Seriam exploradas tanto pelo homem quanto pelo Capital. Esta visão é levada ao campo da política partidária pelas feministas com bastante esforço, já que o mundo da política foi por muito tempo predominantemente masculino – e ainda é. Em geral, o tema é mantido na periferia e raramente chega ao centro, como acontece hoje na França.
O conflito com esses vários olhares se estabelece quando as prostitutas, que até então eram “contadas” e representadas por outros, passam a falar por si mesmas. A partir da segunda metade do século 20, principalmente, elas passam a se organizar e reivindicar protagonismo, tema caro tanto ao movimento feminista quanto à esquerda política. Em suas manifestações, suas líderes dizem algo perturbador: “Eu escolhi ser prostituta”. E, em seguida, passam a reivindicar a regulamentação da profissão e direitos trabalhistas e previdenciários. Não por acaso, se denominam “trabalhadoras do sexo” ou “profissionais do sexo”, anunciando no nome o mundo ao qual pertencem: o mundo do trabalho.
Quando as “vítimas” recusam o lugar de vítima, há um problema. E, claro, o debate torna-se mais complexo e estimulante. Numa provocação às feministas, Morgane Merteuil defende o direito das mulheres muçulmanas de usarem o véu. E combate o que chama de “normalização do sexo”, defendendo também o direito das mulheres que não gostam de sexo e por isso estariam fora do padrão imposto pelas feministas. “Quando uma mulher não se encaixa no modelo emancipado das sociedades ocidentais, ela não é forçosamente uma vítima da dominação dos homens”, diz a prostituta. “Só poderemos qualificar a luta do feminismo como uma luta pela dignidade das mulheres se esta for entendida como uma luta em que cada mulher possa ser considerada digna, independentemente de quais sejam suas escolhas.”
Em uma de suas manifestações, a ministra Najat Vallaud-Belkacem afirmou que as prostitutas na França têm expectativa de vida 40% menor do que as outras mulheres. E declarou: “Não é verdade que as mulheres se prostituem porque querem. Na França, 85% delas preferiam ter outro estilo de vida”. Em contraposição a declarações como esta, as prostitutas francesas poderiam dizer – e têm dito – que o governo socialista deveria atuar para ampliar os direitos e melhorar as condições de trabalho e de saúde das profissionais do sexo, para que a expectativa de vida se ampliasse. Assim como dar alternativas àquelas que prefeririam ter uma outra profissão. Vale a pena lembrar que, se for feita uma pesquisa ampla, talvez o número de descontentes com o “estilo de vida” seja ainda maior em outros tipos de trabalho.
Sobre o tema da prostituição há um filme francês, que talvez ainda esteja em alguns cinemas do Brasil, chamado Elles (Malgorzata Szumowska, 2011). Nele, Juliette Binoche é a “emancipada” jornalista de uma revista feminina – casada, dois filhos, intelectualizada, moderna, possivelmente de esquerda – que, para fazer uma reportagem, mergulha no universo de duas jovens universitárias que pagam os estudos vendendo sexo. Como sempre acontece numa reportagem, a jornalista precisa fazer uma travessia interna na qual confronta sua vida, sua sexualidade e sua visão de mundo. É um filme corajoso, no qual Binoche, na pele de sua personagem, se expõe às câmeras quase sem maquiagem, em vários sentidos.
Na vida real, entre as peças mais interessantes do debate francês está um manifesto intitulado: “A interdição da prostituição é uma quimera”. O texto é assinado por um grupo de 12 intelectuais e feministas. Entre eles estão a filósofa Elisabeth Badinter, a escritora Régine Deforges, o historiador Georges Vigarello e o cineasta e escritor Claude Lanzmann (que causou polêmica na FLIP de 2011, em Paraty). Eles criticam a posição “abolicionista” do governo e a intenção de penalizar os clientes, com multas e até prisão, como estratégia para reprimir a prostituição. Hoje, são as prostitutas que podem pagar multa e até serem presas se forem flagradas oferecendo sexo em espaços públicos.
O grupo abre o manifesto afirmando: “Se a ministra dos Direitos das Mulheres tivesse anunciado a sua intenção de colocar um fim à escravidão das mulheres pelas máfias da prostituição, todos nós, homens e mulheres, indistintamente, aplaudiríamos essa iniciativa. Essa guerra difícil de se levar adiante parte de um imperativo universal. Ela implica, entre outras medidas, a ampliação dos efetivos policiais, a melhoria na cooperação internacional, uma justiça firme, assim como a proteção das mulheres que denunciam seus cafetões. Este não é, porém, o caso atual. O objetivo de abolir de vez a prostituição sobre o pretexto de terminar com a escravidão sexual é de uma outra natureza. Não se trata mais de um imperativo universal, mas de uma tomada de decisão ideológica que supõe os seguintes postulados: 1) a sexualidade tarifada é um atentado à dignidade das mulheres; 2) as prostitutas são todas vítimas e seus clientes todos canalhas. Estes postulados são eminentemente discutíveis”.
Enumero aqui os principais argumentos apresentados no manifesto por considerar que são ricos para uma reflexão menos redutora sobre o tema da prostituição, mas não apenas dele. Trata-se também de discutir até que ponto o Estado deve intervir na vida privada das pessoas, “em nome do bem” – uma questão muito atual no Brasil de hoje. A seguir, os pontos principais:
1) A dignidade das mulheres não repousa no critério das práticas sexuais. Melhor seria admitir: todas as mulheres não têm a mesma relação com seus corpos, e a questão da promiscuidade pode ser uma livre escolha;
2) Os homens que frequentam as prostitutas não são todos os horríveis predadores sexuais que tratam as mulheres como objetos descartáveis. Estranhamente, ninguém jamais fez menção aos garotos de programa, homossexuais ou heterossexuais;
3) A sexualidade humana varia de acordo com as sociedades. E, dentro de uma mesma sociedade, ela varia com a época e com a classe social. Não há uma razão sequer para imaginar que ela vá se amoldar à utopia de uma sexualidade perfeitamente regulada;
4) A penalização dos clientes não trará a supressão da prostituição. Nem as call girls nem os aliciadores pela internet serão afetados por isso, como prova o exemplo sueco (a Suécia criminaliza os clientes desde 1999);
5) Quem irá sofrer com a punição dos clientes serão as proletárias do sexo, que serão mais do que nunca submetidas à extorsão dos proxenetas, que só se beneficiarão da situação;
6) Em nome de uma concepção abstrata da humanidade, os “abolicionistas” querem impor à sociedade francesa sua escolha ideológica, mas quem pode se autoproclamar juiz desse domínio, que é eminentemente privado?
7) Cada adulto tem o direito de poder fazer ou não fazer o que quiser do seu corpo. Decretar ilegal aquilo que consideram imoral não passa de uma derivação despótica do que seja a visão de “o bem”. O poder político não pode intervir nas práticas sexuais consensuais entre adultos;
8) A prioridade é fazer da luta contra os traficantes de seres humanos uma causa nacional e de achar os meios para isso. Pois é aí que estão o crime e o desafio. Perseguir os clientes é dar uma ilusão de ação, com baixo custo. É ceder à tentação proibicionista, que consiste em tudo esperar da criminalização do consumo. Será necessário combater essa visão, que não fará senão produzir um inferno pavimentado com boas intenções.
A polêmica, que parece tão longe de acabar quanto a prostituição na França ou em qualquer lugar do mundo, é instigante. No Brasil, a questão da prostituição é periférica na política partidária – quando não invisível. O tema é mais visível na ficção – na literatura, no passado, hoje nas novelas. Mas a partir do final dos anos 80 do século XX, no processo de redemocratização do país, as prostitutas passaram a se organizar em todo o Brasil. A Davida, fundada no Rio de Janeiro por Gabriela Silva Leite, uma universitária que escolheu se tornar prostituta, é uma das principais organizações de trabalhadores sexuais. Anos atrás, prostitutas ligadas à ONG criaram a Daspu, uma grife de roupas cujos desfiles têm sido notícia nos principais jornais do país – a “Putique” pode ser acessada pela internet.
No Congresso, um projeto de lei de autoria do deputado Jean Wyllys (PSOL), denominado de “Lei Gabriela Leite”, em homenagem à fundadora da Davida, que ajudou a elaborá-lo, contempla a principal reivindicação das prostitutas organizadas: a regulamentação da profissão. O projeto foi protocolado em julho e possivelmente tem pela frente um percurso difícil, quando não pontilhado por preconceitos. Este é um debate que ainda precisa ser enfrentado no Brasil, não só no Legislativo, mas também na Academia e nas ruas – nas luzes e não nas trevas. O processo histórico já mostrou que a marginalização do sexo pago beneficia as organizações criminosas, que traficam e exploram, e desampara a parte mais frágil – as pessoas.
A prostituição pode ser “um ato sexual tarifado” ou “a transformação da mulher em objeto”, pode ser um “pecado” ou “um ato libertário de transgressão”, pode ser “a apropriação do corpo” ou “a alienação do corpo.” Depende de quem olha. Vale a pena lembrar, porém, que ser prostituta é também um desejo de algumas mulheres – e de alguns homens. E, neste sentido, emancipar-se, tornar-se adulto, é se responsabilizar pelo seu desejo.
Me parece que uma explicação possível para o fato de a prostituição ainda hoje causar tanta controvérsia é o território movediço que é a sexualidade humana, e especialmente a feminina. É importante assinalar que todo o debate francês, embora se cite aqui e ali garotos de programas, travestis etc, é essencialmente um debate sobre mulheres prostitutas. Não por acaso. Ao longo da História, tentou-se normatizar a sexualidade, e especialmente a sexualidade das mulheres, em nome das mais variadas ideias – ou mesmo sem ideia nenhuma. A realidade não se cansa de demonstrar que a sexualidade está para além do controle, há algo nela que sempre escapa. É por isso que a intenção da ministra Najat e do governo socialista de “abolir” a prostituição não passará mesmo de uma quimera.
(Publicado na Revista Época em 15/10/2012)