Uma história sobre nomes, partidas e chegadas
Acabo de chegar de viagem. E as viagens têm esse poder de iluminar as paisagens internas. Pegamos ônibus, trem, avião e, de repente, descobrimos que atravessamos o Atlântico não só fora, mas dentro de nós. Aconteceu comigo desta vez. Voei sobre o oceano para falar sobre a “palavra” na Itália. E descobri o mistério do “m” do meu sobrenome. Fiz uma volta completa para compreender mais de um século da história da minha família. E deste “m” que me constitui e do qual não consigo me livrar.
Explico. Pietro Brun, meu tataravô, embarcou em um navio no final do século 19, como tantos italianos pobres expulsos pela fome e atraídos pelas promessas de terra na América. Pietro queria terra, sim. Mas o ímpeto feroz que o movia era salvar um território de outra ordem. Ele queria salvar seu nome, encarnado naquele momento na figura de meu bisavô, Antônio. Pietro fora obrigado a servir o Exército como soldado por anos e lutou na guerra austro-prussiana nas fileiras da Áustria. Ele conhecia a sorte que tinha de ter sobrevivido não só às batalhas todas, mas também aos invernos e à falta de comida. Não queria que Antônio tivesse o mesmo destino, porque o mais provável para um soldado naquela época era morrer – e não viver. Havia chegado a hora de Antônio se alistar, e o pai decidiu que não perderia seu filho. Fugiu com ele e com a filha Luigia para o sul do Brasil. Como desertava, meu bisavô Antônio foi levado em um bote até o navio que já se afastava do porto de Gênova, para embarcar como clandestino.
Meu tataravô Pietro tinha um motivo muito forte para salvar seu último filho homem – e sua descendência. Giuseppe, seu outro filho, fora estrangulado. O menino de 15 anos se distraiu pastoreando, e os animais comeram o pasto de um vizinho. Motivo suficiente para perder a vida. Sua mãe, minha tataravó Thereza, morreria de tristeza mais tarde. Os tempos eram assim.
Pietro queria terra, portanto, para plantar um filho. E um nome. E para isso separou a família já destroçada pela tragédia. Em Udine, na região italiana do Friuli, ele deixou seus mortos e as filhas mais velhas. Foi assim que os Brun, a árvore que me constitui como nome, se separaram. Não como um adeus, mas como um esquartejamento. Se as mãos que estrangularam um menino haviam despedaçado simbolicamente a família, o oceano era a faca que separaria literalmente suas partes. A mãe permaneceu com o filho morto, o pai fugiu com o filho vivo.
Quando desembarcaram no Brasil, em 10 de fevereiro de 1883, o funcionário do governo, como aconteceu tantas e tantas vezes, registrou o nome conforme ouviu. E foi assim que, no mundo novo, nos tornamos Brum – com “m”. Meu pai, Argemiro, filho de José, neto de Antônio e bisneto de Pietro, pegou para si a missão de resgatar essa história e documentá-la. É este afinal o sentido da literatura da vida real. Ou pelo menos um deles. Tentar amalgamar pela palavra o que foi separado pela carne. Missão impossível, porque a palavra é para sempre insuficiente para abarcar a vida.
Há uns 20 anos pensamos em reivindicar a cidadania italiana. Temos todos os documentos, cuidadosamente organizados em uma pasta. Mas havia esta mudança de letra entre nós. Antes de ingressar com a documentação, seria preciso corrigir o erro do burocrata do governo imperial que substituiu um “m” por um “n”. Um segundo ele deve ter demorado para nos transformar, e com certeza morreu sem saber. E se soubesse não teria se importado porque, afinal, era apenas o nome de mais um imigrante destituído de tudo, até de pátria.
Cabia a mim levar essa empreitada adiante. E não pude. Assim como nunca fui capaz de alcançar Udine e tentar descobrir o que aconteceu com os membros que permaneceram, embora já tenha estado na Itália quatro vezes. No ano passado, estive a meia-hora de trem de lá. E não peguei esse trem. Há uma semana, estive quase ao lado. E não fui. O que pode haver lá para mim, quatro gerações depois?, eu pensava. Se encontrar algum parente, podem até achar que quero dinheiro ou hotel de graça. Sinto uma tristeza irritada por aqueles descendentes de italianos que colocam adesivos nos carros: “Sou italiano graças a Deus”. Escrito em italiano, claro. Afinal, seus antepassados foram praticamente expulsos da Itália que tanto louvam – e foi no Brasil que reinventaram suas vidas.
Eu sou brasileira. Mas carrego essas partes mortas como vida, essa amputação transmitida pela oralidade e há duas gerações convertida em palavra escrita. E toda vez tenho de dar explicações sobre por que não tenho cidadania italiana. Como explicar o que nem eu compreendia muito bem? Só sabia que não podia simplesmente voltar a ser o que nunca fui: uma Brun.
Compreendi nesta última viagem por que não conseguia mudar a letra. A palavra é o corpo que eu habito. Eu não sei se existe vida após a morte. Desconfio que não. O que sei é que não existe vida fora da palavra escrita. Só sei ser – por escrito. Se no meu corpo carrego todas as minhas marcas em forma de cicatrizes, manchas de sol e agora algumas rugas, no meu nome carrego o que sou e o que não sou, sustento o que busco e não alcanço, e também o silêncio que grita como aquilo que para sempre será incapturável em mim.
Existe uma autonomia na forma como damos carne ao nosso nome com a vida que construímos – e não com a que herdamos. E existe aquilo que deve permanecer porque é história que veio antes. Podemos desconhecê-la, mas de algum modo ela ainda estará lá. Por isso eu sempre escolho a memória. A desmemória assombra porque existe e não a nomeamos, respira em nós como fantasma. A memória, não. A memória é uma escolha do que esquecer e do que lembrar – e uma oportunidade para ressignificar nossas lembranças. As vividas por nós – e as da tradição familiar.
Ao fugirem para o Brasil, literalmente esquartejados, os Brun ganharam uma perna a mais no nome. O “n” virou “m”. Mas esta perna a mais era um membro fantasma, um ganho que assinalava uma perda. Esta perna a mais era Giuseppe assassinado por estrangulamento, era Thereza morta de tristeza, era uma pátria perdida, um estar no mundo que já não podia ser. Passou despercebido para os que aqui chegaram porque eram analfabetos. Ao se alfabetizar, ganhar uma existência nas letras, meu pai descobriu que era um nome errado. Se alfabetizar, reconhecer-se na palavra escrita, como sabemos, é, ao mesmo tempo, redenção e maldição.
Não pude entrar com uma ação judicial, relativamente simples, para corrigir o nome, porque não é possível para mim eliminar essa cicatriz que assinala tanto uma presença quanto uma ausência. E presença e ausência é, afinal, a essência de todos os nomes. Seria só uma mudança no documento, me dizem, mas para mim nada que é documento e nada que é escrito pode ser “só”.
A perna a mais que o Brasil nos deu é tanto, demais. Eliminá-la seria como apagar toda uma jornada que vai muito além do Oceano Atlântico. Porque essa perna a mais é ao mesmo tempo perda e ganho. A perda de tudo o que ficou e o ganho de tudo o que aconteceu depois, o velho e o novo. Não posso simplesmente apagá-la ou corrigi-la porque para mim não é erro – e sim marca. Uma marca que diz mais de mim do que as letras que sobreviveram incólumes à mudança de mundo. Uma marca que, se for eliminada, se converterá em falta.
Quando Pietro Brun atravessou o mar deixando mortos e vivos na margem que se distanciou, ele não poderia ser o mesmo ao alcançar o outro lado. Ele tinha de ser outro, assim como todos nós que resultamos dessa aventura desesperada. Era imperativo que ele fosse Pietro Brum – e depois até Pedro Brum. Como não há rastro do funcionário displicente que errou o nome do imigrante ao registrar sua chegada nos papéis do governo, posso dar um outro significado mesmo a este homem que possivelmente fazia o seu trabalho com a mesma dedicação empreendida por grande parte dos funcionários públicos de hoje.
Agora sei que não tenho um nome errado, mas um nome assinalado pelo que viveu. Há uma semana dei a essa perna não mais o lugar de membro fantasma, mas de travessia. E agora me dedico a inventar um funcionário público melancólico e solitário, que à noite devorava livros em um quartinho de pensão no Rio de Janeiro do final do século 19, espantando a caspa que caía sobre as páginas gastas pelo uso. Diante de mais um imigrante estropiado e destituído de letras, amputado por uma separação e uma saudade, ele pensou: este homem vai precisar de mais uma perna para conseguir inventar uma vida no Brasil. E, poderoso assim de repente, molhando a pena no tinteiro e a empunhando com brio, como eu agora o invento, naquele momento ele inventou um “m” para mim.
(Publicado na Revista Época em 19/09/2011)