Vivemos mais tempo na imaginação do que naquilo que chamamos de real
Acordo num susto. Estou ofegante e respiro pela boca. Confiro o relógio. São duas da manhã. Tive um pesadelo terrível. Mas não tenho a menor ideia, nenhuma pista mesmo, sobre de que matéria era feito. Este era tão ruim, falava de alguma verdade tão proibida, que mesmo ao acordar num repente é apagado. Seja lá o que for, vai assombrar meu sono e minha vigília ainda muitas vezes, adotando as formas mais diversas. Quando acordo novamente já amanheceu e agora eu guardo uma sensação boa. Eu voava e sabia que era um sonho. Podia voar sem medo de cair porque no sonho penso que, se cair, caio na minha cama. Passo o dia com estas duas sensações bem presentes dentro de mim. O susto não nomeado do primeiro pesadelo e meu voo sem medo sobre o mundo.
Estas duas sensações que vêm do sonho são menos reais para mim do que as notícias do jornal que leio enquanto tomo chimarrão? Ou o iogurte que como de colher com farinha de linhaça? As lembranças e sensações que você guarda do seu sonho e que às vezes lhe acompanham no cotidiano são menos reais para você do que as tarefas rotineiras?
Sigo no meu dia. Você que me lê também segue no seu, em algum lugar. Ao longo das horas eu devaneio enquanto cozinho, lavo roupa, passo no supermercado, devolvo dois filmes na locadora e estaciono meus pés na loja ao lado para escolher um creme para hidratar meu cabelo. Escolho um, mais barato, mas a moça me conta das maravilhas de outro e eu, que enquanto ela fala fantasio em minha cabeça imagens de meu cabelo reluzindo como o das propagandas de xampu, deixo-me enganar bem satisfeita.
Nas muitas horas que trabalho todo dia não saberia dizer por quanto tempo divago. Com certeza, muito. De repente, me pego olhando para a parede azul do meu escritório há uns bons 15 minutos. Sonho com uma possível viagem para a Escócia que planejo fazer com a desculpa de melhorar meu inglês, mas que é movida muito mais pelas fantasias que desde criança eu tenho com as Terras Altas, mulheres guerreiras e homens de kilt. “Eles não usam nada por baixo!”, brinca meu professor de inglês, dando apoio ao projeto, mas embalado por suas próprias fabulações.
Ao final do dia, leio um livro sobre a história do Haiti e lá pelas tantas estou no meio de um parágrafo tentando imaginar como eram os dias de Toussaint L’Ouverture, o líder negro que lutou pela libertação dos escravos e a independência do país. Mais tarde, converso com uma de minhas amigas mais descoladas e descubro que ela está com ciúmes da Kate Middleton. Suas dores nada têm a ver com o príncipe William, que ela até acha bem sem sal, mas sim com todas as histórias de princesa que leu e as comédias românticas a que assiste escondida até de si mesma. Minha amiga, uma mulher que se arriscou em dezenas de aventuras mundo afora e tem uma vida amorosa bem animada, quer ser princesa. Uma parte dela quer, é o que ela me diz, desconsolada com a descoberta, e já ligando para marcar uma sessão extra com o analista. Fico um pouco estarrecida, mas não exatamente surpresa. Até porque antes de dormir assisto ao “Robin Hood” de Ridley Scott. E obviamente quero ser Marion. Vou para a cama suspirando.
Conto aqui meu dia não porque ele seja especialmente interessante, mas porque possivelmente, com variações de temas aqui e ali, ele seja parecido com o seu naquilo que mistura de realidade e fantasia – em sonhos dormindo ou devaneios na vigília. Ainda que você divague com vitórias estrondosas do seu time de futebol, um sucesso profissional estonteante ou até ganhando na mega-sena sozinho (claro!) ou ocupando as manchetes em um ato de heroísmo. Ou se tornando um aventureiro intrépido em algum canto selvagem do mundo enquanto briga com a máquina de café do escritório.
Conto meu dia para que você possa lembrar o seu. E assim possamos ter bem presente que a fantasia ocupa mais tempo da nossa vida do que aquilo que chamamos de realidade. É, portanto, coisa séria. Não séria como sinônimo de chatice e sisudez, mas séria como algo para o qual vale a pena olhar com atenção – e não espanar como tema marginal. Quando lembramos o nosso dia, em geral recordamos os atos concretos, a rotina prática, desde a conta que pagamos no banco ao trabalho que realizamos. E assim calamos um pedaço grande do nosso cotidiano por desprezarmos como irrelevante ou, em alguns casos, até vergonhoso. Perdemos então a chance de nos conhecermos melhor e percebermos para onde caminha o nosso desejo.
É justamente sobre a realidade da fantasia um livro extraordinário que acaba de chegar às livrarias. Chama-se A psicanálise na Terra do Nunca (Penso – Artmed) e foi escrito pelos psicanalistas Diana e Mário Corso. Os autores nos lembram logo na introdução que, ao contrário de nossas crenças, vivemos mais na fantasia do que na realidade. “Quando reflete sobre si, o homem comum se vê como alguém racional, lúcido, com os pés no chão, mas que às vezes é tomado pela fantasia. Os psicanalistas acreditam no contrário: o homem sonha a maior parte do tempo, e em certos momentos, geralmente a contragosto, acorda”. E, mais adiante: “Na prática somos casados com a realidade, mas só pensamos em nossa amante: a fantasia”.
Não existe aí nenhum juízo de valor do que é melhor ou pior, certo ou errado ou mesmo mais ou menos importante. Apenas a constatação de que somos sonhadores despertos ou despertos sonhadores. Somos constituídos pelas nossas fantasias tanto quanto pelos fatos “reais” de nossa vida. Nossas fantasias falam de nós e moldam escolhas bem concretas na nossa trajetória. Desde o homem ou a mulher que escolhemos até a decisão de ter ou não filhos – e, no caso de tê-los, com que tipo de companheiro dividiremos esta tarefa. Assim como ajuda a determinar o que esperamos deste homem ou mulher, da família que vamos formar juntos e de nossos filhos.
É por causa de uma fantasia que eu escolho, como contei mais acima, viajar para a Escócia – e não para os Estados Unidos ou a Nova Zelândia. Tudo de concreto que acontecer lá terá começado décadas atrás, nas histórias das Terras Altas que lia na minha infância. É pela fantasia que os britânicos, assim como a minha amiga aqui, suspenderam sua rotina para falar do noivado do Príncipe William com a plebeia Kate Middleton. E não pela união concreta de um homem que começa a ficar calvo e de uma mulher que pouco se sabe além do fato de ser filha de uma aeromoça. É possivelmente devido à fantasia que o mundo não tenha perdoado Charles, o pai de William, por ter desejado ser o tampax de Camilla Parker-Bowles. Afinal, como ele teve o desplante de destruir num devaneio sexual todos os nossos melhores e mais puros enredos de príncipes e princesas que Diana tão bem soube aproveitar em seu marketing pessoal?
Temos a fantasia como algo menor em nossas vidas, quase um acessório decorativo. Como algo que supomos pertencer mais à infância do que à vida adulta. Nos equivocamos, porém. A fantasia é parte de nós e se faz presente em cada ato cotidiano. E não exatamente separada da realidade, como pensamos. Em geral não dá para dissociar fantasia de realidade, já que uma está imbricada na outra, influenciando-se e transformando-se mutuamente. Há grandes chances, inclusive, de que o nosso último pensamento antes de morrer seja uma fantasia sobre a nossa passagem por este mundo ou sobre o que nos espera em algum outro ou em nenhum, feita da matéria obtida no arsenal de sonhos e histórias de uma vida inteira.
Em seu livro anterior, Fadas no Divã (Atmed, 2006), Diana e Mário Corso se debruçaram sobre os contos de fadas, as histórias e personagens que habitam a infância e nos ajudaram a lidar com nossos medos, desejos e dilemas. Neste novo livro, os autores focam na cultura pop. Filmes, seriados e livros, especialmente, que por mobilizarem milhões e permanecerem no imaginário de uma geração ou de várias, são o que mais perto nossa época alcança de uma mitologia que organiza não a vida de todos, mas a de muitos.
Este livro delicioso, minha sugestão de presente neste Natal, nos ajuda a refletir sobre as fantasias compartilhadas de nossa época. Com a certeza de que nossas histórias preferidas são decisivas para nos tornarmos o que somos. Determinantes na conformação do companheiro, amante, pai ou mãe e também do profissional que somos ou seremos. Não somos muito diferentes das crianças que pedem para ouvir a mesma história muitas e muitas vezes para terem certeza do final – e a sensação de algum controle sobre o que nelas provoca confusão e medo. É bem parecido o que fazemos ao revermos, sempre que possível, os filmes, seriados e até as novelas com as quais nos identificamos de diferentes maneiras.
O que a série de ficção científica “Alien” nos diz sobre a maternidade, por exemplo? Ou “Os Simpsons” do novo lugar do pai na família contemporânea? Ou os androides de “Blade Runner” sobre a queixa do filho de que o pai não ocupa mais o papel tradicional? Ou ainda “Os Waltons”, para quem se lembra de John Boy e Mary Ellen, sobre a família perfeita que ninguém jamais teve? Assim como as crianças que fomos têm muito a agradecer à madrasta da Branca de Neve por ter nos ajudado a elaborar a raiva que às vezes sentíamos de nossa mãe, mas que não ousávamos pronunciar, os adultos que somos têm muito a agradecer ao bebê Alien que “nasce” do tórax dos humanos encarnando alguns de nossos medos mais impronunciáveis.
A ficção nos ajuda a lidar com nossa realidade mais profunda. E só pode nos ajudar porque é real. Se não fosse, filmes, livros e seriados que marcaram a vida de muitos não teriam sucesso nem ganhariam permanência. Não se trata apenas de entretenimento, algo menor e menos importante, mas de nossa própria carne. Os vampiros da série literária Crepúsculo, ainda que mais palatáveis e limpinhos que seu bisavô imortal, o Drácula de Bram Stoker, só vivem em nós – ainda que mortos – porque a relação entre sexo e morte faz parte do que somos e do que nos inquieta no que somos.
Engana-se quem pensa que fantasiar é algo incompatível com a vida adulta. Ao contrário. O que fazemos por toda a nossa existência é justamente inventar uma vida. Que sempre será em boa medida uma ficção. Quando nascemos, é a mãe que inicia a nossa narrativa, quem nos conta que somos alguém pelo seu olhar e pelo seu toque. Para que pudéssemos existir, nossos pais precisaram antes nos imaginar. O livro do bebê será nosso primeiro diário, a primeira história que dá conta de nossa existência como indivíduo. E depois da mãe e do pai virão os avós, os irmãos mais velhos, os personagens do mundo para além da casa. Nos tornamos adultos quando enroscamos em nosso próprio dedo o fio da narrativa de nossa vida.
Acredito que perceber a presença da fantasia na trama de nosso destino nos ajuda a derrubar algumas crenças pessoais e coletivas que nos atrapalham. E mais nos atrapalham porque as confundimos com verdades absolutas e irrevogáveis. Assim como acolher a fantasia no cotidiano pode nos tornar pessoas menos enrijecidas – ou menos paralisadas – por medos que não conseguimos nomear. Não é que podemos crescer e seguir sonhando. A questão é que só podemos crescer se seguirmos sonhando. Como nos lembra a epígrafe de A Psicanálise na Terra do Nunca, na frase brilhante de Fabrício Carpinejar: “A imaginação é o direito constitucional para viver de novo. Não desperdice a vida com uma única vida”.
Não por acaso o título do livro refere-se à Terra do Nunca, o território fantástico e mutante descrito por J.M. Barrie. Como lembram os autores, em um determinado momento Peter Pan pede a Wendy que volte para a Terra do Nunca. Para convencê-la, usa um argumento forte. Wendy poderia ensinar os Meninos Perdidos a contar histórias. Se eles aprendessem, poderiam crescer.
Em cada um de nós mora um menino perdido da Terra do Nunca. Querendo crescer sem saber muito bem como. Achando que está acordado quando passa a maior parte do tempo sonhando. Sem saber que a maior ficção de todas é acreditar que tem os dois pés no chão.
(Publicado na Revista Época em 22/11/2010)