Os crimes brutais cumprem a função – pouco admitida – de apaziguar nossas consciências
Existem várias maneiras de contar um determinado período histórico. Diferentes, mas com sua porção de verdade. No Brasil, poderíamos contar os primeiros anos do século XXI assim: Sandro do Nascimento, sobrevivente do massacre da Candelária, sequestra o ônibus 174 e, ao levar a professora Geisa Firmo Gonçalves como refém, ela é morta (o primeiro tiro partiu do revólver de um policial) e Sandro é executado em seguida, no carro de polícia; o jornalista Pimenta Neves mata a ex-namorada Sandra Gomide e, depois de um breve tempo preso, é solto e permanece livre até hoje; Suzane Von Richthofen, estudante de classe média-alta, é presa como mentora e cúmplice do assassinato dos pais; os adolescentes Liana Friedenbach e Felipe Caffé são mortos (e ela também torturada e violentada) por “Pernambuco” e “Champinha”; Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, pai e madrasta, são condenados por jogar a menina Isabella, de cinco anos, pela janela do prédio em que moravam; depois de mais de 100 horas em cárcere privado, Eloá Cristina é assassinada pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves; o goleiro Bruno Fernandes, então do Flamengo, é preso como suspeito pelo desaparecimento de sua ex-namorada e mãe de seu filho Eliza Samudio. E Wellington Menezes de Oliveira assassinou 12 adolescentes, dez meninas e dois meninos, na escola municipal Tasso da Silveira, no Realengo, antes de se suicidar.
São casos muito diferentes. Em comum, a brutalidade e a repercussão midiática. Me restringi aos crimes com autoria conhecida e vítimas fatais – e possivelmente esqueci algum. Todos eles ocorreram no Rio e em São Paulo ou pelo menos nas regiões metropolitanas dessas duas capitais. E aqui cabe uma pergunta interessante: o número de casos escabrosos se deve à população maior dessas duas cidades ou apenas ao poder de amplificação da mídia do centro do país? É improvável que inexistam casos semelhantes em outras regiões do Brasil. Talvez eles apenas não se tornem uma comoção nacional por falta de vitrine geograficamente abrangente.
Meu interesse, porém, não é discutir o tratamento dado pela imprensa a esse tipo de caso ou mesmo o seu papel – talvez menor do que a maioria de nós costuma supor. Para isso indico o excelente artigo de Eugênio Bucci no Observatório da Imprensa: “Deixar a vida para entrar no espetáculo”.
O que gostaria aqui é de chamar a atenção para essa vida de espasmos. De tempos em tempos, somos assaltados por um barbarismo sangrento cometido por alguém contra um outro – ou outros. E, por alguns dias, semanas, as imagens, detalhes e especulações tomam conta da nossa rotina. Nos assombramos, choramos, passamos mal, alguns de nós clamam por pena de morte (no caso de o algoz não ter se matado ou sido morto), outros por linchamento. Soluções imediatas e oportunistas aparecem misturadas a propostas sérias, sem que saibamos no clamor da hora separar uma da outra. Especialistas de todo o tipo são chamados a nos explicar os fatos no mesmo palco midiático em que as imagens são repassadas inúmeras vezes até a banalidade.
E depois, com o passar dos dias, vamos esquecendo. Até sermos tomados mais uma vez por um crime hediondo diferente, mas pela mesma revolta e por uma vontade sanguinária de matar com requintes de crueldade (aqui o clichê é necessário) o monstro assassino – e, se já estiver morto, a vontade de matá-lo quantas vezes for necessária, de preferência com mais violência do que a usada por ele.
E assim a vida segue. E esse é também um jeito de contar a vida de cada um – não só a de uma época. É natural – e mesmo desejável – que nos choquemos com a violência. Seria preocupante se achássemos corriqueiros acontecimentos como o de Realengo – e se não nos comovêssemos com as vítimas (e alguns, como eu, também com a solidão, o desamparo e a dor do assassino). Mas há certa dose de banalidade na forma como choramos cada tragédia – em geral sem tentarmos compreender as diferenças essenciais de cada uma delas. Que é, afinal, o que nos levaria um pouco mais adiante na compreensão do nosso mundo. E nos arrancaria de uma espécie de anestesia enraivecida – ainda que o termo pareça contraditório.
Crimes bárbaros e espetaculosos chocam, causam sofrimento – mas também dão algo a cada um de nós. Algo de que gostamos e que nos é conveniente, mesmo que jamais admitido. A começar pela reafirmação da certeza de que a loucura está sempre no outro. A violência pertence ao outro. Como parte da mídia prefere simplificar e tachar o assassino de monstro, melhor ainda. O desejo de matar ou/e de violar, o desespero extremo ou a indiferença pelo destino alheio, tudo isso pertence a alguém que não é como nós. É um monstro – e nós somos gente.
Se nós, como cidadãos do bem, temos ganas de estripar, arrancar os olhos, torturar, apedrejar, queimar e finalmente matar o tal do monstro, isso não nos aproxima dele – porque então nós temos outro nome plenamente aceito pelo senso comum: “justiça”. É apenas uma questão de justiça, olho por olho, dente por dente. Talvez desejemos um pouco mais de olho e de dente que o próprio assassino ao cometer seu crime, porque estamos com muita raiva e somos melhores do que ele. Somos humanos, afinal.
Supostamente há uma linha eletrificada e de arame farpado entre o monstro e o resto de nós. Infelizmente essa linha é muito mais tênue – e no fundo de nós sabemos disso. Ou pelo menos desconfiamos. Mesmo quando negamos isso – e especialmente quando negamos com veemência.
Nada mais difícil do que aceitar os próprios demônios – e lidar com eles. E nada mais fácil do que acreditar que só os outros os possuem. O assassino de Realengo que o diga. E aqui não estou me referindo ao conceito religioso de demônio, mas aos sentimentos bem humanos que convivem em nós – e mesmo nos mais santos entre nós – apesar de nossas melhores intenções.
Quem olha para dentro de si com alguma honestidade sabe que é menos limpinho do que gostaria. E lida com isso – em vez de reprimir ou transferir ao outro. Demônios internos, infelizmente, não são transferíveis. Mesmo quando, diante de crimes bárbaros, temos a oportunidade de nos iludir por algum tempo que o autor pertence à outra espécie – uma radicalmente diferente e, portanto, distante. Se fosse possível, de outro planeta.
Crimes bárbaros também nos dão a chance de, de tempos em tempos, extravasar a nossa indignação acumulada. Pela rotina que nos esmaga; pelo chefe que nos humilha; pelo salário que não alcança o fim do mês; pelo companheiro ou companheira que não realiza nossos sonhos (nenhum jamais vai poder realizar, mesmo que queira); pelos filhos que eu amo, mas dos quais gostaria de tirar umas férias; pelo colega de trabalho que se dá melhor e a quem invejo sem confessar; pelos ônibus lotados, o trânsito parado, o síndico chato. Enfim, pelo comezinho da vida cotidiana que, a cada manhã, reafirma a nossa (suposta) impotência.
E então algo terrível acontece – com outros, claro – e nós discursamos, berramos, choramos e levantamos os punhos diante da TV. E nos sentimos mais potentes. O reflexo devolvido pelo espelho nos é mais favorável porque nele não vemos um monstro (nem alguém mais acabado ou menos bonito do que gostaríamos), mas um cidadão de bem. E passamos alguns dias, talvez até semanas, apaziguados com uma existência que até há pouco nos parecia ordinária. E com a ilusão de que, por extravasarmos a nossa indignação e gastarmos uma enorme energia nisso, fizemos alguma coisa. Nós, que nos sentimos tão impotentes, de repente temos a fantasia de sermos potentes, ativos. Nós, que desconfiamos que nossa vida não está fazendo sentido, por um momento ganhamos sentido.
Enquanto isso, há muito que está ao nosso alcance. Há sempre muito para mudar na nossa relação dentro e fora de casa na vida miúda e nem por isso destituída de extraordinários do dia a dia. E também no que se relaciona à violência.
Há sempre muito a fazer – e a maioria de nós pouco ou nada faz. Enquanto isso, as escolas públicas caem aos pedaços todos os dias; adolescentes pobres chegam a níveis avançados sem ler nem escrever ano após ano; há mais gente morrendo por falta de atendimento no SUS do que em qualquer chacina; há gente nem um pouco monstruosa perdendo a vida a cada chuvarada por causa de obras públicas que deixaram de ser feitas; há ainda gente passando aquela fome persistente que não mata, mas aniquila; os impostos que nos custam seguem descendo pelo ralo da corrupção e do desperdício; parte de nós nem lembra em que deputado e vereador votou para representá-lo, muito menos cobra uma atuação responsável; e às vezes os que clamam por linchamento são os mesmos que maltratam a companheira e humilham os filhos ou os que tratam seus empregados aos gritos, pagam salários indignos e descumprem as mais básicas leis trabalhistas.
Há desrespeitos e desamparos de todos os formatos ao nosso redor e ao alcance de nossa ação dia após dia. E isso parece não mover a indignação da maioria. E não me refiro à indignação palavrosa, fácil, mas àquela que leva à ação e à transformação, a começar pela transformação de si mesmo. Das suas relações com os seus e com o mundo em que atua. E por que não move?
Porque dá trabalho. E a maioria de nós não quer ter trabalho algum. Porque esse esforço na maioria das vezes é invisível – e o que todos querem é ser herói, ainda que por um dia. E se os heróis das histórias em quadrinhos tinham identidade secreta, na vida real em geral só vale a pena ser herói se tiver alguma câmera de TV por perto.
É muito mais fácil gastar toda essa indignação travando o maxilar diante da TV, batendo o punho na mesa do bar, discursando na parada de ônibus. E, infelizmente, também por causa de nossa inação, não faltarão crimes bárbaros para continuar nos assegurando de nossa normalidade e de que somos cidadãos de bem.
Construir sentido para a vida não é fácil. Com certeza é bem mais difícil do que vociferar contra os “monstros” que se alternam diante de nossa moral cada vez mais indefinida – em imagens com ótima definição.
(Publicado na Revista Época em 18/04/2011)