O que podemos aprender ao entrar em contato com o imponderável da vida?
Na segunda-feira, 1° de junho, peguei um táxi para me levar à redação da ÉPOCA, em São Paulo. Eu vou cedo, para fazer a última revisão no texto desta coluna, antes de enviar para a equipe de ÉPOCA online botar no ar. Depois, participo da reunião de pauta das 10h, onde são tomadas as primeiras decisões sobre a próxima edição da revista. O taxista estava nervoso. “Você viu o que aconteceu? Um avião desapareceu”. Foi assim que eu soube da tragédia do Air France. O motorista precisava compartilhar seu horror com alguém. Relatou-me todos os detalhes que ouvira pelo rádio até chegar ao prédio da Editora Globo. Meia-hora de trânsito paulistano depois, eu sabia que mais de duas centenas de pessoas haviam sumido em algum momento depois das 23h15 do domingo, 31/5. Para além disso, só havia incerteza.
Logo depois da minha chegada à redação, o diretor de ÉPOCA, Helio Gurovitz, me alcançou. “Você vai para o Rio”. Eu pedi uns minutos para terminar a coluna, levantei e fui. De avião, claro. Na hora, é sempre um misto de excitação e de medo, pelo menos para mim. Excitação porque eu sou, como diz minha família, um “bicho repórter”. Eu sofro se não estou onde as coisas estão acontecendo. E medo porque eu sabia que teria de entrar em contato com uma dor sem nome. Cheguei à sucursal do Rio no início da tarde e comecei a localizar os parentes das vítimas, junto com outros quatro colegas. Como você fala com alguém que acabou de saber que o corpo da pessoa que mais amava possivelmente está em algum lugar do oceano Atlântico?
Tarde da noite, no hotel, meu marido me ligou. “Como você está?”. Eu disse: “Estou bem. Acho que depois de 20 anos de reportagem já consigo lidar melhor com isso”. É incrível como a gente, por mais que se esforce, se conhece menos do que gostaria. Na semana que passou eu estava particularmente muito iludida comigo mesma. Naquela noite dormi mal. Tive pesadelos, depois insônia. Uma rotina que se repetiu pelas noites seguintes. Só agora, uma semana depois, acordo da primeira noite sem sonhos ruins.
Peguei um táxi para me levar à sucursal logo cedo, na terça-feira. O Rio de Janeiro continuava lindo, as pessoas caminhavam ao sol, sem ligar para o vento de junho. Na minha cabeça, ecoava sem parar a frase de Joan Didion, uma brilhante jornalista americana: “A vida se transforma rapidamente, a vida muda num instante, você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Joan a escreveu no livro “O Ano do Pensamento Mágico” (Nova Fronteira, 2006), em que elabora, com uma grande reportagem, o luto pela perda repentina de seu marido, vítima de um acidente coronariano fulminante.
Eu tinha um longo caminho até a sucursal. O trânsito do Rio não chega perto do caos de São Paulo, mas ainda assim é difícil. Concentrei-me em pensar no que eu estava sentindo, em entender aquela noite de sonhos ruins, em me entender naquele dia que começava. Por que eu, que tanto me interessava pela tragédia humana, rejeitava tanto aquela cobertura (para além da dificuldade óbvia, claro)? Porque é um vazio, concluí. Ainda que o piloto possa ter errado ou o avião ter algum problema mecânico, não há desejo ali. No assassinato, alguém quis matar, ainda que por um segundo. Na guerra, há intenção. Nas mortes desejadas por alguém há drama humano. Há cobiça, há inveja, há maldade, há até – ou principalmente – paixão. Mas na queda de um avião, se ela não for causada por uma bomba, não. Pelo menos era o que eu acreditava nesse ponto de minhas divagações.
Tragédias como essa comovem tanto as pessoas todas, mesmo as que não tiveram nenhuma perda, mesmo as que nunca voaram, porque esse tipo de fatalidade nos coloca em contato com aquilo que mais tememos: a certeza de que pouco controlamos o nosso destino. É provável que quase todos os passageiros do voo 447 estivessem perfeitamente saudáveis, nem remotamente ameaçados por uma doença. Apesar de toda a empáfia, de conseguirmos até mesmo cortar os céus com asas de metal, a verdade é que toda a certeza de controle não passa de ilusão. Nossa vida muda em um segundo, para o bem e para o mal, sem que pouco ou nada possamos fazer para evitar.
Suspeito que a impossibilidade de controlar o que realmente importa, como a nossa vida, é o que mais tememos em nossa época, toda ela supostamente dominada por uma parafernália eletrônica que nos parece tão precisa, tão poderosa, tão segura. Tão nossa. Descubro então, antes de chegar à Cinelândia, no centro do Rio, que esse talvez seja o maior de todos os dramas humanos.
Catástrofes como a do voo 447 confrontam-nos de imediato com nossa verdade mais profunda: não controlamos quase nada do que é essencial, menos ainda a morte. E sobre isso há pouco a dizer. Ninguém desejou a morte de 228 pessoas que carregavam seus sonhos para Paris. Aconteceu. É esse o vazio com que temos de lidar. A culpa não é do outro, como nos assassinatos que mobilizam a opinião pública. Não há um psicopata tão supostamente diferente de nós que podemos acreditar que estamos a salvo de toda loucura. Não há leis nem cadeia para isso. Não há como evitar por completo falhas e erros. Ainda que a causa seja um erro humano ou uma falha mecânica, isso sempre poderá um dia acontecer. Não há como prever ou escapar totalmente das tempestades da vida. E é esse o tipo de calamidade que mais nos evoca a tragédia maior, aquela com a qual já nascemos, que é a certeza da inevitabilidade da morte.
No caso do voo 447 não podemos nos iludir de que não seremos afetados, de que o drama está longe de nós – ou mais perto do outro. Não. Essa é a fatalidade que pertence à verdade essencial da vida de cada homem, de cada mulher. Não há controle. A vida muda rápido, a vida muda num instante, você senta na poltrona de um avião para uma viagem que você planejou nos mínimos detalhes e a vida que você conhecia acaba de repente.
Pensando tudo isso que agora escrevo, comecei a chorar no banco de trás do táxi. Não um choro convulso, mas lágrimas lentas e intermitentes. Eu sofria pela perda de todas as óperas que o maestro Sílvio Barbato não comporia, pelas frases musicais que jamais seriam criadas; pelas descobertas que o cientista Octavio Augusto Ceva Antunes deixaria de fazer numa área tão importante como a dos medicamentos contra o HIV; pelo que Deise Possamai jamais saberia sobre si mesma, porque a viagem que fazia à Itália em busca de suas raízes nunca seria completada; pelos amigos que Adriana Van Sluijs, que nasceu para ser amiga de alguém, não teria. Percebi naquele instante, enquanto olhava para o mar do Rio de Janeiro, o quanto o mundo acabara de ficar mais pobre por todas as vidas que deixaram de existir de repente.
E pelo menos umas duas lágrimas abriram um rastro na camada de protetor solar que cobria meu rosto, por todas as possibilidades perdidas por aqueles que tiveram o curso da vida alterado, ainda que indiretamente, pela queda do avião da Air France. Como o rumo da existência havia mudado de forma abrupta. Até mesmo para mim. Pensei na semana que eu tinha planejado com tantos detalhes. Que consequências teria essa mudança de curso na minha vida, a longo prazo? Que acontecimentos em cadeia foram suspensos e que outra série foi acionada porque eu estaria no Rio e não em São Paulo, fazendo isso e não aquilo? Eu nunca saberia, já que não há como saber o que poderia ter sido. Mal podemos ter a pretensão de saber o que é.
Quando cheguei à sucursal, liguei para o amigo de um dos passageiros do voo 447. Perguntei a ele se achava que uma das filhas gostaria de falar sobre o pai para o perfil que eu estava fazendo. Ele disse: “Não vou perguntar isso a elas, eu tenho de ser sensível. Sei que vocês, jornalistas, não têm sensibilidade nessa hora”. Minha garganta arranhou. Por ela emergiu uma resposta malcriada, mas tive a sensatez de prendê-la ainda no esôfago. “Nós, repórteres”, como as pessoas gostam de dizer, convivemos com as certezas alheias a nosso respeito. As pessoas parecem sempre saber quem somos e o que sentimos: ou seja, somos seres sedentos de sangue, sem nenhuma espécie de limite, prontos a desrespeitar a dor de alguém para dar uma notícia sensacionalista. É verdade que alguns são assim mesmo. Mas também é verdade que a maioria dos jornalistas que conheço não tem nada a ver com esse perfil. Naquele momento, minha colega Martha Mendonça enchia os olhos de lágrimas ao desligar o telefone depois de tentar falar com a mãe de uma vítima. Escreveu um post no blog Mulher 7X7: “Jornalista não pode chorar?”
Contar a história das tragédias faz com que nós, jornalistas, entremos em contato com uma frequência não desejada com aquilo que a maioria tenta esquecer para conseguir tocar a vida. Nos meus primeiros 11 anos de reportagem, trabalhei no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Lá, eu era conhecida como uma repórter competente para “contar histórias humanas”. Isso fazia com que sempre fosse escolhida para cobrir todo o tipo de drama, de assassinatos a acidentes. Num ano, a RBS, grupo ao qual pertence o jornal, fez uma campanha para reduzir os acidentes de trânsito. Foi determinado então que todos os choques com vítimas fatais virassem notícia no jornal. Todos.
Era eu a primeira a ser escalada. Minha missão era contar quem eram aquelas pessoas cuja vida acabara de se interrompida, quais eram seus sonhos suspensos num átimo, além de todos os detalhes das circunstâncias que as levaram até ali. Lembro que à meia-noite de um domingo eu me vi numa estrada, a 200 quilômetros de Porto Alegre, diante dos corpos carbonizados de quatro crianças no banco traseiro de um carro. Comecei a perceber o óbvio: cada pessoa, rica ou pobre, velha ou jovem, preta ou branca, era movida por um sonho, todas elas estavam indo fazer alguma coisa quando morreram de repente, todas tinham alguma circunstância que poderia ter evitado que estivessem naquele carro, naquele quilômetro, naquele exato instante. E que todos os pequenos detalhes do cotidiano que, em circunstâncias normais sequer são registrados na memória, ganham sentido e relevância na fatalidade. Alguns até mesmo se revestem de premonição.
Logo comecei a detectar todos esses detalhes e fluxos de acontecimentos na minha própria vida. Cada acontecimento trivial tinha potencial de profecia. Se eu perdia um ônibus, eu já imaginava o lide (como é chamado o primeiro parágrafo de uma matéria): “Eliane Brum correu para pegar o ônibus tal, mas as portas se fecharam diante do seu rosto. Ela ainda gritou para o motorista, mas ele seguiu. Um passageiro tentou fazê-lo parar, mas…” É claro que o ônibus seguinte explodiu. Ou, ao contrário, era esse que tinha explodido. As circunstâncias que levaram à morte poderiam ser as mesmas que levaram a escapar da morte. “Eliane Brum correu para pegar o ônibus tal, mas as portas e fecharam diante do seu rosto. Ela ainda gritou para o motorista, mas ele seguiu. Ela xingou mentalmente sua mãe, que havia telefonado na hora em que ela abria a porta de casa para sair. Mas, não fosse o telefonema, ela hoje estaria morta…”.
Ou seja. Sempre pode ser qualquer coisa. E foi isso que começou a me apavorar. Eu cobria um acidente por semana. No mínimo. Fiquei tão aterrorizada com a total falta de controle sobre o destino, o meu e o de todos os outros, que passei a narrar mentalmente reportagens sobre a minha vida. Ou morte. Tudo o que eu fazia – ou deixava de fazer – soava como premonição. No segundo seguinte, a depender de alguma decisão prosaica, eu poderia estar morta ou escapar da morte. Mas como saber? Era um mergulho radical demais na essência da matéria da vida. Porque é exatamente assim: num segundo podemos estar mortos ou escapar da tragédia, e isso é determinado por uma decisão circunstancial, banal. Como mostraram todas as reportagens com aqueles que embarcaram no voo 447 – e com aqueles que “quase” embarcaram.
Mas pensar o tempo todo que podemos estar mortos daqui a um segundo nos impede de viver. Não lembro como lidei com isso para não ficar totalmente paranóica. Revivi essas lembranças agora, ao narrar as histórias dos passageiros do avião. Me surpreendi, no voo de volta, escrevendo mentalmente um lide. Nele, a repórter que cobrira a tragédia do Air France morrera na queda do avião que a levava de volta para casa. Em seguida lembrei que o mesmo imponderável que poderia me levar à morte repentina já havia me levado ao encontro de um grande amor. O mesmo imponderável foi o que determinou a combinação genética que fez de mim o que sou. É feita da mesma matéria a tragédia e o grande encontro, o melhor e o pior, o começo e o fim da vida. Exausta, acabei dormindo.
Tempos atrás vivi a pior turbulência que passei a bordo de um avião, do tipo que a bagagem despenca na nossa cabeça e as pessoas gritam. Rapidamente fiz um balanço da minha trajetória. Pensei: “Eu não quero morrer agora. Mas vivi intensamente a minha vida até aqui”. E eu sentia isso profundamente, nos ossos.
Quando a turbulência passou, mas ainda assim o avião não pôde descer porque os ventos eram muito fortes, e tivemos de voltar porque o combustível poderia ser insuficiente, peguei um pedaço de papel e escrevi para a minha família: “Não se preocupem. Eu vivi intensamente a minha vida. Vivam as suas vidas e sejam felizes, porque eu fui”. Eu queria libertá-los da minha perda trágica, mas também queria me libertar para a morte sem tragédia. Guardei esse pedaço de papel junto com os documentos, na esperança de que fossem encontrados. Mas o avião conseguiu abastecer, os ventos cessaram e eu cheguei em casa pronta para mais vida, outras reportagens, novos medos.
Agora, no instante em que escrevo, cruza pela minha cabeça o pensamento: “E se essa coluna for premonitória?”. Mas logo essa ideia vai embora, levada pelo cheiro absurdamente delicioso do cordeiro que o João prepara na cozinha para o almoço de domingo, receita secreta e imbatível que alegra prosaicamente nossas vidas.
Espero que, se deu tempo para pensar em algo ao perceber a iminência da morte, cada um dos passageiros do voo 447 tenha lembrado de que viveu intensamente a sua vida. E que essa certeza possa tornar não mais fácil, mas menos pesado, o luto de quem os amava.
Só consegui contar suas histórias porque percebi que era disso que se tratava: a memória de uma vida que valeu a pena, seja por pequenos ou grandes feitos, tanto faz. O que escrevemos ao contar a trajetória dos passageiros do voo 447 não foi uma narrativa de morte, mas de vida. É só a vida que pode dar algum conforto na morte, é só a vida que dá sentido à morte. E é só isso que torna possível ser repórter e fazer bem o nosso trabalho diante de uma dor impossível de alcançar por palavras.
Diante da consciência da falta de controle sobre nosso destino, só nos resta viver bem a nossa vida enquanto ela existir. E isso não é pouco.
(Publicado na Revista Época em 08/06/2009)