O grande polemista Christopher Hitchens conta, com a inteligência e a ironia que marcaram a sua obra, como é a vida no mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas a partir do diagnóstico de um câncer
Li o último (e aqui o último tem um sentido maior) livro do britânico Christopher Hitchens durante um voo de Porto Alegre para São Paulo, na semana passada. Quando acabou, a experiência da leitura tinha dado ao voo curto uma extensão inusitada. Sentada na janela, esperando os outros passageiros desembarcarem, eu me sentia de luto por alguém que nunca vi. Como disse Graydon Carter, editor da Vanity Fair, revista americana na qual Hitchens travou alguns de seus mais ardorosos embates, a capacidade de produzir a certeza de que ele escrevia diretamente para cada um de nós era um de seus trunfos. Em seus artigos, Hitchens ofertava-se por inteiro, com o ímpeto desassombrado e feroz que provocou amores e ódios, fez amigos e inimigos. Sempre parecendo estar muito satisfeito pela chance de enveredar por alguma polêmica cabeluda, ao atacar personagens tão diversos quanto Henry Kissinger e Madre Tereza de Calcutá. Tão destemido para escrever quanto era para beber e fumar. Não é diferente neste Últimas palavras (Globo), livro no qual Hitchens espeta seu olhar afiado na convivência com o câncer que acabaria por matá-lo, aos 62 anos, em 15 de dezembro de 2011. Ao desembarcar do avião e do livro, descobri que estava dolorida. Não apenas pelo que ele tinha vivido, não apenas porque ele tinha morrido, mas por uma razão bem egoísta: já não haveria textos de Christopher Hitchens para ler.
Provocar essa sensação no leitor ao final de um livro no qual narra o fim da própria vida mostra o enorme poder de Christopher Hitchens como escritor. O mais provável, neste tema, seria evocar pena, compaixão e lágrimas. Ou, no caso de seus numerosos opositores, uma sensação de vingança saciada pelo sofrimento ao qual foi submetido – seguido pela morte da qual não pôde escapar.
Hitchens, porém, não permite nem piedade, nem vingança. Ele termina sua vida por escrito com uma inteligência e uma honestidade intelectual tão luminosas que só conseguimos lamentar nossa orfandade de suas letras. Em suas últimas palavras, ele consegue escrever sobre si mesmo com o olhar agudo de quem escreve olhando para um outro – mas sem apartar-se de si. Olha de fora e de dentro – ao mesmo tempo.
Há quem possa se chocar quando ele trata o câncer, talvez a palavra mais intoxicada de sentidos do nosso tempo, com tanta sem-cerimônia. Mas não é desrespeito pela dor, nem a sua nem a do outro. Pelo contrário. Vale a pena perceber o quanto é importante que alguém possa olhar para o câncer que o consome também com ironia, até mesmo com humor – não porque é uma experiência menor, mas justamente porque é grande. E poucos seriam capazes dessa ousadia além de Christopher Hitchens.
Nos 19 meses entre o diagnóstico de câncer no esôfago e a sua morte, muitas foram as apostas sobre quantos dias ou semanas ele demoraria antes de capitular e sucumbir à religião – ele, que foi um dos mais dedicados defensores do ateísmo. Contra todos os prognósticos, Hitchens morreu sem perder a coerência. Como ele mesmo diz, diante da expectativa explícita de seus adversários: “Imaginar que eu descarte os princípios que sustentei por toda a vida na esperança de conseguir favores no último minuto? Espero e confio que nenhuma pessoa séria ficaria impressionada com tal escolha barata. O deus que iria recompensar covardia e desonestidade e punir dúvida irreconciliável está entre os muitos deuses em que não acredito”.
Até o fim, um tipo de cristão – mais comum do que todos nós, religiosos e não religiosos, gostaríamos – atacou-o com ódio. Como nesta “contribuição” pinçada por Hitchens na internet, entre tantas: “Quem mais acha que Christopher Hitchens ter câncer de garganta terminal (sic) foi a vingança de Deus por ele usar sua voz para blasfemá-lo? Ateus gostam de ignorar FATOS. Gostam de agir como se tudo fosse uma ‘coincidência’. Verdade? É apenas ‘coincidência’ (que) de todas as partes do seu corpo Christopher Hitchens tenha conseguido um câncer na única parte de seu corpo que usou para blasfemar? Tá, continuem acreditando nisso, ateus. Ele vai se contorcer de agonia e dor e se reduzir a nada, e depois ter uma horrível morte agonizante, e ENTÃO vem a parte realmente divertida, quando ele é mandado para sempre para o FOGO DO INFERNO, para ser torturado e queimado”.
Hitchens escuta e responde mesmo a estas demonstrações de ódio – para além de qualquer mágoa que pudesse sentir por um outro ser humano desejar-lhe tanta dor pelo simples fato de não compartilhar de suas crenças. Como fará durante todo o livro, ele desnuda cada argumento. A começar por esclarecer o crente vingativo de que blasfemou também com outras partes do seu corpo, não atingidas pelo câncer. Entre várias observações, aponta: “Por que não lançar um raio sobre mim, ou algo similarmente assombroso? A divindade vingativa tem um arsenal tristemente pobre se a única coisa em que consegue pensar é exatamente o câncer que minha idade e ‘estilo de vida’ sugeriam que eu pudesse ter”.
Se Hitchens tivesse abdicado de suas convicções no percurso do morrer, nenhum de nós deveria julgá-lo. Do mesmo modo que jamais devemos julgar alguém que tenha delatado seus companheiros durante uma sessão de tortura. A tortura e a doença letal têm causas e implicações diversas, mas compartilham de uma premissa: são dois momentos cuja dimensão e intensidade só são alcançadas por quem os experimenta – e ninguém pode garantir qual será o seu comportamento antes de ter vivido um ou outro. Podemos apenas desejar manter-nos fiéis aos nossos princípios, mas garantir jamais.
Fico contente, porém, que Hitchens tenha conseguido viver até o fim com tudo o que era. Sua coerência deu vigor a suas últimas palavras. E por causa dela ele tornou-se capaz de escrever sobre a vida no que chamou de “Tumorlândia” – como nomeou o mundo novo e muito peculiar no qual são lançadas as pessoas que descobrem um câncer. Importa menos concordar ou discordar de suas ideias – e importa mais a lucidez com que ele tratou o momento possivelmente mais difícil da vida de um homem. Suas últimas palavras constituem um ensaio valioso sobre o morrer – de câncer, no Ocidente, no início do século 21.
Selecionei aqui algumas de suas observações mais provocativas, para nos ajudar a pensar sobre como lidamos com a doença e a morte:
1 – Manual de etiqueta do câncer
Numa sessão de autógrafos, Hitchens foi abordado por uma mulher com “estilo maternal”. Ela multiplicou o tempo de espera de quem estava atrás na fila ao lhe contar uma história escabrosa, arrematada por um “entendo exatamente o que você está passando”. A partir do episódio, Hitchens começou a pensar na conveniência de um pequeno “Manual de Etiqueta do Câncer”. A obra seria destinada “aos doentes e também aos simpatizantes”.
Hitchens explica: “Meu manual teria de impor deveres a mim, bem como àqueles que falam demais, ou de menos, na tentativa de disfarçar o inevitável constrangimento nas relações diplomáticas entre Tumorlândia e seus vizinhos”. Ele gostaria de lembrar às pessoas, em geral, que não circulava por aí com um enorme broche de lapela no qual estava escrito: “PERGUNTE-ME SOBRE CÂNCER DE ESÔFAGO EM METÁSTASE NO QUARTO ESTÁGIO E APENAS SOBRE ISSO”.
No manual, as pessoas seriam orientadas a contar sua história com mais parcimônia, tenha ela um final triste ou feliz, e a permanecer atentas à possibilidade de a plateia não estar interessada. Na posição de “doente de câncer”, ele também se compromete a não desfiar a série de misérias cotidianas que passaram a fazer parte da sua vida diante de um corriqueiro “como vai?”. A melhor resposta para esta pergunta tão educada quanto banal não seria discorrer longamente sobre o funcionamento bipolar do seu intestino. Para conhecidos e estranhos, ele sugere: “Ainda é cedo para saber”. Para a equipe médica: “Pareço ter um câncer hoje”.
Hitchens também sugere aos muito, muito íntimos, que não se precipitem na abordagem da morte, dizendo coisas como esta: “Imagino que chegue uma hora em que você precisa considerar que tem de partir”. Ao escutar isso de alguém, ele ficou chocado. Estava pensando nisso, sabia disso, mas preferia ser ele a dizer, e não um outro, por mais próximo que fosse. A estas pessoas, ele diz: “Eu me preocupo em encarar os fatos difíceis, obrigado”.
2 – Se conselho fosse bom…
Ao ser assolado por todo tipo de conselho bem-intencionado, Hitchens lembrou de um ensaio no qual a crítica de cinema Pauline Kael descreveu Hollywood como “um lugar onde se pode morrer de encorajamento”. E completa: “Na cidade do tumor você às vezes sente que poderia expirar apenas por conselhos”.
Hitchens foi aconselhado, entre outras coisas, a ingerir essência granulada de caroço de pêssego (“ou seria damasco?”), tomar grandes doses de testosterona, abrir seus chacras para adotar um “estado mental receptivo”, adotar dietas macrobióticas e vegetarianas, congelar-se por criogenia.
Com a ironia habitual, ele apreciou apenas o conselho de uma amiga cheyenne-arapaho, que rabiscou num bilhete algo assim: “Todos os meus conhecidos que apelaram para remédios tribais morreram quase que instantaneamente. Se te oferecerem qualquer remédio nativo americano, mova-se o mais rápido possível na direção oposta”.
3 – Ah, os eufemismos…
Hitchens aponta a tendência da medicina moderna de usar eufemismos ao lidar com pessoas com câncer, dando destaque para a palavra “desconforto”: “Como estamos indo hoje? Algum desconforto?”. Diz ainda que “uma avenida de eufemismos” foi aberta pela abordagem empresarial: “Já se encontrou com nossa equipe de ‘gestão da dor’?”.
Sobre os eufemismos, ele afirma: “Assim que você ouve isso da forma errada, pode parecer um eco da prática do torturador de mostrar à vítima os instrumentos que serão usados nela, ou descrever a gama de técnicas e deixar que essas ameaças façam a maior parte do trabalho. (Galileu Galilei teria sido exposto a isso enquanto passava pela pressão gradual que acabou convencendo-o a se retratar)”.
Como jornalista, Hitchens submetera-se à tortura do waterboarding (“afogamento simulado”). No pós-11 de Setembro, comprovou-se que a CIA estava usando esse “método de interrogatório” em suspeitos de terrorismo. Diante da reação chocada de parte dos americanos, o governo de George W. Bush convocou especialistas para afirmar que não se tratava de tortura. Ao assumir a presidência, Barack Obama baniu o “procedimento”.
Durante a controvérsia, Hitchens foi afogado em segredo por membros das Forças Especiais, nas montanhas da Carolina do Norte, por vontade própria. Ele queria provar aos leitores da Vanity Fair que não era uma simulação, mas afogamento de fato. A experiência de ser torturado lhe deixou sequelas e, sempre que aspirava algum tipo de umidade, corria o risco de um ataque de pânico. Ao longo do tratamento do câncer, mostrou-se difícil para ele receber alimentação líquida através de um tubo, ou mesmo ser banhado.
Em seu livro, ele diz: “Há práticas médicas e hospitalares cotidianas banais que lembram às pessoas da tortura praticada pelo Estado. (… ) Mesmo a ideia de algumas aplicações malfeitas de água ou gás, com a intenção de hidratar e nebulizar, para combater problemas respiratórios, são mais do que suficientes para me deixar gravemente doente”.
4 – O Cristo crucificado pode não ser uma visão tranquilizadora
A exibição de crucifixos na parede dos quartos de hospital tem sua desaprovação, com base no que chama de “associações sadomasoquistas pregressas”. Hitchens lembra que os condenados nas guerras religiosas e na Inquisição eram submetidos à visão compulsória da cruz até a morte. “Em algumas das pinturas fervorosas dos grandes autos de fé, não excluindo, acho, alguns dos queimados vivos pintados por Goya na Plaza Mayor, vemos a chama e a fumaça se erguendo perto da vítima, e a própria cruz suspensa sinistramente diante de seus olhos fechados.”
5 – “O que não me mata (NÃO) me fortalece”
Hitchens discorda da frase famosa, atribuída ao filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Na sua experiência com o câncer, descobriu que aquilo que não o mata o enfraquece – e a fraqueza em geral é cumulativa e tem um final previsível. A partir dessa constatação, ele passou a refletir sobre a obstinação terapêutica dos médicos ou o que tem sido chamado aqui de “tratamentos fúteis”. E faz observações muito interessantes sobre este, que é um dos dilemas contemporâneos: se o avanço tecnológico assegurou vários benefícios à saúde e ampliou as possibilidades da medicina, teve como efeito colateral o prolongamento doloroso e inútil da vida.
Entre os exemplos trazidos por ele, há a extraordinária história do filósofo Sidney Hook, que morreu em 1989, mas gostaria de ter morrido antes. Depois de um angiograma ter provocado nele um derrame, numa experiência extremamente dolorosa, ele descobriu-se “na meca médica de Stanford, na Califórnia” e às voltas com o seguinte paradoxo: tinha à disposição um nível de cuidados sem precedentes na história e, ao mesmo tempo, era exposto a um grau de sofrimento que as gerações anteriores poderiam não ser capazes de suportar.
O filósofo pediu ao médico que suspendesse os mecanismos de sustentação da vida, com base em três argumentos: outro derrame doloroso poderia atingi-lo, obrigando-o a sofrer tudo de novo; sua família estava sendo obrigada a passar por uma experiência infernal; recursos estavam sendo investidos à toa. O médico recusou sua reivindicação, usando a seguinte frase: “Algum dia você perceberá a falta de sentido do seu pedido”. O filósofo cunhou então uma expressão poderosa para explicitar a situação a que a medicina condenava pessoas como ele: viver em “túmulos de colchão”.
Hitchens descobriu que algumas pessoas tinham não mais o desejo de morrer com dignidade, mas o desejo de já ter morrido.
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Estas são algumas das observações feitas por Christopher Hitchens sobre viver com câncer. Progressivamente, escrever foi se tornando uma conquista arrancada com muita dificuldade dos dias e das dores. A certa altura, ele viu sua poderosa voz, com a qual travou debates inesquecíveis, ir minguando, calada à força pelo tumor. Descobriu então – e este é um dos momentos mais belos do livro – que não tinha uma voz, era uma voz. Assim como não possuía um corpo, era um corpo. Do mesmo modo que não somente escrevia, mas era palavra escrita. “Escrever não é a apenas a minha forma de vida e de ganhar a vida, mas minha própria vida. (…) Sinto minha personalidade e minha identidade se dissolvendo enquanto contemplo mãos mortas e a perda das correias de transmissão que me ligam à escrita e ao pensamento.”
Christopher Hitchens morreu sendo por inteiro, mesmo que literalmente estivesse aos pedaços. A prova é que, como último ato de vida, ele escolheu pensar sobre a morte.
(Publicado na Revista Época em 24/09/2012)