Quando as palavras são a própria história
No momento em que o talibã agarrou com rudeza o braço do fisioterapeuta Alberto Cairo, no centro ortopédico da cidade afegã de Cabul, ele pensou: “Jane Austen não aprovaria”.
Em sua infância no Congo, o escritor Alain Mabanckou acreditava que sua mãe conhecia todas as línguas e os segredos do mundo. Não era assim. Ou era?
Enrico Varesco, o tradutor, fala cinco idiomas além do italiano. Mas teme perder a memória. Por quê?
Estas três histórias reais foram contadas no Festival de Literatura de Mantova, na Itália, no percurso de um dia pelas ruas da cidade. Elas falam da palavra, daquilo que nos faz humanos ao transformar nossa vida em narrativa. Participei na semana passada do festival que transforma por cinco dias a pequena Mantova numa biblioteca profana onde escritores e leitores se encontram em todos os espaços disponíveis, de igrejas a jardins.
Em uma praça, falei sobre “A palavra que falta”. Em um teatro belíssimo, inaugurado por Mozart quando ele tinha 13 anos, fui entrevistada sobre a vida cotidiana no Brasil, num evento intitulado “O gigante do sul”. Os italianos queriam saber principalmente sobre a nova classe média brasileira e a hidrelétrica de Belo Monte. Nos bastidores, perguntavam por que Lula tinha sido tão desrespeitoso com a Itália, ao libertar e acolher “o assassino Cesare Battisti”. Eu não soube responder.
Foi assim que conheci Enrico Varesco, um tradutor que traduz mais do que a palavra. Depois encontrei Alberto Cairo, um fisioterapeuta com uma aparência monástica que há mais de 20 anos vive em Cabul, no Afeganistão, trabalhando na Cruz Vermelha para dar novas pernas e braços a homens, mulheres e crianças que tiveram partes de seu corpo estilhaçadas na explosão de minas e bombardeios. E também Alain Mabanckou, um congolês – do Congo-Brazzaville, não da República “Democrática” do Congo. Alain é um negro alto e encorpado, que é possuído por ternuras quando fala de seu país, de sua infância e de sua mãe.
Mas chegarei à sua história daqui a alguns parágrafos. Primeiro, Alberto Cairo, um fisioterapeuta italiano mais parecido com a figura imortalizada de Dom Quixote do que com um personagem do Decamerão. Este homem com perfil de vírgula desembarcou no Afeganistão em 1989, com duas valises em que carregava os sete volumes do “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust. Uma amiga sempre insistia para que ele os lesse e Alberto pensou que, finalmente, nas noites solitárias de Cabul, teria tempo para empreender esta pequena epopeia literária.
Proust é raro, mas ler seu romance não é uma tarefa muito fácil. Nem mesmo para alguém que estava ali para dar dignidade em forma de próteses de pernas e braços a uma população devastada até hoje por habitar uma geografia que é ao mesmo tempo “riqueza e maldição”. Quem controla o Afeganistão, controla uma posição geopolítica estratégica. E Alberto já sabia o que os russos e depois os americanos descobriram a um custo incalculável de vidas: “Conquistar o Afeganistão não é difícil, controlá-lo é impossível”.
Enquanto tentava ler Proust, Alberto conheceu Mamud, um afegão que perdera as duas pernas e um braço sem jamais ter empunhado uma arma, como sempre acontece nestas guerras em que a população civil é a vítima de ambos os lados. E a perda de suas vidas é catalogada com um eufemismo: “danos colaterais”. Ah, como é preciso ter cuidado com palavras como estas, que se revelam mais ao mentir.
Todo dia Mamud atravessava o front sobre um carrinho, num malabarismo quase miraculoso na medida em que o empurrava com apenas um braço, o mesmo que dava a mão ao seu filho pequeno. Enquanto tentava devolver a Mamud o impossível em forma de duas pernas e um braço sem carne, Alberto descobriu Jane Austen. E se apaixonou perdidamente por ela, porque naquele mundo em que as pessoas falavam tão de perto, em que o inquiriam sem rodeios sobre tudo, em que não havia centímetros entre a pele do outro e a sua, em que o sangue, o suor e o cheiro de corpos arrebentados colavam no seu próprio, Jane Austen o carregava para uma Inglaterra onde o mal era consumado em frases cheias de voltas sem um único toque.
Depois de passar o dia lidando com feridos de uma guerra interminável, Alberto se refugiava na sutileza ao mesmo tempo precisa e asséptica de Jane Austen. E nem se importou quando sua casa foi assaltada, e um ladrão improvável levou dois dos sete volumes de Proust. Que ladrão seria este que roubou dois livros em outra língua, mas deixou outros cinco para que sua vítima não ficasse à deriva?
No dia em que um poderoso talibã o agarrou pelo braço com violência no centro ortopédico, Alberto achou que devia isso a Jane Austen. Com o braço livre, empunhou um dedo acusador e pronunciou com firmeza: “Que vergonha! Não vê meus cabelos brancos? Por acaso trataria assim o seu próprio pai? Vergonha!”. E viu o hirsuto talibã encolher-se diante dele, enquanto agradecia mentalmente a Jane Austen.
A vida seguiu. E para Alberto seguiu com “A Balada do Café Triste”, de Carson McCullers, livro de contos sobre o amor com enredos muito peculiares e personagens um tanto soturnos. O melhor deles dá titulo ao livro e conta a história de uma mulher de uma pequena cidade americana, Amélia, que acaba com o seu casamento dez dias depois da cerimônia. Em seguida, ela acolhe em sua casa um estranho que se diz seu primo e traz no corpo uma deformação. A mulher já se apaixonara por ele quando o marido reaparece. E desta vez é o estranho que se apaixona pelo marido. Envolvido pela história, Alberto cometeu a gafe de contá-la para uma companheira de trabalho afegã, uma sociedade em que as mulheres têm mobilidade restrita e o amor é um percurso acidentado de uma maneira diversa da que estamos acostumados. Ela esboçou seu escândalo com constrangidos “sim, sim, sim”… E em seguida, penalizada, o presenteou com outro livro.
Quando Mamud já tinha duas pernas e um braço artificial, procurou Alberto: “Você me ensinou a caminhar. Obrigada. Mas não quero mendigar e envergonhar meu filho na escola. Ajuda-me a não mendigar!”. Alberto não sabia o que fazer, temeroso de que na linha de produção Mamud pudesse atrasar o processo e se sentir humilhado. Sem contar que, como grande parte da população afegã, Mamud era analfabeto. Mas arriscou. E em uma semana colegas de trabalho começaram a reclamar que Mamud era rápido demais, e a produtividade aumentara em 25%. Nesse momento, Alberto estava lendo Harry Potter.
Alberto Cairo já implantou mais de 100 mil próteses de braços e pernas e foi cogitado para o Nobel da Paz. Mas ainda não terminou “Em busca do tempo perdido”. Abandonei-o quando começou a dar autógrafos e atravessei a rua. Pronto, tinha deixado Cabul e Alberto para trás. Diante de mim estava Alain Mabanckou e um mundo que eu só conhecera até então na literatura de Joseph Conrad. “Atravessei a infância com a certeza de que minha mãe sabia ler e conhecia todas as línguas do mundo”, disse o congolês depois de alguns goles de água. Quando voltava da escola, a mãe corrigia suas lições passando uma régua onde a caligrafia entortava e as palavras tinham invadido territórios proibidos. Alain declamava Victor Hugo, e a mãe, postada ao seu lado, o interrompia quando algum verso não soava bem. Só bem mais tarde, Alain descobriu que sua mãe era analfabeta. A mesma mulher capaz de explicar que o mar era salgado por causa do suor dos escravos não sabia nem ler nem escrever.
Desde seu primeiro romance, “Vermelho, branco e azul”, traduzido em várias línguas, Alain dedica seus livros a ela: “Mãe, tenho certeza de que você escreveria um livro melhor. Mas tenho feito o melhor que posso. E só faço isso porque sou seu filho”.
Em seguida, uma senhora da plateia perguntou a Alain por que ele escreve em francês e não em uma língua do Congo. Alain respondeu: “Eu respiro em sete línguas congolesas. Mas todas elas são orais. Então, para dizer por escrito que respiro em sete línguas, preciso do francês”.
Lembrei-me de colegas jornalistas afirmando que a linguagem poética não tem precisão nem objetividade suficientes para expressar a realidade e sorri como uma Mona Lisa. Mas, como nas madeleines de Proust, a frase de Alain me levou a Enrico Varesco, o homem que me deixou respirar dentro dele. Tradutor do português para o italiano nos dois eventos em que fui protagonista, Enrico apareceu sem alarde, como se estivesse se materializado das pedras da rua, e eu temi o que aquele homem descolorido faria com as minhas palavras tão escolhidas.
Não poderia estar mais enganada. Começamos lado a lado e, aos poucos, percebi que Enrico não apenas traduzia minhas palavras, mas eu inteira. Em instantes ele incorporou o ritmo da minha fala, assim como as minhas pausas, os meus arroubos e até os meus sorrisos ou o meu franzir de testa. Ele era eu em italiano. A certa altura achei até que, por causa de Enrico, em italiano eu soava melhor.
Quando se acabaram as palavras minhas nele, Enrico retornou ao silêncio e ao seu esforço bem sucedido de desaparecer dentro do próprio corpo. Só mais tarde descobri que falava cinco línguas além do italiano – português, alemão, francês, espanhol e inglês. E que temia perder a memória e não saber mais de si, ele que era sempre um outro. “Você jamais terá problemas na velhice com o cérebro tão afiado”, alguém comentou. E Enrico contestou com uma informação que eu jamais ouvira. “Há muitos casos de Alzheimer na nossa profissão. Treinamos e exercitamos a memória de curto prazo. Temos de lembrar rapidamente de trechos curtos. E precisamos imediatamente esquecê-los, para que outros possam ser memorizados e imediatamente esquecidos.” E se foi num passo intraduzível.
Não sei se a informação tem base científica, além da experiência concreta do mundo peculiar de Enrico. Mas os dias se passaram, e eu não consegui me esquecer do tradutor que se deixou possuir por mim. E que lembra para esquecer, lembra para esquecer, lembra para esquecer. Senti então que deveria lembrar Enrico por escrito para que ele não fosse esquecido. Nem desaparecesse como memória.
Assim é a palavra escrita. Uma geografia onde a memória é aprisionada para que o homem possa se libertar.
(Publicado na Revista Época em 12/09/2011 e atualizado em 12/10/2011)