Com a vênia, Seu Manoelzinho

O dia em que matei o Mensalão e fui ao cinema

Ao contrário de Lula, eu concluí que não tinha nada melhor para fazer do que assistir ao julgamento do Mensalão. Parei tudo e me postei diante do aparelho, ligado na TV Justiça. Na sexta-feira, segundo dia de julgamento, depois de mais de duas horas de explanação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ayres Britto, interrompeu-o para sugerir que se fizesse um intervalo. Gurgel retrucou que ainda não havia chegado à metade e precisaria de pelo menos mais uns 15 minutos. O procurador se preparava para continuar, quando se ouviu no plenário a voz inconfundível do ministro Marco Aurélio Mello. “Talvez não tenhamos fôlego fisiológico…” O argumento mostrou-se de pronto incontestável. O presidente anunciou o intervalo, “com a devida vênia”.

Do meu sofá azul, eu quase aplaudi. Jamais tinha visto alguém avisar que precisava urinar com tanta finesse. Aqui em casa agora não se usa outra coisa. Só mesmo um ministro do Supremo seria capaz de botar toga no xixi. Ouso especular que nem Elizabeth II, das altitudes do seu jubileu, seria capaz de ser tão majestosa. E lá se foi Marco Aurélio para o reservado – ou pelo menos espero que tenha ido, já que eu não estava lá para comprovar o lícito.

O fato é que, desde aquele momento, não fui mais capaz de concentrar-me no julgamento. De repente, me senti asfixiada por tantas vênias. Fui tomada por uma vontade irrevogável de ir às ruas. Eu precisava da vida como ela é para a maior parte das pessoas. E aqui não há nenhum desmerecimento ao Supremo, porque acho que a vida também é como é por lá, à sua própria maneira – e tão, às vezes até mais, como no caso em questão, fervilhante de paixões quanto. Mas eu precisava com uma urgência quase química me misturar à gente que fazia xixi.

Ainda sem entender bem essa necessidade meio tresloucada, mas obedecendo aos instintos, um par de horas mais tarde eu estava enfiada em uma sala escura. Havia passado horas assistindo ao espetáculo que ocupa o palco central do país – e intuí que precisava correr para as margens para resgatar eu não sabia bem o quê. Por razões que nem é preciso de Freud para explicar, acabei escolhendo, entre as tantas possibilidades da programação, um evento gratuito chamado “Cinema de Bordas”, promovido pelo Itaú Cultural. De bordas porque reúne aqueles cineastas que estão fora do centro. Aqueles que, sem recursos financeiros e técnicos, bem longe dos circuitos comerciais, fazem cinema improvisando o que falta – porque não concebem uma vida em que falte o cinema.

Sentei-me ao acaso. Mas não era um dia de acasos. De repente passou por mim um homem de metro e meio de altura, no máximo, bem magrinho, vestindo uma camiseta listrada de branco e verde que parecia nova, calça jeans e uma sandália preta. Pelo jeito que andava e mais ainda pelo que olhava, tentando não olhar, mas espiando se estava sendo olhado, dava para ver que o sujeito era tímido. Foi sentar-se à minha esquerda, um corredor entre nós. Percebi que já tinha visto aquele rosto em algum lugar. Alguém chamou: “Seu Manoelzinho”!

Tive um sobressalto. Era ele, o cineasta que eu já vira uma vez na TV, mas nunca antes em carne e lenda. Um homem que havia feito quase meia centena de filmes na pequena cidade de Mantenópolis, perto da divisa do Espírito Santo com Minas Gerais, sem cruzeiro, cruzado, cruzado novo, real, já que ele fazia cinema há tempo suficiente para ter vivido a carência de todas as moedas da República pós-ditadura. Seu Manoelzinho tinha feito toda uma obra cinematográfica apenas com uma câmera velha e um gravador ainda mais alquebrado, tendo por atores homens, mulheres e crianças da roça, ou vizinhos da periferia da cidade.

A partir daquele instante, a vida para mim estava tanto na tela quanto fora dela. Logo na exibição do primeiro da sequência de quatro filmes, ouvi uma risada como há muito tempo eu não ouvia. Era uma risada que eu dava quando criança – e que fui perdendo com as contenções do protocolo adulto. As tais das vênias. Era uma risada desassombrada, que dava vontade de rir com ela. Era a risada do Seu Manoelzinho, que se divertia com os zumbis que claudicavam na tela. Conheci o encantamento de Seu Manoelzinho pelo cinema antes de conhecer o cinema do Seu Manoelzinho. E soltei eu uma risada de criança, porque é também um encantamento com o mundo que o cinema resgata no coração da gente. A vida humana é um absurdo a maior parte do tempo, e os zumbis estavam ali para nos lembrar disso.

O filme do Seu Manoelzinho era o último dos quatro. Chamava-se “A Maudição da Casa de Vanirim” – e “maldição” estava escrito para além da norma culta, com “u” em vez de “l”. Mas, ali, o que seria um erro deixava de ser para se transformar em uma informação a mais. Seu Manoelzinho vinha de “Uóshinton” para alugar uma casa em “Maiamis” – e aqui, de novo, não era a língua de Muçum, o comediante dos Trapalhões, mas a língua mesmo, fiel à verdade dali. E Maiamis era a zona rural de Mantenópolis, com estradas de terra, morros e uma vegetação de roça, onde ele alugara uma casinha caiada de branco onde o maior luxo era um telefone visivelmente deslocado.

Acompanhado por uma família numerosa, Seu Manoelzinho logo via-se às voltas com uma assombração mascarada, que depois de matar uns quantos filhos e turistas durante uma noite que era sempre dia, porque para gravar à noite é preciso mais recursos, era despachada para o além a tiros. Por Seu Manoelzinho, que, como eu descobriria mais tarde, é sempre o herói e ator principal de todos os seus filmes.

Fui tomada pelo filme, mas também por um dilema. Era uma história de assombração, e eu imaginava que Seu Manoelzinho, logo ali ao meu lado, tinha planejado medo e susto, mas o filme era uma das obras mais engraçadas que eu vira em toda a minha vida. Se eu risse, como toda a plateia fazia, estaria ofendendo Seu Manoelzinho? Percebi então que Seu Manoelzinho era um dos que mais ria. E que eu não estaria rindo dele, mas com ele, o que fazia toda a diferença. No dia seguinte ele me contaria que sabia se o filme era bom pelo riso da plateia. Porque, como cineasta, para Seu Manoelzinho o importante era divertir as pessoas. E aí não importava se era arrepio ou gargalhada, mas sim provocar algo que não havia antes. Alterar a vida pelo momento de um filme, o enorme poder da arte que Seu Manoelzinho havia intuído com uma liberdade que eu só alcançava agora, a partir do olhar dele.

Seu Manoelzinho dava no cinema o que o cinema sempre dera a ele – e por isso também parecia se divertir tanto quanto diretor-roteirista-produtor-e-ator principal quanto como plateia. Ele tinha 2 anos quando a família foi abandonada pelo pai, e a mãe, dona Fernandina, teve de se virar para criar três meninos, com uma vida de roçar a roça dos outros. Manoelzinho até foi para escola, como ele me contaria no dia seguinte, em uma conversa prolongada, na qual se sentou de lado, e não de frente para mim, envergonhado de falar com uma desconhecida. “A gente só ia pra escola pra comer, com tanta fome que ficava louco pra ouvir a sineta da merenda”, explicou. Por causa do tamanho da fome, não conseguia se concentrar no “quadro-verde” e, assim, não pôde aprender a ler nem escrever. Passava os dias oferecendo o pão que compravam numa padaria para revender ao povo da roça, precisado de sustância para aguentar o peso da enxada.

Até que, aos 8 anos, descobriu o cinema no salão paroquial da cidade, ao assistir a um filme marcado na sua memória como “O roubo do trem-correio”. O apaixonamento ganhou eternidades com “Django”, “Sabata”, “Keoma” – e com todos os Mazzaropis. Para ganhar a entrada do cinema, já que só comia pão porque também vendia, passou a fazer a propaganda dos filmes desfilando com cartaz pela cidade. E, mais tarde, quando abriu um outro cinema, com o luxo de um alto-falante, Manoelzinho também anunciava os filmes pelas ruas: “Atenção, senhor e senhora, hoje não perca o sensacional filme que tem por título Portada do Inferno…”

Eram filmes de faroeste, ou pelo menos foram estes que capturaram o menino Manoelzinho. E até hoje ele se espanta: “Era como nos antigamentes lá em Mantenópolis, em que havia muito homem valentão na cidade, que andava armado e botava bronca no lugar. Esses homens nunca tinham visto um filme de faroeste, mas mesmo assim já viviam no estilo do faroeste.” Como era possível?

Para Seu Manoelzinho, era portanto a vida que imitava a arte, o faroeste da realidade copiando o bangue-bangue do cinema. Fiquei especulando se era por essa percepção às avessas que ele quis tanto não só assistir à cinema, mas fazer cinema, algo que deveria soar bastante estapafúrdio na roça de Mantenópolis, ainda mais vindo da boca de um analfabeto. Se a vida imitava o cinema, então bastava fazer cinema para mudar a vida, ele pode ter intuído. De fato, o que aconteceu é que, no final dos anos 80, um conhecido do então jovem Manoelzinho voltou dos Estados Unidos com uma velha câmera VHS. E ouviu possivelmente a proposta mais inusitada da sua vida: “Rapaz, tô doido pra fazer um faroeste. Você filma pra mim”?

E assim surgiu “A Vingança de Loreno”. E descobrimos aqui que Manoel Loreno é o nome do Seu Manoelzinho. Para fazer o filme, veio homem a cavalo de tudo quanto é canto da região, até de 90 quilômetros de lonjura veio um a galope. Ele chama e não importa quantos aparecem, dá um jeito “de arrumar cena pra todo mundo”. E assim Seu Manoelzinho sentou-se pela primeira vez embaixo de uma árvore para fazer o que faria em todos os seus filmes dali em diante: desenhar cena por cena. Em dois dias o filme estava pronto. O povo da roça tinha virado ator de faroeste, e Seu Manoelzinho cineasta. Agora era seu o filme que um menino gritava pelas ruas, montado numa bicicleta: “Não percam logo mais um sensacional filme de Manoel Loreno”!

“A Vingança de Loreno” foi exibido pela primeira vez numa quadra de esportes de Mantenópolis para umas 2 mil pessoas, calcula ele. Sem telão, passaram em duas televisões de 20 polegadas, postadas uma de cada lado. “E o povo se apaixonou tanto pelo meu filme que pediu pra repetir”, conta. A estreia foi tão estrepidosa que acabou virando uma sessão dupla do mesmo filme. Mais tarde, Seu Manoelzinho se tomaria de amores pela mulher, “que era muito bonitinha”, ao vê-la morrer dentro de um córrego pelas mãos do “Espantalho assassino”. Os dois filhos que fizeram no casamento seriam seus filhos também no cinema dali em diante. E a praça da cidade viraria um cinema a céu aberto só para exibir os filmes de Seu Manoelzinho.

Só gosta de faroeste, de causos de trapaça e de assombração, Seu Manoelzinho? Não é bem assim, explica. Ele mesmo já abriu uma exceção para colocar entre suas preferências a adaptação para o cinema de “Romeu e Julieta”. O fato é que, quando Seu Manoelzinho enveredou para o romance, o povo desgostou do seu cinema. Ele mesmo esclarece: “Amor o pessoal não gosta muito. O povo gosta mais de dar risada. Romance é muita conversa”.

Alguém pode pensar que o cinema do Seu Manoelzinho só tem valor por causa da vida do Seu Manoelzinho. Engana-se. Filmados em sequência, seus filmes de ficção expõe o absurdo da realidade com uma verdade que jamais vi em qualquer documentário. Nos filmes de Seu Manoelzinho a ilusão do cinema é desfeita o tempo todo, já que ele não esconde os artifícios usados para criar a história. E o que se conta, para além do enredo em primeiro plano, é o improviso que a vida nos exige, obrigando-nos a uma constante reinvenção do roteiro previsto e sempre fadado ao fracasso.

O telefone que toca na casa de Maiamis só toca porque ao lado dele foi colocado um despertador. A música de fundo só existe porque há um gravador esbodegado tocando a fita no momento da filmagem – e a fita se enrola a certa altura. O sangue é “quissuqui de groselha”, e os tiros são bombinhas que os atores acendem com o cigarro, “porque todo mundo fuma por lá”. Os atores passam na frente da câmera mesmo quando não deveriam estar ali, e houve uma personagem que voltou na pele de outra atriz, sem nenhuma explicação. Já aconteceu até de se ouvir a voz do Seu Manoelzinho, saindo do papel de ator principal para assumir o de diretor, ao gritar: “Fala mais alto”!

Em um texto sobre o cinema do Seu Manoelzinho, a professora Bernadette Lyra, uma das curadoras da mostra, diz: “Neles (os filmes), tudo se passa sem truques e sem outra mediação que aquela da câmera mesma confrontada com os percalços da realidade do tempo/espaço e das necessidades alternativas em que as filmagens se produzem e se realizam”. E, em outro ponto: “É lembrete e testemunha de que no cinema tudo não passa de um grande artifício, mesmo quando um filme quer se fazer passar por documentário fiel da realidade”. E ainda: “A reação dos espectadores (…) é imediata, corporal e participativa. O público ri. Ri diante do desmascaramento daquele artifício com que o cinema de origem realista costuma fazer passar a ficção pela realidade. Ainda que o fenômeno seja involuntário por parte de um realizador como Seu Manoelzinho”. E conclui, lindamente: “Acontece que não é o movimento coerente da história que interessa a Seu Manoelzinho, mas sim o movimento da vida”.

É em um momento no qual a vida toma, mais uma vez, rumos inesperados por causa da arte, que me encontro com Seu Manoelzinho. Desde que apareceu pela primeira vez na TV, ele se vê às voltas com os atrapalhos da fama. “Tô muito famoso demais, mais conhecido que prato de 10 centavos”, diz. Não é que não goste da fama, como me explica, o problema é que a fama veio desacompanhada do dinheiro. Ao verem Seu Manoelzinho na televisão, o povo de Mantenópolis, que sempre atuou de graça nos filmes – ou só pela graça de virar ator –, agora exige cachê. Quem antes lhe dava trabalho como servente de pedreiro, já não lhe oferece mais porque pensa que enricou. Fora aqueles que carregam Seu Manoelzinho para cursos de produção, roteiro e direção, de onde ele volta dizendo: “Eles não entendem o meu cinema”.

Aos 53 anos de uma vida de cinema, Seu Manoelzinho descobre que não tem dinheiro nem para os filmes, que antes nunca precisaram de dinheiro para serem feitos – nem para a vida, já que hoje sobrevive de pequenos cachês em eventos, como este último, e da venda de cópias de seus filmes nas feiras de Mantenópolis e da região. Sobrevive também de Bolsa Família.

Resvalar das bordas ao centro, em efêmeros instantes, colocou Seu Manoelzinho numa encruzilhada. Preocupado com o dinheiro que não tem, ele teme ser obrigado a encerrar a carreira, justamente agora, quando sonha filmar “A Vingança de Loreno 2”. Precisa de quanto, Seu Manoelzinho? “Uns 20 mil.” E acrescenta, todo expectante: “Será que a TV Cultura não me ajuda a fazer o filme”? Não tenho resposta.

Despeço-me de Seu Manoelzinho, que se prepara para enfrentar quase um dia e uma noite inteiras de ônibus, na viagem de São Paulo a Mantenópolis. (Ele já experimentou voar, mas me garante que nem as aeromoças têm confiança “naquele trem”.) E retorno hoje ao julgamento, pensando em como se ligam os milhões de dinheiro público, supostamente usados para pagar deputados, com os 20 mil de que precisa Seu Manoelzinho, para levar cinema ao seu povo. A realidade só ganha sentido quando conseguimos fazer as conexões.

Antes de partir, Seu Manoelzinho explica por que se recusa a fazer papel de vilão no cinema. “Os vilões eu mato tudo. Só o herói faz a fita inteira. Eu não ia pelejar tanto pra fazer um filme pra morrer antes do fim.” São frases precisas para o momento. De certo modo, o que todos tentam enquanto se desenrola o espetáculo, também ali, no plenário do Supremo, é não morrer antes do fim. Alguns agarrados ao personagem, outros tentando um twist (virada) no roteiro para redefinir o papel.

“Nos filmes, eu sou herói”, diz Seu Manoelzinho. E na vida? “Na vida tô sendo também.” Seu Manoelzinho é, porém, algo muito maior do que um herói. Como seu cinema nos mostra, a vida dá um jeito de desarranjar o artifício. Para além da tela, seja a do cinema ou a da TV Justiça, sempre podemos contar com Seu Manoelzinho para nos lembrar que nosso desejo sobrevive tanto aos heróis quantos aos vilões. A vida será sempre nosso melhor espetáculo.

(Publicado na Revista Época em 06/08/2012)