Cuidar da minha morte deixou minha vida mais leve
O ano de 2008 ficará marcado na minha vida como o ano em que confrontei a morte. Como a maioria, eu tinha muito medo dela. Quando minha mãe falava em morrer, eu ficava brava. Ao receber o papel do auxílio-funeral da empresa, rasgava e botava no lixo. Sentia vontade de bater nos vendedores de seguro de vida. Se algum incauto começasse a falar em morte, eu já cortava: “Eu não vou morrer”. Quando pequena, nas orações noturnas, nunca pedi a Deus que me enviasse um anjo-da-guarda. Implorava por um vampiro que mordesse meu pescoço e me garantisse a vida eterna. Era uma fé meio heterodoxa a minha, mas era isso o que eu pedia, além de acordar com olhos azuis.
No ano passado, a morte foi a maior presença na minha vida. Não havia como escapar dela. Ela me cercava por todos os lados, na doença de pessoas queridas. Decidi fazer uma reportagem sobre o fim da vida. Escrever é minha principal estratégia para lidar com os monstros que me assombram. Passei 115 dias acompanhando diariamente uma mulher com um câncer além da possibilidade de cura. Além disso, todas as manhãs de sexta-feira, durante quase quatro meses, testemunhei o trabalho da equipe da Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, um lugar onde o tempo de morrer é respeitado: nem abreviado, nem prolongado. Quem se interessar, pode ler a reportagem nos seguintes links:
Eu queria compreender a morte. Foi um mergulho tão profundo que perdi alguns pedaços pelo caminho. E ainda sangro um pouco em alguns dias. Algumas vezes acho que cheguei perto demais dos meus demônios todos, sem estar preparada para vê-los de tão perto. Depois percebo que valeu a pena. E continua valendo. A experiência me deu algo muito libertador e muito raro: perdi o medo de morrer. Quero viver o máximo que puder, mas não tenho medo de morrer. Demorou, custou, mas compreendi que a morte é parte da vida. Compreendi não apenas com meu cérebro, mas também com meu fígado, meu estômago, meu coração, minha alma. Com toda a inteireza do que sou.
Para isso, tive de lidar com questões sempre adiadas. Aprendi a aceitar limites, compreendi que qualquer ideia de controle é ilusória, percebi a importância de se reconciliar com a vida. É a vida, afinal, que faz diferença no fim. Ao acompanhar tantas pessoas morrendo e ouvir tantas histórias, percebi que morre em paz quem está em paz com sua vida, quem foi capaz de olhar com generosidade para suas memórias – e ressignificá-las. Vi gente rica e intelectualizada morrer agoniada e gente pobre e com pouco estudo encerrar a sua vida serenamente. Passarinhando, como se diz na enfermaria dos que vão se apagando lentamente, sem alarde. E vice-versa. Saber morrer, assim como saber viver, é uma sabedoria que não depende nem de escolaridade nem de conta bancária. Mas é uma sabedoria. Uma das grandes.
Talvez eu descubra, no parapeito da morte, que ainda tenho muito medo. É possível. Como se vive só se sabe vivendo. Como se morre, também. Aprendi a abrir mão da soberba e não julgar a dor do outro. Da dor, só sabe quem sente. Mas não tenho dúvida de que hoje estou mais preparada para morrer do que estava antes. E estou mais preparada para cuidar de quem está morrendo. Porque hoje estou mais preparada para viver. E mais preparada para cuidar de quem vive.
Depois de encerrar a reportagem, decidi comprar meu túmulo. Em diferentes momentos, testemunhei muita confusão nessa hora em que o sofrimento é explorado de todos os modos por quem vive deste comércio. Ninguém consegue tomar decisões acertadas no meio de uma dor tão dilacerante como a da perda de quem ama. Queremos chorar e viver nosso luto, mas temos de enfrentar a foice da burocracia que nos exige papéis. Nesta hora, não é fácil negociar com agentes funerários e nem mesmo com vendedores de flores. Nos sentimos mal de discutir o preço de um caixão, mesmo sabendo que estão nos roubando. Vi algumas cenas que ficariam perfeitas em romances de Gabriel García Márquez, mas que me fizeram mal na vida real.
Decidi cuidar da minha morte. Percebi que era um jeito de cuidar da minha vida. Não sei se vou morrer de enfarte, de acidente, de câncer, de tiro ou de velhice. Mas sei que vou morrer um dia, seja daqui a pouco, quando terminar essa coluna e atravessar a rua, ou daqui a uns 50 anos, como gostaria. Não posso controlar o quando nem o como. Mas posso decidir como e onde serei enterrada. Sim, porque espero ser enterrada e não cremada. Gosto da ideia de me misturar à terra depois de morta. E, ao contrário da maioria das pessoas, a ideia de que virarei comida de vermes me parece interessante, porque me manterá viva de alguma maneira, nessa eterna transformação da matéria que faz nosso universo tão fascinante.
Escolher as circunstâncias do ritual de minha morte me levou a uma profunda reflexão sobre a história da minha vida. Onde eu queria ser enterrada? Percorri meus inícios para descobrir. Não gosto do cemitério da minha cidade porque éramos levados lá todos os anos para chorar diante do túmulo da minha irmã, morta por meningite aos cinco meses. Eu sabia que todo dia de finados seria obrigada a ir ao cemitério, levar flores e entristecer. Nunca precisei fingir melancolia. Nenhum filho consegue escapar da tristeza ao ver sua mãe vivendo uma dor que estará sempre longe do seu alcance aplacar.
Esta era a parte tenebrosa do feriado de finados. Em seguida, vinha a redenção. Depois de passar pelo cemitério de Ijuí para prantear nossa irmã, nós íamos ao Barreiro, o lugarejo rural onde meu pai nasceu, onde ainda viviam seus tios e seus irmãos, onde brincavam nossos primos. Lá o dia de finados era uma festa. Minha tia Nair, uma agricultora com duas mãos grandes povoadas de calos, as mais generosas que eu conheci, torcia o pescoço de meia dúzia de galinhas e abria a casa para os parentes que vinham dos arredores e também de longe para homenagear os finados. O dia dos mortos era uma data para celebrar o reencontro dos vivos e relembrar as velhas histórias que nos constituía a todos.
Quando eu chegava, minha tia já me carregava para dentro do bolicho (armazém). Para mim, era como entrar na caverna de Ali Babá. Mentalmente, eu pronunciava um Abre-te Sésamo. Com um sorriso de orelha a orelha, minha tia enfiava suas duas mãos mágicas no baleiro de onde saíam doces de formatos e cores variadas que só existiam ali. No balcão escuro e ensebado do bolicho, com cheiro de fumo e salame, eu revivia minhas esperanças. E de novo era feliz.
Então, seguia meu pai ao cemitério no alto da lomba, onde deveriam estar todos os cemitérios, e íamos parando de túmulo em túmulo. Meu pai relembrava histórias, sempre as mesmas, que todo ano eu pedia que repetisse. Fazíamos uma visita guiada por um passado onde não estive, mas que habitava minhas células. Visitávamos os mortos para festejar suas vidas. Meus avós que haviam morrido quando meu pai era pequeno, minha tia fulminada por um raio, quando dormia numa cama de ferro entre duas irmãs, a outra tia que morrera criança quando uma vizinha lhe dera uma colher de querosene para melhorar de uma dor de estômago. E assim até chegar ao meu túmulo-história preferido.
O de Luzia de Figueiredo Neves, a primeira professora do meu pai. Nunca se passou um dia de finados sem que meu pai, filho de analfabetos, levasse flores ao túmulo dela. Aprendi ali, que fora aquela mulher solitária, filha do amor ilícito de uma escrava com o filho do dono da fazenda, que abrira para todos nós o mundo das letras. Diante do túmulo dela, as lágrimas que eu me recusara a derramar e que de mim eram esperadas no outro cemitério, enchiam meus olhos e rolavam alegremente pelas minhas sardas. Eu amava Luzia, essa mulher com nome de destino, que dera luz ao meu pai, aos seus filhos, aos netos que ele ainda teria. E até hoje visito o túmulo da professora Luzia sempre que passo por lá. Tenho lá minhas conversas com ela. E minhas gratidões.
Não foi difícil concluir onde eu queria ser enterrada. E assim despachei meu pai para o Barreiro, com a missão especial de negociar meu lugar no cemitério. Por telefone, ele me anunciou que havia vagas, mas que o preço tinha dobrado: de R$ 5 para R$ 10 por ano. Fechei logo o negócio. Como manda a etiqueta, em novembro comprei uma vaca por R$ 600 e doei à festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Em troca de uma vaca que virou churrasco, já tenho onde cair morta.
No início de fevereiro, tirei uns dias de férias para acertar os últimos detalhes da minha morte. Fui ao cemitério escolher minha cova. Meu primo Gilberto havia oferecido alguns lugares mais nobres, bem no centro, perto do portão de entrada. Recusei. Sempre fui uma mulher dos cantos. Havia outra vaga bacana, mas era perto de uma tia muito fofoqueira. Sou cética, em geral, mas achei que não custava me precaver e evitar uma condenação à falação eterna. Acabei escolhendo uma cova entre a cerca e a lavoura de soja, embaixo de uma árvore, com vizinhos desconhecidos, mas que pareciam boa gente.
Por parte de mãe, venho de uma família de mortos que andam. Quando a gente menos esperava, minha tia Emi gritava para o nada: “Graúna (nome do meu tio-avô e de um passarinho preto)! Vai-te embora daí! Sempre te disse que não te queria andando ao meu redor depois de morto! Chispa!”. Falecido, e ela ainda mandava nele. As histórias de nossos mortos, contadas pela minha avó Terezinha, me deram a esperança de que ainda vou sair do meu túmulo para, finalmente, fazer umas visitas sem pressa. Quando me cansar do silêncio do cemitério de lomba do Barreiro, um lugarejo cada vez mais abandonado e sem gente, pretendo assombrar meus futuros netos com passos furtivos por suas casas. Espero que vivam em lugares interessantes.
Deixei instruções precisas, por escrito. Quero que sobre mim plantem flores que se regenerem, espero ter raízes se alimentando de meu corpo. E, se não for permitido me enterrar diretamente sobre a terra, quero um caixão de madeira que apodreça depressa. E nenhum material sintético. Desejo morrer ecológica, com as minhocas abrindo viadutos pelo meu corpo. Já disse a todos que amo que, se morrer a qualquer momento, podem chorar de saudade, mas não sintam pena de mim. Vivi intensamente o que me foi possível viver. Que sigam suas vidas, sem olhar para trás. Ou olhando só às vezes, para recosturar as histórias.
Sei que para muitos leitores meus planos de morte soarão como coisa de gente louca. Quando falo nisso, até amigos queridos mudam de assunto. E conhecidos me olham como se houvesse algo errado comigo. A morte é um tabu numa sociedade que a esconde no ambiente asséptico do hospital, esperançosa de um dia conquistar não só a vida, mas a juventude eterna. Mas eu escolhi a morte ensolarada de um cemitério de lomba na zona rural das minhas raízes, na esperança de que alguém mate uma galinha para alimentar meus descendentes no dia de finados. Sei que é pedir demais, mas eu ficaria feliz de saber que no meu velório fizeram uma festa, com muito chimarrão, muita pinga e muita comida gorda, como eu gosto, e contassem histórias sobre a minha vida. Espero morrer bem velha, povoada por rugas que traçam a geografia de minhas aventuras. Uma uva passa, consumida por uma existência vivida com verdade.
Alguns acham que sou mórbida. Estão enganados. Encarar a morte com naturalidade é o mais longe da morbidez que se pode estar. Só espero ter sabedoria para viver minha vida com intensidade até o último suspiro. E sabedoria para morrer, sem tentar espichar a vida nem abreviá-la. Não gostaria de morrer de repente, como tantos desejam. A curiosidade sempre moveu meus passos. Quando a morte chegar, não quero perder a única chance de olhar no seu olho. Quero saber o que é morrer. Quero me lambuzar de morte como me lambuzei de vida. Quero viver. Até o fim.
(Publicado na Revista Época em 02/11/2009)