A bela (e dolorosa) regeneração de uma filha pela palavra escrita
Está tudo bem, mamãe está bem. Era só o que Paula Corrêa queria ouvir naquelas horas nebulosas em que despertava na UTI do hospital clamando por água. Ela sentia tanta sede, e as gotas que pingavam em sua boca eram oceanos sobre o deserto que era ela. Paula doía inteira, pedia analgésicos. Estava tudo bem. Havia menos dela agora. Bem mais que a metade do seu fígado fora arrancada para implantar na mãe numa cirurgia de dez horas, numa cirurgia em que Paula tinha um por cento de chance de morrer, um por cento que ficou se repetindo dentro dela nos dias anteriores. E agora o que Paula queria saber é se a parte viva dela estava pulsando dentro da mãe, curando a mãe, reparando a mãe, vivendo a mãe. Estava. Mas não o suficiente. Dias depois, com um dreno cheio de sangue enfiado nas vísceras, Paula caminhou até o corpo da mãe que já não estava.
“E foi no trânsito no meio do caos da cidade que ela se foi. Numa tarde de céu azul qual temperatura não lembro, talvez tivesse um arco-íris no céu que não reparei. Havia um silêncio ensurdecedor naquelas rosas brancas que enrolavam seu corpo, uma névoa deve ter passado sobre a minha cabeça e a única frase que consegui dizer foi: preciso sentar.”
Paula decidiria depois: “Vou chamar de Domingos todas as orações não atendidas por Deus”.
O que você faz depois de ser enterrada viva? Como compreender que um pedaço arrancado de você em vez de salvar, morre com a sua mãe? Como estar fora e dentro de um túmulo, ao mesmo tempo? Como estar viva e morta simultaneamente? Como se carregar pelas ruas, tão menos?
Para Paula, só havia uma regeneração possível. Pela palavra. Escrita.
Tudo o que mãe diz é sagrado (LeYa), lançado na noite de sexta-feira, é um livro. Mas é também um luto – e um renascimento. É o que acontece dentro de Paula Corrêa. No dia seguinte à cirurgia, a enfermeira passava e passava o aparelho do ultrassom, mas não encontrava o que buscava. Havia sobrado tão pouco do fígado de Paula, que ela não achava. Precisou chamar a médica. O livro é a narrativa do que se passa dentro de Paula enquanto seu fígado se regenera. Mas é o que se passa em camadas tão profundas que nenhum ultrassom alcançaria.
Para algo tão literal, tão visceral por definição, só há um jeito de não sucumbir à insanidade. Simbolizando. Ferozmente simbolizando. Só a palavra salva. A palavra humana. Dia após dia, noite após noite, alguns deles sem saber se era dia ou noite, Paula testa a vida. “Eu quase, quase não fiz uma curva hoje.” Ela não está só. São as patas de Astor, seu cachorro, que a acordam avisando que o sol nasceu. É pela fome de Astor, com seu focinho molhado, que ela levanta da cama. É porque ele precisa se exercitar que ela caminha até a praça da cidade gigante. São as lambidas de Astor que a despertam quando ela cai. “Então é ele quem está me educando, ou melhor, adestrando meu ímpeto de nunca ser.”
Alguém vivo ainda precisa dela. Astor e Paula, quem adivinharia o tamanho da tragédia ao ver aquela mulher de olhos extraordinários com seu cachorro grande demais no meio da praça? Que um dia tentou salvar uma borboleta alquebrada na calçada, no meio da fuligem dos ônibus que passavam velozes demais?
“É simples entender que cheguei até aqui sem mim. Nenhuma alma me acompanha desde então. Não diria que esqueci de viver. Apenas não encontrei um conjunto confortável que caiba no meu corpo. É um moribundo que me habita. Um outro, que não está mais aqui.”
Uma vez nos encontramos na padaria do bairro, sob o olhar vigilante, quase hostil de Astor, e Paula contou que estava aprendendo a costurar para terminar a colcha que a mãe deixou pelo meio. “Minha mãe deixou algumas coisas inacabadas. Eu sou uma delas.”
Astor é grande demais, a gente logo vê. Paula não cabe no corpo, a gente não sabe. “Eu não me reconheço quase o tempo todo em que me encontro, é o meu corpo que muda, eu tenho uma corporalidade que nunca me cabe, estou sempre extrapolada pelos meus poros, ou completamente pendurada como se fosse um cabide, ou apenas minguada em exaustão.” Como inventar uma nova corporalidade depois de perder tanta carne? “Acredito que seja consumado o fato de eu não ter cabimento.”
Quem seria ela, ela que falta? Como é que uma ausência tão imensa não aparece no avesso do espelho?
“Eu teria uma senha, um segredo abismal que me separa do mundo. Eu tenho. Eu tenho um segredo. Eu fui enterrada viva, e isso basta para me alavancar soturnamente para outra dimensão. Posso ouvir quantas músicas forem, e elas serão sempre tristes. As bandas que ouço são sempre desafinadas, não acompanham o ritmo do mundo. Eu tenho uma dificuldade extrema em acompanhar o mundo, entender o que as pessoas falam no exato segundo em que elas proferem as palavras. Eu vou entender muito tempo depois, com sorte. No mais, sou inexata e indecisa. Cambaleio sobre verdades, flutuo ao lavar a louça, tomar um banho é sempre um ato poético.”
Toda morte de quem amamos é uma amputação. Todo luto uma regeneração. Para Paula Corrêa, o que é simbólico é também literal. Ela sabe quando acorda que é preciso converter carne em linguagem. O horror sem nome em algo que possa ser nomeado. Só é possível viver com aquilo que podemos dizer. É isso que nos faz humanos. É este o livro de Paula, que antes tinha um corte de 30 centímetros atravessando a barriga, e agora tem uma cicatriz em curva, “montanhosa”.
É um pouco mais. Por um momento, ela havia sido a mãe, a mãe tinha se tornado filha. Ao doar seu próprio fígado para salvar a vida da mãe, não é um renascimento que se busca? Não é um dar à luz? É isso e talvez ainda um pouco mais. Um parto às avessas, mas também uma fecundação. Neste ato de extrema potência, neste ato quase fálico, de repente ela descobre-se radicalmente impotente. Impotente e presa. A filha fecunda com seu fígado são o corpo doente da mãe, mas não consegue sair desse corpo. E permanecer aprisionada no corpo da mãe é o pesadelo de todas as filhas. Que, no caso de Paula, aconteceu.
Tudo o que mãe diz é sagrado é, de fato, uma dessacralização. É só dessacralizando que uma mulher pode existir, para além de uma existência de filha. É só rompendo o território literal e simbólico do corpo da mãe que é possível para uma mulher criar relações com outros corpos. E então saber que existe. E então viver.
Paula Corrêa faz essa retomada do corpo de uma forma magistral. Sem poder salvar a mãe do jeito concreto, ela devolve a vida da mãe pela narrativa. A mãe agora existirá para sempre nas palavras. Para sempre, além dos corpos. E Paula dá a si mesma, pelo parto das palavras, um corpo na vida concreta. Um corpo seu. Um corpo que se sabe faltante não porque perdeu um pedaço do fígado, mas porque é da condição humana ser faltante.
Pela palavra, salva a ambas. E converte o que era horror indizível em obra de arte.
(Publicado na Revista Época em 25/03/2013)