Por que temos tantas certezas sobre o que é melhor para a vida dos outros?
Nesta edição de Época, publiquei uma reportagem sobre o cotidiano de Odele Souza e sua filha Flavia, em coma há 12 anos, desde que seu cabelo foi sugado pelo ralo da piscina do condomínio onde viviam, em São Paulo. Há três anos, Odele criou uma voz para sua filha condenada ao silêncio. No blog flaviavivendoemcoma, ela denuncia o perigo dos ralos de piscina e sua frustração com a Justiça brasileira. Ao conhecer o blog, o que mais me fascinou foi a narrativa do dia-a-dia destas duas mulheres, ligadas uma a outra pela duração de uma existência. Quem quiser, pode ler a reportagem Saudades de sua voz.
Ao acompanhar a rotina de Odele, fui surpreendida por alguns emails que ela recebe, a partir da exposição no blog. Histórias como a dela e de sua filha mexem com medos e convicções profundas de todos nós. Flavia vive à margem da vida, como diz Odele. Mas vive. Ainda que não se saiba se tem algum nível de percepção do que se passa ao redor dela. E ainda que, tanto na Filosofia quanto no Direito, possamos discutir o que faz de uma vida uma vida.
Não posso afirmar o que eu faria se vivesse a tragédia que Odele viveu – e vive – com sua filha. Possivelmente, o mesmo que ela. Só posso dizer que gostaria de ter a coragem e o desprendimento de cuidar tão bem da minha filha como ela cuida da dela. Há certas coisas que só sabemos vivendo. Podemos no máximo especular.
Se um dia eu estiver na situação de Flavia, gostaria de morrer. Como a legislação brasileira não permite a eutanásia, já pensei em várias maneiras de garantir o direito de encerrar minha vida se um dia estiver num coma irreversível, assim como estudo alguma forma de absolver meus familiares da responsabilidade de realizar meu desejo. Esta é uma decisão que não deveria precisar ser tomada por ninguém que ama, embora também possa ser um ato de amor, coragem e cuidado.
Ou seja. Se estivesse no lugar da mãe, faria o mesmo que Odele faz: tentaria cuidar da minha filha da melhor forma possível enquanto ela respirasse. Se estivesse no lugar da filha, preferiria ter outro destino. Entendo que o exercício do amor e do cuidado pode conter as duas possibilidades.
Minha convicção mais profunda é a de que quem vive uma situação como essa – e só quem vive – tem o direito de decidir o que é melhor para si – ou para quem ama e não pode mais responder por si. Ninguém mais: nem os amigos, nem o padre ou o pastor, nem o médico, nem a Lei, nem o Estado. Esta é uma decisão da ordem do privado. E como tal deveria ser respeitada, seja ela qual for.
O que me deixou estarrecida, ao ter acesso à parte da correspondência de Odele, é como existem pessoas que têm certeza sobre o que é melhor para Odele e sua filha, Flavia. Estas pessoas não têm dúvidas, só certezas absolutas. Elas não vivem a experiência sobre a qual disparam sentenças, mas sabem o que é melhor para quem vive. Têm todas as respostas, sempre.
Veja dois exemplos, que Odele me autorizou a publicar:
1) “Eu lhe falava sobre Deus e lhe falava que havia visto muitas curas na igreja onde estou congregando. Na última vez que estive lá, pensei muito em você e na Flavia, pois uma jovem havia sido trazida de volta do coma pelo poder de Deus, pelo poder da fé dos familiares. A justiça dos homens, infelizmente, é tardia, mas a de Deus, jamais. (….) Basta que você confie, sou mãe como você também”.
2) “Dona Odele, por favor: sente-se confortavelmente, mantenha sua coluna ereta, feche os olhos, respire fundo e solte o ar aos poucos. Procure não pensar em nada, a não ser na possibilidade de a sra. estar no lugar de sua filhinha. Com tudo o que a sra. tem observado em Flavia, procure vivenciar se fosse com a sra. Pergunto: Qual seria a sua atitude, desprovida de apego, para com Flavia?. (…) Flavia se transformou em seu sentido de vida, em sua razão de ser. Suspeito que, em suas fantasias, se ela se for, a sra. não sobreviveria à ausência física de sua filha. Em outras palavras, a sra. está vivendo um estado de simbiose assimétrica com sua Flavia. Assimétrica, pois a sra. está viva e lúcida e sua filha somente tem vida vegetativa. Isto não me parece justo. (…) Mas qual seria, a meu ver, seu grande ato de generosidade? Eu respondo: Deixar sua filha partir deste mundo de dor, sofrimento, doença, velhice e morte. Não estou propondo homicídio. Deixe a evolução da moléstia de sua filha tomar seu curso natural. (…) Para o bem de sua filha, e de seu espírito, a sra. receberia grande Luz, se, por exemplo, deixasse de virá-la de posição de 15 em 15 segundos ou de hora em hora, que seja”.
A primeira oferta é de uma mulher que se identifica como uma crente. Ela oferece um milagre. Bastaria levar Flavia à sua igreja que ela despertaria do coma. Em nenhum momento ela pensa no que um milagre não realizado causaria em Odele. A mulher não vacila. Para ela, Flavia voltar de um coma considerado irreversível pela Medicina é apenas uma questão de fé.
No texto de seu email, fica subentendido que, caso Flavia não desperte, a causa seria a suposta falta de fé da mãe. Afinal, a autora havia visto uma menina voltar do coma “pelo poder de Deus, pelo poder da fé dos familiares”. Como ela diz, “basta que você confie”. Podemos supor que, pelo seu raciocínio, todas as tragédias não revertidas acontecem por falta de fé de quem as vive. Este raciocínio me parece muito cruel: se uma tragédia não foi revertida é porque a vítima – ou, no caso sua mãe – não teve fé suficiente. É ela a culpada, em última instância.
A segunda não chega a ser uma oferta. É mais uma tentativa de persuasão – ou de adesão à certeza do autor. Também com base numa suposta caridade, ainda que não a cristã, este homem convida Odele a se colocar no lugar da filha. Ele parte da premissa de que Odele, que cuida de sua filha 24 horas por dia há 12 anos, nunca o tenha feito. Nunca tenha pensado milhares de vezes no que sua filha pode estar sentindo, nunca tenha se colocado no lugar da filha até ele lhe oferecer esse conselho iluminado.
Ele afirma, sem sequer um lampejo de dúvida, que o melhor para Flavia é a eutanásia – ou ortotanásia, como diz em outro ponto. Na parte transcrita do seu email, o que me choca é a arrogância com que ele descreve o que Odele deve fazer para se colocar no lugar da filha. Ele, um estranho, tem a ousadia de dizer a uma mãe, por meio de um email, que seu maior ato de amor seria não virar a filha de lado, para que “a natureza possa fazer a sua parte”.
Esse nível de certeza sobre a vida do outro me soa assustador. Parece-me que as relações humanas, todas elas, se beneficiariam muito da dúvida. E do exercício, sempre saudável, de vestir a pele do outro. Sem, porém, perder o senso de que, por mais perto que consigamos chegar, não estamos nem estaremos naquela pele. E estar, de fato, é diferente de se imaginar nela.
Se ambos os missivistas, uma religiosa, o outro partidário da eutanásia, por um momento tivessem se colocado na pele de Odele, talvez escrevessem com mais humildade – e humanidade. Ou simplesmente se calassem. Ambos têm direito à sua convicção. Seu direito acaba, porém, ao desrespeitar o direito de Odele de ter a sua, mesmo que seja diferente das deles.
A certeza de que a verdade pessoal deve valer para todos é um comportamento corriqueiro. Todos nós sofremos, cotidianamente, com o excesso de certezas dos que nos rodeiam, suspensos alguns metros do chão pelo volume de suas verdades absolutas. A lógica, me parece, é a de que, se alguém conseguir impor sua verdade, não precisará nunca questioná-la. Embutido nesse comportamento, além do desrespeito ao outro, à surdez ao outro, parece estar o terror de ser assaltado por uma dúvida, ainda que bem pequena.
Neste caso, Odele recusou – com educação, mas também com firmeza – as duas alternativas apresentadas para tirar sua filha do coma: o milagre e a eutanásia. Veja os trechos a seguir:
1) O que disse a religiosa no email seguinte:
“Oi, Odele, peço desculpas, mas a sua falta de educação e sua prepotência são tão grandes que só Deus para ter misericórdia de sua vida… ninguém está pregando religião, minha querida, eu estava apenas falando sobre Deus, um Deus que pode curar sua filha porque ela NÃO está morta como a filha de Glória Perez. Mas, infelizmente, apesar de você escrever que tem um amor tão grande pela sua filha, sinceramente acho duvidoso. Uma mãe procura formas de ajudar a quem ama e não discriminar e desistir e esperar apenas a justiça do homem. Muitos ímpios não sofrerão nesta terra. O que falta na sua vida é Deus, um Deus grandioso. Não use de prepotência no problema de sua filha, porque sinceramente é isso que você está fazendo”.
2) O que disse o partidário da eutanásia em outro trecho:
“O que seria o melhor para Flavia? (…) Um paciente em coma, só mantendo vida vegetal, precisa ser regado diariamente várias vezes por dia, senão a plantinha se vai. Como médico, imagino os cuidados intensivos que a sra. deve dedicar à sua filhinha para mantê-la ‘viva’. Coloco entre aspas, pois sua humanidade já se perdeu. Com todo o respeito que esta situação nos obriga a dignificar, eu lhe pergunto: Dona Odele, a sra. a mantém nesta condição, por ela – que se tivesse consciência certamente sentir-se-ia constrangida de assim ser vista por todos – ou pelo seu apego a este corpo material? Não seria melhor mantê-la viva somente em sua própria consciência? O exemplo que a sra está dando é de nobreza duvidosa. Seria isso um verdadeiro amor? Dona Odele, eu sou espiritualista (não-espírita) e não confesso nenhuma religião determinada. Pense no espírito de sua filha aprisionado numa gaiola vegetal. Não seria mais justo e despojado, tanto para sua filha quanto para a sra., libertá-lo?
Desconfio muito das pessoas enormemente caridosas que, neste momento, a enaltecem, lhe dão prêmio internacional, e por aí vai. Talvez seja apenas uma forma de elas jactarem-se de sua capacidade de compaixão. Suspeito também que a sra. corre o risco de deixar-se envolver por este halo de santidade”.
Ao terem suas “ofertas” de algum modo recusadas, ambos sentem-se no direito de desrespeitar e julgar a decisão de Odele. Não são eles os prepotentes, mas ela, ao recusar a generosidade que lhe oferecem com tanto desapego. Ambos lançam mão do mesmo golpe baixíssimo: ao discordar deles, Odele prova que não ama a filha. Não “verdadeiramente”. No primeiro caso, por que ela recusa o milagre do Deus verdadeiro. No segundo, por que recusa a eutanásia.
De novo, vale a pena tentar vestir a pele de Odele ao ler emails como estes. Como se não bastasse a brutalidade de conviver com uma filha em coma, num cotidiano onde nenhuma resposta é fácil, pelo seu computador entram pessoas que nunca a viram, nem à sua filha, mas sabem o que ela sente, conhecem o seu amor (ou a falta dele, como a acusam), e têm certeza – reparem bem, certeza – sobre o que ela deve fazer da sua vida e da vida da sua filha.
Ao ler esta correspondência, me chamou a atenção ainda outro fato: como duas posições diferentes sobre o coma, a princípio antagônicas, a da religião e a da eutanásia, se unem pelo que podem ter em comum: a intolerância. É claro que nem a maioria dos religiosos nem a maioria dos defensores da eutanásia seriam capazes de tal demonstração de desrespeito com a dor – e com a decisão – de Odele. Ou pelo menos espero que não. Mas é curioso como partidários de teses opostas podem ser mais semelhantes que diferentes na intolerância, na certeza de que a sua escolha não é apenas a única possível, mas a única certa.
Cada um sabe da sua dor. Respeitar a escolha do outro, ainda que vá contra a nossa crença, é um ato de amor, de respeito e de dignidade. Parece-me até que se ama melhor quando somos capazes de aceitar que o objeto do nosso amor tome decisões diferentes das que gostaríamos. Discordar, e ainda assim aceitar, é bem mais difícil do que apenas concordar.
Da mesma forma, ao contrário do que tantos pregam, é o número de dúvidas – e não o de certezas – que dão a dimensão da sabedoria de alguém. Todo o conhecimento humano foi construído a partir de pontos de interrogação, não de exclamação. Muito menos de pontos finais.
É fácil detectar o autoritarismo e o desrespeito na correspondência enviada à Odele. São tão evidentes quanto um anúncio em neón. Na nossa vida cotidiana, porém, nem sempre é tão fácil perceber quando saímos por aí disparando nossas certezas como uma metralhadora giratória e infalível. Desde que Odele me presenteou com a confiança do acesso a estes emails, que compartilho aqui nesta coluna, aumentei o número de vezes por dia em que duvido das certezas. Das minhas e das alheias.
Não custa nada – e poupa muita dor a nós e aos outros – parar por um minuto antes de disparar um veredicto. São apenas quatro letras:
– Será?
(Publicado na Revista Época em 23/11/2009)