Dólar na fralda

Quando se vive desejando. Até o fim

Aconteceu na semana passada. Ele tem 84 anos e está morrendo de câncer. A auxiliar de enfermagem do serviço de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, em São Paulo, entrou no quarto para trocar sua fralda. Ele não permitiu. Ela insistiu. Precisava trocar a fralda, dar banho, fazer a higiene. De onde ele tirava forças para reagir com tanta veemência?

O dele era um não profundo.

Quando ela tentou mais uma vez, quase bateu nela. Ninguém tocaria nas suas fraldas.

Foi uma confusão. Até que a verdade se revelou.

Na fralda, ele guardava os mil reais da aposentadoria. Doze andares abaixo, no saguão, uma moça de 25 anos tentava subir para uma visita especial. Há algum tempo ela o ajudava com os afazeres domésticos, por assim dizer, duas vezes por semana.

Nunca antes na história do Brasil alguém escondeu dinheiro nas partes íntimas por uma causa legal. E tão inspiradora.

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Esta história real não é só curiosa. Ou divertida. É profunda. A enfermaria de cuidados paliativos trabalha com a ideia de que é possível viver intensamente até o fim. Da forma que é possível para cada um, com aquilo que é importante para cada um, no respeito à singularidade de cada um. Lá, não se morre sedado ou amarrado a tubos e fios, como acontece em tantos hospitais, em que os pacientes são alienados do fim da sua vida e nem mesmo conseguem se despedir de quem amam.

A equipe atua para deixar o doente sem dor, numa arquitetura delicada em que a medicação atenua os sintomas sem alijar a consciência. Cada decisão é tomada levando em consideração não apenas os aspectos médicos, mas a história de vida, sempre única e intransferível. Levando em consideração aquilo que é o que faz viver e tem sido tão esquecido pela prática médica tradicional: o desejo.

Não estamos vivos porque respiramos. Estamos vivos porque desejamos. E estaremos vivos enquanto desejarmos. Um pão de queijo, o calor do sol sobre o rosto, a voz de um filho, o amor de uma moça bonita.

Por isso essa história é tão excepcional. Seu simbolismo é explícito, uma literalidade. O homem que está morrendo – e que por toda vida desejou moças bonitas – deseja encerrar sua vida desejando.

Sobre uma cama de hospital, ele guarda o dinheiro na fralda. Fragilizado, ele ainda mantém o poder e a autonomia escondidos no que lhe restou de privacidade. O dinheiro que vai pagar a moça que lhe faz feliz aninhado junto à parte do corpo que lhe faz feliz.

Não havia mesmo como trocar aquela fralda, onde estava guardado o que sempre deu sentido à vida que se encerra. E que dará sentido, até o fim.

Quando chegar a minha vez de morrer, também espero estar conciliada com meu desejo – e com sua expressão mais profunda. Seja ela qual for.

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Nesta terça-feira, 15 de dezembro, faço minha estreia na TV. Depois de mais de 20 anos como repórter-canetinha, como são chamados os jornalistas dos meios impressos, sempre empunhando um bloquinho e uma caneta, peguei num microfone pela primeira vez. Fazia tempo que não me dava tanto frio na barriga, o que é sempre ótimo.

Fui convidada pela equipe do Profissão Repórter, da TV Globo, a voltar à enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual para contar a história – e as histórias – desse lugar extraordinário. Eu não poderia começar em melhor companhia: Caco Barcellos, um dos maiores repórteres do Brasil e uma das pessoas mais generosas que já conheci, dispensa apresentações; Thais Itaqui, uma jovem jornalista extremamente sensível e talentosa; e Mikael Fox, que além de ótimo repórter cinematográfico é um grande companheiro de trabalho. Ao contar essa história por imagens, não só ri e chorei, como às vezes ri e chorei ao mesmo tempo.

No ano passado, eu passei quase quatro meses no 12º andar do hospital, acompanhando a rotina da equipe de cuidados paliativos para uma reportagem de Época. Esta história pode ser lida nos seguintes links: A enfermaria entre a vida e a morte, A mulher que alimentava e Minha vida com Ailce. Agora, é a primeira vez que uma equipe de TV entra na enfermaria chefiada por Maria Goretti Maciel – uma médica que, tenho certeza, todos nós gostaríamos de ter por perto –, para acompanhar os surpreendentes enredos que se desenrolam naquele corredor.

Vivemos tempos estranhos. Basta ligar a TV ou acessar a internet para assistirmos a uma sequência sem fim de mortes violentas no noticiário, muitas vezes com detalhes escabrosos, sangue e vísceras. Mas a morte por doença ou velhice, a morte que a maioria de nós terá, esta se tornou um tabu. Para muitos, deve permanecer escondida, de preferência no ambiente asséptico dos hospitais.

Não é preciso ser Freud para perceber que as pessoas que não conseguem entrar em contato com o tema da morte são aquelas menos resolvidas com a vida. Agarram-se à ilusão de que se não enxergarem, se ficar bem escondido, pode ser que não aconteça.

O temor da morte é uma realidade atávica para uma espécie que tem consciência do fim. Mas a forma como encaramos o morrer é determinada pela cultura. Desde o século XX a morte foi se tornando cada vez mais oculta no Ocidente, como se fosse possível esconder que a vida termina.

As conseqüências desse silêncio que grita ecoam – mal – na vida social – e na de cada um de nós. Não só nos tantos exageros com que as pessoas tentam espichar a juventude a preços que seguidamente acabam custando muito caro, às vezes a própria vida, como na impossibilidade de cuidar de quem está doente e pode morrer. Para cuidar, é preciso primeiro enxergar.

É também esse medo que faz com que vivamos sem valorizar cada segundo, desatentos aos detalhes que tecem uma existência. Quando se faz de conta que a vida dura para sempre, esquecemos de prestar atenção na delicadeza que habita cada momento, na possibilidade irrepetível contida em cada segundo. Quando deixamos de olhar para a morte, deixamos de olhar para a vida. Parece-me que é um preço alto demais. Devemos aceitar nosso medo. Mas não podemos permitir que ele nos paralise, porque isso nos mataria antes do tempo.

A proposta da enfermaria de cuidados paliativos é poder olhar para o encerramento da vida como parte da própria vida. Natural e não necessariamente doloroso. Os enredos que se desenrolam naquele corredor comprido do 12º andar mostram que o fim também contém possibilidades se for vivido com verdade. Muito vale o perdão, as palavras finalmente pronunciadas, a reconciliação com os erros e acertos que existem em toda vida, um abraço apertado. Ou mesmo aquele prazer inesperado numa xícara de café.

A imprensa tem sido ágil ao mostrar a morte violenta. Às vezes com bastante propriedade, porque é preciso denunciar as muitas guerras não declaradas que vitimam especialmente os brasileiros mais pobres. Mas a imprensa tem se omitido ao tratar da morte mais prosaica, a morte da maioria, que não vai ter sua vida encerrada por tiro ou acidente.

Ao propor um programa sobre a morte em uma TV aberta, o diretor do Profissão Repórter, Marcel Souto Maior, foi corajoso. E eu me sinto honrada por participar deste momento. Quem assistir vai ter a oportunidade de aprender alguma coisa. E, melhor que isso, refletir para viver melhor.

Não existe bom jornalismo sem ousadia. Embora seja sustentada por anunciantes, a imprensa só sobrevive e conquista credibilidade se for além das imposições de audiência, no caso da TV e da internet, do número de leitores, no caso dos jornais e revistas. Do contrário, deixa-se reduzir a pão e circo.

Contar a história cotidiana da nossa época significa ter a coragem de tocar nos temas difíceis – aqueles que são difíceis exatamente por serem os mais importantes. Para um jornalista, ser corajoso não é uma escolha, mas uma responsabilidade. Com o público, com os leitores.

O ocultamento da morte, em nosso tempo, é um tema que repercute em todas as esferas não só da vida privada, mas também da pública, da política ao meio ambiente. Parece-me, por exemplo, que se conseguíssemos olhar com mais naturalidade para nossa morte, não teríamos consumido o planeta com a voracidade de quem precisa acreditar que a vida – a nossa e a da Terra – dura para sempre.

Também nós, jornalistas, não estamos vivos enquanto respiramos. Mas enquanto ousamos. Deixar de ousar, acomodar-se aos temas mais fáceis e palatáveis ao público, é a morte simbólica de um repórter, de uma publicação, de um programa de TV.

Para nós, fazer um programa sobre a morte foi um ato de vida. Em todos os sentidos.

Ninguém precisa se lembrar de respirar ao acordar. Mas é preciso lembrar, a cada manhã, de desejar. Este é o ato que nos humaniza. E que nos manterá vivos, até o fim.

(Publicado na Revista Época em 14/12/2009)