A quem pertencem os mortos? Quando Audrey Hepburn ressuscita para vender chocolate
Por um momento, me tornei cúmplice de Victor Frankenstein. Essa foi a sensação quando assisti ao comercial de chocolate estrelado por Audrey Hepburn 20 anos depois de morta. Primeiro, um encantamento. A Audrey viva, a Audrey jovem, se movendo, baixando os cílios, será que ela vai dizer “thank you”? Não há nenhum “thank you” como o da Audrey em A Princesa e o Plebeu. Em seguida, veio um mal-estar, a sensação de que algo ali estava muito errado, mas não do jeito habitual. Era como testemunhar uma profanação. Não era a Audrey, a Audrey morreu. Alguém estava usando a imagem da Audrey para vender chocolate. E eu ali, diante da tela, era quem completava a violação do corpo da mulher que me fez tão feliz no cinema. Não haveria profanação se eu não a estivesse consumando com o meu olhar.
Quem não viu, pode assistir aqui. Audrey Hepburn voltou à vida pelo milagre da computação gráfica. Um ano de trabalho dos realizadores para que uma das atrizes mais míticas da história do cinema pudesse fazer um comercial de chocolate. Audrey está num ônibus, na costa amalfitana, na Itália, quando o trânsito é interrompido por causa de um acidente com uma carroça. Pela janela do ônibus, ela espia o homem charmoso que dirige um conversível. É apenas um baixar de cílios, um flerte como só Audrey é capaz. Ele oferece carona, e ela desembarca linda, num daqueles vestidos acinturados que dançam ao redor de sua silhueta esguia, num caimento impecável. Audrey dá outro desfecho para a história. Seus lábios vermelhos, perfeitos, só querem chocolate.
Não é a primeira vez que um morto é ressuscitado para vender alguma coisa. Fred Astaire já dançou com vassouras e aspiradores de pó quando estava a sete palmos. Mussum, dos Trapalhões, está de volta num comercial de carro: “Cacildis! É o Fusquis!”. A voz do pai morto de Tiger Woods já foi usada numa propaganda. Em 2007, o apresentador e comediante da TV britânica Bob Monkhouse apareceu ao lado do que seria seu próprio túmulo (de fato ele havia sido cremado), numa campanha de prevenção ao câncer de próstata, doença que o matara anos antes. O Bob ressuscitado ao lado do túmulo do Bob ainda morto diz: “O que me matou mata um homem por hora na Inglaterra. Mais do que a comida da minha mulher”.
Mas é Audrey Hepburn, nessa ressurreição por computação gráfica, que talvez explicite melhor o conflito ético não pela sua morte, mas pela sua vida. Ela que seduziu homens e mulheres, mas quase como uma fada. A maioria dos homens que conheço – e algumas mulheres – foi apaixonado por Audrey, teria se casado com Audrey, e emite suspiros de encantamento diante da tela que reprisa seus clássicos. Mas (quase) nenhum deles pensa em sexo com Audrey. Ela é um tanto impenetrável, mesmo quando faz uma prostituta em Bonequinha de Luxo. A gente quer amá-la, cultuá-la, não necessariamente tocá-la. Talvez a criatura mais parecida com Audrey na ficção seja o Bambi.
Essa é uma das explicações possíveis para a sensação de profanação que, como eu, alguns sentiram ao vê-la num comercial. Como alguém ousa não apenas violar, mas recriar o corpo tabu de Audrey Hepburn? Será que se a propaganda fosse com Marilyn Monroe requebrando seus quadris bíblicos em nossa direção, sentiríamos tanto estranhamento? Marilyn cantando “Happy Birthday, Mister President” para Obama, hoje, na Casa Branca? A questão ética é a mesmíssima, mas será que a estranheza se daria? Ou com Marylin tudo é permitido e nada castigado? Ela, que nos provocava a sensação oposta, a de desejar o seu corpo e acreditar que ela desejava que a tocássemos. Talvez logo um desses comerciais de ressuscitação nos obrigue a descobrir.
Vivemos esse dilema ético na literatura e depois no cinema a partir da modernidade, quando a ciência se tornou um protagonista novo e decisivo no nosso cotidiano, alterando o mundo e a nossa relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Enlouquecidos de dor, muitos foram os personagens da ficção que pagaram um preço alto por tentar devolver a vida a quem amavam, esposas ou filhos. O que retornava nunca era a pessoa amada e perdida, mas um outro monstruoso, na ideia de que o corpo poderia voltar à vida depois depois de algum procedimento proibido, mas jamais a alma ou o espírito. Não me recordo de nenhum filme ou livro em que a ousadia tenha tido um final feliz. Ousar tomar de um suposto deus a prerrogativa da criação ou o retorno do mundo dos mortos sempre foi punido com o pior dos castigos – e em geral com a morte irrevogável do transgressor.
Stephen King foi um dos escritores do século 20 que exploraram a força dessa transgressão. Mas a criatura de Victor Frankenstein, o cientista do século 19 que recriou a vida no clássico livro de Mary Shelley, é quem persiste no imaginário. Diferentemente do monstro, nascido dos pedaços de vários mortos, a Audrey da computação gráfica é quase tão perfeita e bela quanto a nossa lembrança dela. E a amamos pelo que foi, não pelo que será. Mas como no olhar de Frankenstein para a sua criatura, talvez também nesse caso exista um horror para além do encantamento de vê-la mais uma vez.
Pode ser apenas nosso temor atávico, que a literatura e depois o cinema tão bem expressaram, o risco extremo de “mexer com os mortos”, que tenha me feito sentir, como tantos, que estava profanando o corpo/túmulo de Audrey Hepburn. Um temor do qual estamos impregnados também porque a ficção o tornou real e terrorífico de várias maneiras nos últimos séculos. Mas mais do que um dilema da moral religiosa, que me interessa bem menos, a questão ética é legítima e das mais interessantes. Temos esse direito? A quem pertencem os mortos?
Todos nós desejamos a eternidade – ou quase todos. Sonhamos com um reconhecimento que vá além da nossa vida, sempre muito mais curta e limitada do que gostaríamos. Invejamos aqueles que permaneceram com sua obra depois de mortos – pelo menos os que permaneceram pela admiração, não pelo mal que perpetraram. Aliás, como seria ressuscitar Adolf Hitler? Será que alguma agência de publicidade se interessaria? O que Hitler poderia vender? Redenção, talvez? Vingança? Será que seria libertador se vingar de Hitler como fez Tarantino em Bastardos Inglórios, dando um outro desfecho à História, mas não com um ator, mas com o corpo revivido pela tecnologia? Será que seria legítimo julgar e punir pelos seus crimes um Hitler renascido?
Questões que serão cada vez mais presentes na nossa vida – e para as quais não há respostas fáceis. É diferente o ator que interpreta um outro que viveu e a tentativa de recriar a própria pessoa que morreu e botá-la atuando como se viva estivesse. Há um limiar transposto neste ato. Ou não? É ético ultrapassá-lo? Como seria Marlon Brando, para mim o melhor de todos em qualquer tempo, renascido de um computador? Este outro seria capaz de gritar por Stella em Um bonde chamado desejo e nos prostrar para sempre? O que é ser um ator, afinal? Ou, um pouco mais complicado, o que é ser? Hollywood tem projetos para reviver grandes atores mortos e colocá-los atuando em filmes atuais. Assim como recriar atores vivos, mas muitas décadas mais jovens. Neste caso, talvez a diferença fique mais clara: um ator vivo pode escolher se quer aparecer ou não como uma versão de computador, o morto não.
Desejamos a eternidade. Mas talvez tenhamos de começar a temê-la. Mais do que todos, aqueles que por alguma razão se tornaram célebres. Conhecemos o mal que parte dos herdeiros, em geral ávidos por dinheiro, faz à obra de seus pais, tios e avós famosos. A exploração da imagem pode atingir agora proporções inusitadas. Para os filhos de Audrey Hepburn, a mãe ficaria “orgulhosa” por esse novo papel. “Ela costumava falar sobre seu amor por chocolate e como ele elevava seu espírito”, disseram à imprensa, justificando a autorização para o comercial. Quando Fred Astaire dançou com os equipamentos de limpeza “Dirt Devil”, sua viúva autorizou, mas a filha não perdoou. Ela declarou na época, final dos anos 90, fazendo um trocadilho com o nome da marca (devil é diabo em inglês): “É muito triste que, depois de sua maravilhosa carreira, ele tenha sido vendido para o diabo”.
Será que Audrey pensaria em fazer um comercial de chocolate? Desejaria? Pode ser que sim, pode ser que não, o ponto é que nunca saberemos. E, se não podemos saber, temos o direito de escolher por ela? E o que mais Audrey e todas as grandes celebridades, de todas as áreas, vão ainda vender, mesmo depois de enterradas ou cremadas? Junk food, agrotóxicos, armas? Será que vão virar cabos eleitorais de candidatos em eleições? Ou defender causas que jamais defenderiam, ou fazer lobby para uma indústria que desprezavam? A possibilidade de uma vida de zumbi, fora de qualquer controle, à mercê das necessidades financeiras dos parentes, pode ser assustadora. Na morte se tornou possível trair toda uma vida.
É “só” um comercial, alguns podem dizer. Uma brincadeira, uma homenagem, um encantamento. Não é Audrey, mas a sua imagem. Mas não foi uma imagem de Audrey – e não a própria Audrey, se é que existe essa essência, que amamos? Não é a sua imagem que se eternizou como memória? Tudo o que tivemos não foi sempre uma imagem? Ela se foi. Mas nunca a tivemos de fato. De certo modo, o que tivemos é o que temos agora no comercial. Tivemos o que Audrey, viva, quis e pôde nos dar. Agora, porém, ela come chocolate “Galaxy” à sua revelia.
Não deixa de ser muito significativo que, assim que inventamos uma versão da vida eterna, ela seja colocada a serviço do mercado. Não mais o dilema de contrariar uma suposta prerrogativa divina, mas a suprema vulgaridade de ressuscitar mortos para vender chocolate ou vassoura. Não mais o medo do castigo por ousar criar vida, seja pelo amor à própria vida, seja pelo ideal de superar o limite máximo do humano, seja pela dor insuportável da perda de quem amamos. Não, os herdeiros do hoje querem apenas garantir que o morto continue sendo uma excelente e ilimitada fonte de renda para os vivos. Não mais uma transgressão, mas apenas um exemplo de livre iniciativa e visão de oportunidade.
Há ainda uma ironia possível. No dilema moderno, a aspiração dos vivos era punida porque o morto ressuscitado vinha acompanhado de uma alma, em geral monstruosa, que não era a da pessoa amada e perdida. Ou tinha, como na criatura de Frankenstein, uma alma que não podia ser controlada pelo criador. Hoje, a alma dos mortos renascidos não está em questão. Sua vontade, assim como seus corpos, aos vivos pertence. Eles, que tinham uma alma, a perdem para melhor servir. Para o mercado, o simulacro é mais do que suficiente. E um grande negócio: segundo a revista Forbes, o uso da imagem de celebridades mortas, numa lista liderada por Elizabeth Taylor, rendeu quase R$ 1 bilhão no último ano.
O tema é fascinante. E como tudo que é novo, as dúvidas são bem mais numerosas que as certezas. Ainda assim, persiste em mim não mais um encantamento, nem um mal-estar, ou uma repulsa. Não sou mais a cúmplice de Frankenstein, seu tempo acabou. Em mim resta uma melancolia diante da Audrey tentando me vender uma barra de chocolate “Galaxy”. A eternidade pós-moderna chegou. E que pobre de desejos ela é. Talvez um dia sejamos julgados, não por um deus vingativo, mas pelas gerações futuras, pela vulgaridade de nossas aspirações.
(Publicado na Revista Época em 11/03/2013)