Por que tememos tanto o que nos torna humanos?
“Há algo perdido na vida de cada um”, diz o artista inglês Mark Leckey. “As pessoas tentam preencher essas lacunas com imagens.” Ele fala de seu filme, Parade (2003), que será exibido na sexta-feira, 15/5, na mostra do Museu Sammlung Goetz, de Munique, promovida pelo Itaú Cultural, em São Paulo. Nos 31min30s do filme, me senti incomodada pelo brilho ofuscante da imagem de seres humanos que em nada lembravam humanos. Seres inanimados de uma vida glamourosa sem vida, vestidos de grifes, com sorrisos que não riem. De repente, esses modelos ofuscantemente belos desaparecem e o vazio toma conta da tela, agora que as imagens já não estão mais ali para nos cegar. Mark Leckey fez um filme “sobre se sentir perdido no começo do século XXI”, um filme sobre o vazio. “Estou doente de imagens”, ele diz.
Eu também. Há muitos caminhos para pensar sobre o filme de Leckey. Eu gosto de pensar sobre a fragilidade que mora em nós e que tanto nos assusta. A certeza, ainda que inconsciente, que dentro de nós há uma fratura. Essa dor à espreita que faz com que nos disfarcemos de tantas formas – e que nos torna vítimas tão dóceis, contentes até, de todas as armadilhas de consumo que preenchem nosso cotidiano.
Algo precisa ser feito quando o vazio nos ronda com sua lucidez implacável. Nem que seja, para uma mulher, comprar um sapato novo que dirá aos outros que nada falta exceto talvez uma bolsa para combinar com ele. E nesse ato não importa se compramos na grife que criou o modelo, na loja de departamentos que o copiou com material de menor qualidade ou no camelô do centro que pirateou o produto. A categoria sócio-econômica não altera nosso medo do abismo. Nesse ato, estamos todos nus.
Você já experimentou permanecer num shopping quando as lojas se fecham e não há mais iluminação sobre os produtos, nem gente colorida andando de um lado para outro sem ir realmente a lugar algum? Vale a pena se arriscar a essa experiência tão urbana. Os seguranças continuam ali, mas não estamos mais seguros.
Em seu livro Fragilidade (Objetiva), o roteirista francês Jean-Claude Carrière reflete sobre a imagem dos corpos brilhantes, malhados nas academias. Com a justificativa da saúde e da beleza – hoje dois conceitos quase inseparáveis –, passamos horas de cada um de nossos dias carregando peso para que nossos corpos ganhem músculos, transformem-se progressivamente em armaduras para que possam ser exibidos em todas as vitrines. Mas por que precisamos de corpos tão fortes, tão impenetráveis? Por que precisamos mostrar força física para sermos atraentes? Por que tantos de nós passam outras horas deleitando-se no espelho com seus bíceps, tríceps e quadríceps? E por que este é o padrão de beleza dessa época?
A hipótese de Carrière é que esse corpo modelado em aparelhos para se tornar ele mesmo uma armadura, uma muralha ou uma fortificação serve para esconder uma intimidade quebradiça, a matéria frágil de que somos feitos. É uma ideia interessante. Levamos uma imagem de saúde e força física a um mundo de imagens, esperando que ninguém adivinhe nosso medo de sermos descobertos, ou suspeite que nossos músculos – como tudo em nós – são mais vulneráveis do que parecem. Desfilamos sob muitas luzes, nunca tantas como hoje, na esperança de que possamos cegar os outros tanto quando essa overdose de flashes nos ofusca a cada dia. O que aconteceria se deixássemos toda a maquiagem de lado, e também a de nossos músculos hipertrofiados? O que aconteceria se as luzes se apagassem de repente? Não é curiosa uma época em que para enxergar é preciso ficar no escuro?
Vivemos num tempo em que as mulheres, em sua magreza, têm de ser retas e rijas como um homem e pendurar enormes peitos artificiais, uma imagem que no passado pertencia apenas aos transsexuais. Por que de repente os seios de carne ficaram aquém do feminino e se tornou necessário fabricar outro à custa de intervenção cirúrgica? Que ideal de corpo feminino é esse que criamos? Duro, definido e sem gordura, nele o único lugar em que só a maciez era possível foi substituído por silicone. Quando foi que nossos corpos se tornaram insuficientes e a saída foi torná-los menos nossos? O que estamos dizendo ao desfilar essa imagem pelas ruas do mundo?
Somos hoje tão duros, tão definidos, talvez porque nunca antes fomos tão vulneráveis, tão indefinidos. Nós, que estamos nesse mundo como indivíduos, sem o amparo da tradição, quase sem utopias. Há algo para sempre fora do alcance dos aparelhos e dos bisturis. Acredito que é o melhor de nós. O que nossos corpos construídos como cidadelas – exilados de nós, feitos para serem impenetráveis até para nós – tentam esconder é o que deveríamos mostrar. É a “essência de vidro” de que falava Shakespeare.
É nossa fragilidade – e não a nossa força – que nos faz humanos. Só chegamos mais perto do que somos ao reconhecermos a fragilidade que nos habita. Só alcançamos o outro pelas fendas entre nós, só podemos amar um outro porque há um rasgo em nós. Não há ponto de contato entre corpos inexpugnáveis. Só criamos pelo que de frágil nos habita, só evoluímos tanto como espécie pelo que há de vulnerável em nossos corpos. E só destruímos o planeta que nos serve de casa e outros de nossa espécie pela recusa à fragilidade que nos constitui – e pela ilusão de uma força que não vem dela.
Não há nada menos interessante – e mais falso – do que um homem ou uma mulher que só exiba força. Não há nada menos sedutor do que gente que não tira máscaras. Assim como poucas coisas são mais embrutecedoras que esse mundo de imagens, em que nós mesmos somos apenas atores coadjuvantes que não sabem como viver quando as luzes se apagam.
Nossa fragilidade é a nossa força. E será melhor viver nesse mundo quando soubermos disso.
(Publicado na Revista Época em 11/05/2009)