Cadê??? Alguém roubou meu espírito de Natal!
Eu não tenho espírito natalino. Hoje mesmo acordei, enfiei a cara dentro de mim, botei até os óculos para enxergar melhor, e não, decididamente não. Não encontrei nem mesmo uma meia furada que o Papai Noel pudesse ter esquecido em algum Natal anterior. Vasculhei cantos remotos, zonas obscuras, e não topei nem com uma guirlandinha. Me sinto uma pária por causa disso. Eu deveria estar feliz, saltitante até, abraçando pessoas na rua, mas não consigo fingir. Só a palavra Natal já me dá vontade de grunhir. Grrrrrhuuuuuunft. Lembram do Clint Eastwood em “Gran Torino”? Sou eu no Natal.
Vocês pensam que minha família se comove com a minha situação? Nada. Me ignoram solenemente. Vão ler esta coluna e revirar os olhos antes de pregar uma bola de Natal na minha testa. Há anos tento convencê-los a marcar o Natal para janeiro, quando os aeroviários não ameaçam greve, as lojas já estão liquidando pela metade do preço e não há vizinhos rompendo com todos os paradigmas musicais ao cantar Noite Feliz em ritmo de pagode. Ainda que exista gente na minha família que realmente celebra o nascimento de Cristo, não há nenhuma garantia de que Jesus tenha nascido nesta data. E, convenção por convenção, podemos criar a nossa.
Neste ano, foi por pouco. Estavam motivados pela coluna que escrevi aqui no Natal passado. E talvez, é uma possibilidade, o fato de eu ter chamado a polícia na semana do Ano-Novo possa ter influenciado. Quase os convenci. Mas depois, algo aconteceu, algum complô secreto, e retrocederam. Liguei para saber se estava tudo bem lá para os lados de Ijuí e minha mãe me deu a notícia à queima-roupa. “Mudamos de ideia! Decidimos passar o Natal na tua casa em São Paulo!”. Demorei uns cinco minutos para recuperar a capacidade da fala, minha mãe preocupada do outro lado que eu pudesse estar sofrendo um ataque epiléptico.
Deixa eu explicar melhor. Eu assumo que não tenho espírito natalino, mas filha, mãe, irmã desnaturada não sou. Vivo tentando sequestrar meus pais para uma temporada na minha casa. E sempre esbarro na resistência do meu pai, cuja viagem mais longa que admite empreender é até a cancha de bocha nos finais de semana. Gasto horas tentando convencer minha filha que o trânsito de Porto Alegre se tornou insuportável e o melhor a fazer é se mudar já para São Paulo. Ninguém sequer me escuta.
Meu problema é com o Natal. Desde o telefonema da minha mãe, toda vez que ouço a palavra Natal eu bebo. Virou uma piada entre os amigos. Eles falam, só para me sacanear: Natal! E eu saio correndo atrás de uma dose de cachaça. Depois de um tempo, meu marido ficou com medo que eu me tornasse alcoólatra e inverteu o processo. Eu levanto para ir ao banheiro do restaurante e ele avisa que não devem tocar no assunto para eu não me exceder na bebida. Volto e está todo mundo com cara de culpado. Sim, sim
Desenvolvi uma fobia natalina. E a cada ano ela piora, até porque o Natal começa cada vez mais cedo. Mal acaba o Dia das Crianças e já começa o Natal. Em outubro! Tenho enjôo quando vejo decoração natalina e calafrios quando ouço músicas natalinas. Eu, que sou uma militante do desarmamento e nunca tive nenhuma arma mais letal que uma faca de cortar pão, quando vejo um Papai Noel tenho vontade de metralhá-lo. E não, não estou criticando o comércio. Eu acredito no livre arbítrio. Se enquadra quem quer. Se eu fosse comerciante e existisse um monte de gente com dinheiro no bolso disposta a pagar o dobro pelo que vendo, eu encontraria um sentido para o Natal. Possivelmente estaria sorrindo.
A esta altura já devo ter chateado alguns leitores. Sim, porque quando digo que não gosto de Natal, que odeio Natal, que tenho horror ao Natal, a primeira pergunta é se fico deprimida. Os deprimidos de fim de ano recebem toda a compreensão. E até um olhar compungido. Mas não, me recuso a mentir. Eu não fico deprimida no Natal. Nem dou a mínima para o Ano-Novo. Eu apenas não consigo encontrar nenhum sentido. Nem um bem pequenininho.
Para não cometer o pecado do etnocentrismo, empenhei parte deste mês de dezembro na tentativa de compreender o espírito natalino dos outros. Descobri que, em geral, o espírito natalino é o que há de pior! Pode ser que na sua cidade seja diferente, mas em São Paulo é o mês mais antissocial do ano. A maior parte das pessoas está à beira de um ataque de nervos. E algumas têm um ataque de nervos. Você esbarra sem querer em alguém, pede desculpas e a criatura xinga gerações da sua família que ainda nem nasceram.
Os ônibus estão lotados em horários novos, é preciso se humilhar para conseguir um táxi, o trânsito para a qualquer hora do dia e há gente quase se estapeando nos shoppings. Ontem mesmo um taxista me xingou de “maldosa” porque a corrida custou R$ 30 reais e eu dei duas notas de R$ 20. “Você acha que eu tenho obrigação de ter troco?”, reclamou bem desaforado. Sim, eu achava que ele tinha de ter R$ 10 de troco. E quase rolamos na sarjeta. Depois, perdoei o motorista maluco. Coitado, ele não sabe o que faz nem o que diz. É só mais uma vítima do espírito natalino.
A verdade é que a maioria de nós está exausto, gostaria de ir para casa botar os pés para cima e assistir a algo bem idiota na TV. Mas não: está lá, comprando. Gastando todo o décimo-terceiro, comprometendo os próximos meses de salário e pegando fila para pagar. Se duvida, sente-se num banco de shopping se encontrar lugar em algum e apenas assista: casais falam coisas cruéis um para o outro, crianças choram e batem pé (ai que vontade de torcer o pezinho!), é um desfile de gente com olheiras no umbigo e dentes trincando, loucas para arrumar uma confusão e desabafar seu fel em algum incauto.
Por que, então? Não sei. Perguntei a vários desconhecidos com que topei nas últimas semanas em situações diferentes. Boa parte deles disse a mesma frase, com uma ou outra variação: “Se eu pudesse dormiria no final de novembro e acordaria em janeiro, quando este pesadelo tivesse passado”. Outro taxista, ao adivinhar em mim uma alma irmã, chorou ao volante enquanto subia comigo a Teodoro Sampaio em primeira. Aos soluços, disse que além de passar um mês dirigindo no pior trânsito do mundo, ouvindo desaforo de clientes estressados, chegaria à ceia do Natal e encontraria uma sogra que o odiava e um cunhado folgado. “E meus filhos vão reclamar que não ganharam o tal do Playstation 3!” Dei batidinhas nas suas costas. “Tap, tap. Pronto, pronto. Coragem, irmão! Tamo junto misturado!”
Se você me lê há mais de um ano, pode estar se perguntando: “Mas de novo ela vai falar mal do Natal?” Sim, no ano passado eu já disse que tinha medo de chester. Depois, destilei ódio contra meus vizinhos de praia nas festas de fim de ano. Mas é o seguinte. Eu poderia estar roubando Papais Noéis de loja, poderia estar matando renas na Paulista, poderia estar arrancando línguas de canarinhos de corais natalinos ou empalando duendes. Mas não. Estou aqui, civilizadamente, apresentando meu ponto de vista. Para mim, falar mal do Natal é um ato político.
Até porque sou uma vergonha. Peco pela incoerência. Falho miseravelmente em minha própria casa. Assim que colocar o ponto final aqui, vou correr para disputar um chester no supermercado. Sim, sim, minha família recusou minha proposta de fazer uma ceia natalina de feijoada e exigiu tradição. Desde quando chester, esta coisa inventada em laboratório, se tornou uma tradição eu não sei. Mas joguei a toalha. Nem mesma sou eu. Quem escreve aqui é um clone. Eu mesma estou de pés para cima, balançando na rede de uma ilha deserta. Sim, ho ho ho. Feliz grrrrrrunfthzt@%$ para você também!
(Publicado na Revista Época em 20/12/2010)