Você sabe onde está o seu?
Dias atrás tive minha própria versão das madeleines de Marcel Proust. No primeiro volume de Em busca do Tempo Perdido, o personagem principal embarca em uma viagem pelas suas memórias ao morder um desses bolinhos franceses. Só vai acabar milhares de páginas depois, ao final de uma das obras-primas da literatura. No meu caso, começou com uma frase da minha professora de pilates.
No final de cada aula, durante o relaxamento, ela costuma pedir ajuda à nossa imaginação. Sempre acho um tanto estranhas essas evocações, do tipo “imagine uma luz amarela envolvendo o seu fígado”…. Até eu conseguir localizar meu fígado já acabou a aula. Naquele dia, porém, ela disse: “imaginem uma flor bem perfumada”.
De imediato, senti o perfume da primavera. Para nós, do interior do Rio Grande do Sul, primavera é uma árvore baixinha, de copa carregada, que floresce apenas nesta estação do ano. Cobre-se de minúsculas flores roxas e brancas. Não tem nenhum parentesco com a árvore de mesmo nome que existe em São Paulo. A minha primavera tem um perfume extraordinário e tão poderoso que toma conta de um quarteirão inteiro. Debaixo dela, eu me sentia uma ninfa dos bosques e vivia mitologias só minhas.
A primavera da minha infância habitava o jardim da minha tia. Essa tia havia sido uma das moças mais belas de Ijuí, com olhos verdes de gata, pele de leite e um cabelo bem preto, herdados da família da minha avó materna, uma ascendência povoada de fantasmas, tesouros e piratas. Ela parecia a Ava Gardner, ouvi infindáveis vezes dos mais velhos, num tom de admiração e lamento, porque ninguém com aquela aparência merecia sofrer tanto quanto ela.
Minha tia cuidava de uma filha que não caminhava, não falava, mas percebia a vida ao redor. Foi seu segundo parto e, naquele tempo, não ocorreu ao médico que minha tia tinha Rh negativo e uma primeira criança com Rh positivo, o que poderia causar eritroblastose fetal. Um erro tão prosaico para a medicina e tantas vidas assinaladas.
Esse nascimento trágico transformou minha tia numa administradora de dias determinados por horários, doenças e gemidos. De sósia de Ava Gardner, ela se transformou, no tempo de um parto, na “pobre” mãe de uma filha excepcional. Numa cidade pequena, os papéis atribuídos a cada um têm peso de concreto. Ou você arranca essa máscara impingida ao seu rosto com os dentes ou está condenado.
Imagino que minha tia não tenha vislumbrado escolha. Quando eu nasci, esse lugar cimentado já era dela. Eu sempre a amei e amo até hoje por ter me dado algo que só percebi agora, a mil quilômetros e décadas de distância, numa aula de pilates em São Paulo, pelo cheiro das flores da primavera do seu jardim que me alcançaram num assalto da memória.
Minha tia me deu um jardim. E eu não sei o que teria sido da minha infância sem ele. Não era um jardim qualquer. Se na vida ela teve de se resignar aos canteiros ordenados da aparência, às cores discretas e às combinações comportadas, seu jardim era uma subversão da ordem. Em um enorme quintal ela havia plantado de tudo. E tudo misturado. E deixava essa babel vegetal crescer segundo os humores de cada espécie.
Havia flores comestíveis, frutas exóticas, regiões com plantas tão fechadas que aranhas e insetos desconhecidos se multiplicavam em cenas de sexo violento e explícito assistidas por mim e pela minha prima com olhos estalados. Nessa geografia desvairada, como uma criança sem tempo, eu comia flores, mastigava formigas e via os louva-a-deus perderem literalmente a cabeça durante a cópula. Não era um jardim, era uma selva. Charles Darwin poderia ter construído pelo menos uma parte de sua teoria sem sair do jardim da minha tia.
Eu dormia em casa, mas vivia ali. Era naquele jardim que “as estações se sucediam produzindo nada além de si mesmas”. Para mim, a crueldade humana da ordenação da vida no lado de fora dos muros do quintal só era suportável porque eu podia me entregar ao caos da vegetação indomável daquele jardim. Eu não era capaz de racionalizar, mas sentia com minhas vísceras que apenas o caos fazia sentido. A vida estava na falta de controle, não nas regras que regiam uma cidade que, naquele tempo, era para mim o mundo inteiro. De algum modo, o jardim manteve a minha sanidade.
Ao crescer, perdi o jardim. Ele continuava lá, mas eu já não era capaz de enxergá-lo. Minha tia continuou plantando. E à medida que as pessoas foram morrendo ou partindo ao redor dela, mais e mais voraz e fechado o jardim se tornava. Já era difícil vislumbrar a casa em algum lugar daquele mato. Minha tia lá ficou, sozinha no seu jardim com uma casa no meio, por muitas estações. Há poucos anos, teve de vender a casa, o jardim, o terreno, para que lá construíssem um prédio. Em troca, lhe deram um apartamento.
Para todos parecia que era uma ótima ideia se livrar de uma casa velha e de um matagal. Menos para minha tia. Nunca perguntei a ela como se sentiu ao assistir a seu jardim ser esmagado pelo concreto de mais um prédio impessoal. No início desse ano fui visitá-la e ela me apresentou seu apartamento. Fiquei aliviada ao perceber que as plantas já começavam a subverter os cômodos de classe média. Minha tia estava salva.
Foi só ao final da aula de pilates, ao ser tomada pelo cheiro das flores da primavera do jardim da minha tia, que compreendi algo que esteve sempre ali. Tão óbvio, talvez óbvio demais para ver. O jardim era o coração selvagem da minha tia. Na violência daquelas plantas entrelaçadas, crescendo sem poda e sem propósito, ela protegia o melhor dela. Impedia que a tragédia da vida não como ela é, mas como nos obrigam a acreditar que ela seja, esmagasse o melhor dela.
Era ali, naqueles cantos úmidos e sombrios, que o coração da minha tia batia com fúria, enquanto entre as paredes da casa ela encarcerava suas grandes esperanças numa máscara de resignação. Deitada na mesa de pilates, de manhã cedo e com apenas um yogurte de cenoura e laranja no estômago, eu vi os braços e pernas da minha tia se enraizando e virando seiva e tronco na selvageria da vegetação semeada por ela à revelia de todos. Naquele jardim onde ela guardou a melhor porção de si mesma, para sempre ela seria, como Jean Cocteau disse de Ava Gardner, “o mais belo animal do mundo”.
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Como é possível compreender algo tanto tempo depois e em contexto tão fora de propósito?
Parti em busca de meu próprio coração selvagem. Descobri ali, em um minuto de assalto da memória provocado por um cheiro de flor, que é preciso ter um para viver.
Pela vida a gente vai perdendo as unhas, deixando fragmentos de dentes aqui e ali. Às vezes se convencendo de que é preciso se resignar a uma lógica que nos garantem ser maior que a gente. Aceitação é uma palavra generosa, prenhe de possibilidades. Resignação é a pior palavra da língua portuguesa. É um esmagamento. Sempre fui capaz de compreender a selvageria, jamais a resignação.
Não penso que nascemos para nos resignarmos a esta ou àquela vida. Nascemos para viver. Nesse embate com as tantas paredes cotidianas, é preciso manter nosso coração selvagem batendo. Cravar flores na terra úmida de nossa alma em vez de semear pedras que erguem muros.
Se ainda não desistimos, é porque nosso coração selvagem está em algum lugar, mesmo que não o percebamos. Pode estar num jardim, como o de minha tia, num sonho resistente, entre as páginas de um livro por escrever, em alguma mania, numa obsessão. É nesse segredo só nosso que mora nossa vontade de viver, contra tudo e contra todos os aniquilamentos, para além das máscaras com que cobrimos a estranheza de nossa face. É preciso encontrá-lo para colocá-lo de volta em nosso peito.
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P.S. – Meu coração selvagem, acho eu, se expressa na minha necessidade visceral de escrever. Eu já escrevia na minha cabeça antes de aprender a transformar pensamentos em letras. Desde a semana passada, escrevo também em um site literário – www.vidabreve.com. Somos sete cronistas, um para cada dia da semana: além de mim, Ana Paula Maia, Fabricio Carpinejar, Humberto Werneck, Luís Henrique Pellanda, Rogério Pereira, Tatiana Salem Levy. E sete ilustradores, também um para cada dia: Felipe Rodrigues, Marco Jacobsen, Osvalter, Ricardo Humberto, Simon Ducroquet, Tereza Yamashita.
Eu sou a mulher das terças-feiras. Lá faço ficção da crônica cotidiana, ilustrada por Ramon Muniz. É um outro caminho na busca de meu coração selvagem. De um outro jeito, exercendo uma outra voz. Quem quiser, pode passar por lá para dar uma espiada e ver se gosta dessa parte diferente de mim mesma.
(Publicado na Revista Época em 09/11/2009)