A beleza pungente do homem que deixou a marca de sua imperfeição na caverna dos sonhos esquecidos
Trinta e dois mil anos atrás, um homem entrou numa caverna e pintou os animais que o assombravam do lado de fora. Simbolizou a vida, parindo nesse gesto a humanidade inteira. Talvez este homem tivesse um dedo torto. Mais especificamente, um mindinho torto. Entre as tantas maravilhas do documentário de Werner Herzog sobre a caverna de Chauvet, no sul da França, talvez a mais pungente seja a imperfeição que levou os pesquisadores a reconhecer o mesmo homem em lugares diferentes. Entre os tantos que criaram cavalos, mamutes, rinocerontes, ursos e leões de extraordinária beleza, este deixou sua mão impressa nas paredes. Singularizou-se, tornando-se todos e um. E hoje, sentados numa poltrona de cinema, com óculos 3D enfiados na cara, nós falamos com ele. E colocamos nossa mão sobre a dele.
Em A Caverna dos Sonhos Esquecidos, o cineasta alemão nos dá a única chance de testemunhar o que ele chamou de “nascimento da alma humana”: a primeira obra de arte da história, composta por centenas de pinturas feitas entre 32 mil e 30 mil anos atrás numa caverna. Há que se ter uma solenidade com tamanha quantidade de tempo. É preciso imaginar esses homens que deixaram do lado de fora um mundo frio e seco, dominado por grandes predadores, onde existia ainda um outro hominídeo, o neandertal, para fazer de nós o que somos, uma espécie capaz de transcender. Como disse um dos cientistas que investiga a caverna, chamar nossa espécie de “homo sapiens”, aquele que sabe, é inadequado. “Nós sabemos muito pouco. O mais correto, talvez, fosse chamar nossa espécie de ‘homo espiritualis’”.
A possibilidade de viver esse encontro com nosso espelho ancestral deveria ser garantida a todos, em qualquer lugar. Não entendo como não há excursões para assistir a esse filme, filas dando a volta no quarteirão. O documentário (trailer aqui) já passou no Brasil em mostras e festivais, em São Paulo está sendo exibido no CineSesc. Herzog fez um filme em 3D, para que pudéssemos ter uma experiência tão completa quanto possível ao penetrar na caverna que nunca foi – e provavelmente nunca será – aberta ao público, já que nossa mera respiração pode alterar o delicado equilíbrio do ambiente interno e comprometer o que foi conservado por 300 séculos. Penetramos na caverna dos sonhos esquecidos pelo cinema e, ao fazê-lo, estamos numa caverna dentro de outra caverna.
É bonita a forma como as cavernas se revelam para aqueles que se dispõem a escutá-las. Homens e mulheres andam pelo mundo apalpando as rochas, tentando sentir algum vento escapando de fendas invisíveis aos olhos. Foi assim com esta, descoberta em 1994 – ontem, portanto –, que leva o nome de Chauvet, um de seus descobridores. Em algum momento, milhares de anos atrás, sua entrada foi obstruída por um deslizamento de terra. E por isso ela se manteve intacta, como uma cápsula do tempo que só agora se mostrou. Cavalos, leões, mamutes, rinocerontes, hienas parecem ter sido pintados há pouco – e a qualidade artística é impressionante. Os bichos têm patas a mais possivelmente para dar a ideia de movimento, quem os pintou recriou vida querendo que a vida vivesse. As perguntas se sobrepõem, e a maioria delas nunca será respondida. São sonhos – e os sonhos escapam.
A única figura humana encontrada é uma mulher nua, diante de um bisão. É impossível mesmo para os cientistas alcançar essa imagem, porque nas profundezas da caverna o caminho para chegar a ela tem chão inseguro. Os pesquisadores preferem não arriscar, temerosos de comprometer a integridade do lugar. Sem chão para pisar, Herzog e sua equipe espetam a câmera numa vara e conseguem alcançar um ângulo em que o bisão está quase sobre o sexo da mulher. Muito, muito depois, no século XX da era cristã, Picasso pintaria uma mulher e o minotauro. É quase irresistível divagar. A sexualidade da mulher, que por milhares de anos se manteve nas trevas daquela caverna, é iluminada em nossos dias apenas para se mostrar inalcançável, uma interrogação sobre chão movediço.
Ao penetrar na caverna em que o primeiro entre nós sonhou, nos descobrimos prostrados de amor diante do mistério do que somos. E é amor o que parece mover Herzog para dentro e para dentro, assim como cada um dos cientistas. Mas há ainda uma beleza mais sutil que percorre o filme. É talvez uma segunda camada, e ela nos fala do mindinho torto. Herzog foi especialmente sensível ao conectar os humanos de ontem e de hoje, os artistas de 32 mil anos atrás com os cientistas que agora os investigam e interpretam. Nós com nosso outro paleolítico.
Em determinado momento, um descobridor de cavernas conta que, enquanto a maioria de seus colegas tenta adivinhá-las por um vento, um sopro, ele o faz pelo olfato. Sai cheirando rochas para que a diversidade ou a súbita alteração dos cheiros revele que há algo oculto dentro de montanhas supostamente maciças. Esta é a sua escolha, explica, porque é perfumista. Empolga-se um pouco mais e acaba anunciando que chegou a ser presidente da Associação Francesa de Perfumistas. Ao dizer isso, de imediato percebe que falou demais, que não faz nenhum sentido num filme com essa grandiosidade dizer algo assim – dizer de sua importante desimportância.
Fosse um cineasta menos atento à escuta, mais propenso a botar as pessoas a confirmar um discurso previamente determinado, e teria cortado o excesso na edição. Herzog escolhe manter, como escolhe manter em todos os depoimentos, porque, sim, faz todo o sentido esse esforço desajeitado, devastadoramente terno, por reconhecimento. Faz todo o sentido esse contar da vida, essa tentativa de singularidade que une todos nós. É o mindinho torto. É a beleza pungente do mindinho torto.
E assim vamos desvelando a marca humana pelas cavernas. Outro pesquisador decide contar sobre o contexto do homem pré-histórico enfiado numa pele de rena, como se fosse um deles. Não são jovens os cientistas, quase todos velhos homens que amam o que fazem, e aquele é um velho de olhos brilhantes, todo faceiro porque está paramentado como um homem do paleolítico, cujos vestígios dedicou a vida a investigar. Ele mostra para a câmera uma flauta esculpida em osso para explicar que o ouvido daqueles homens já escutava o mesmo que nós, e que naquele instrumento pré-histórico poderíamos tirar mesmo peças de séculos recentes. Ele então toca um pedaço do hino dos Estados Unidos. Em seguida, pelo menos foi o que me pareceu, fica sem jeito. Muito mais tarde, ao descobrir o filme de Herzog como uma outra cápsula do tempo, alguém poderá indagar: mas por que esta música e não outra? O que essa escolha nos diz?
Outro cientista tenta mostrar como nossos ancestrais matavam cavalos com uma lança incrivelmente perfurante e letal. Atira várias vezes, mas a sua é uma lança desajeitada, que não acertaria uma galinha no quintal. Segue tentando, até que Herzog diz o que todos pensamos: “Acho que os homens do paleolítico eram melhores do que você para matar cavalos com lanças”. Ele dá um sorriso encantador, meio encabulado, de criança surpreendida fazendo o que não deve. E a gente suspeita que, quando a câmera partir, ele vá seguir tentando e imaginando sabe-se lá o quê. Talvez que é um grande caçador das tundras geladas.
Em outro ponto, duas pesquisadoras, a mais velha e a mais jovem, estão postadas dentro da caverna para gravar seu depoimento. A mais velha, que deve ser a chefe, tem a prerrogativa. Ela nos conta então do homem do mindinho torto. Mas a mais jovem também está diante da câmera de Herzog, um dos grandes cineastas da atualidade, num documentário sobre uma das maiores descobertas arqueológicas, da qual ela também faz parte e com a qual colabora. Sem contar que sua família e seus amigos vão assistir, e o filme estará nos cinemas de Paris, do mundo inteiro. Como ela aparecerá nesse documentário – e na posteridade – muda como uma múmia?
A mais jovem então, toda circunspecta, com seus PhDs e pós-docs, repete uma frase que a outra tinha acabado de dizer, com o tom de quem faz uma revelação que vai alterar o curso dos acontecimentos. Sua intervenção nada acrescenta, no sentido do conteúdo científico, porque é uma repetição do que já foi dito pela outra. Pelo contrário, interrompe o raciocínio da mais velha. Mas tudo acrescenta, porque é exatamente isso. Ao falar sobre o homem que deixou sua mão de dedo torto estampada pela caverna, ela também precisou deixar a sua marca. A sua mãozinha. E não é feio, é bonito. É humano.
Quando percebe que falou demais, ao contar que tinha sido presidente da Associação Francesa de Perfumistas, o descobridor de cavernas bufa. Aquele jeito que já é um clichê na imagem rabugenta dos franceses, soprando o ar pela boca. É assim que se descobre as cavernas, por aquele sopro que escapa de um interior que se crê bem protegido. É assim que Herzog vai desvendando as profundezas tão humanas daqueles que investigam seus ancestrais de 32 mil anos, e esboçando um painel também da alma contemporânea, de quais são os sonhos daqueles que desejam ser lembrados.
Como disse um arqueólogo, o mais jovem entre todos os que aparecem no filme, um arqueólogo que antes foi artista de circo: “É preciso sair da caverna para compreender”. A câmera de Herzog é esse olhar de fora, o olhar do outro que nos enxerga e revela. Reconhece nosso mindinho torto. E nos ama também por causa dele.
Na caverna dos sonhos esquecidos, ursos que já não existem arranham uma parede com suas garras. Sobre essas marcas, alguns milhares de anos depois, um homem desenha um mamute. E 5 mil anos mais tarde, outro homem pinta outro mamute quase em cima. E hoje há também um homem, e este apenas olha – e se reconhece. Como em nossos interiores, quanto mais fundo, mais as bestas afiam suas unhas. E se as camadas de tempo nos levam mais e mais para a superfície, temos as imagens daquilo que pode ser exibido, as representações visíveis de nosso eu invisível.
Somos todos cavernas de sonhos esquecidos. Deixando escapar um sopro de vez em quando, na esperança de que alguém nos adivinhe. E nos ajude a lembrar de nossos desejos.
(Publicado na Revista Época em 04/02/2013)