Olhar para ver é um ato de resistência diante da banalização da vida
Aprendi, no exercício do jornalismo, que olhar para ver é um ato de resistência cotidiana. O mais fácil, sempre, é não ver. Ou enxergar apenas aquilo que nos dão para ver, como se essa fosse toda a verdade. Existe aquilo que não vemos, mas gostaríamos de ter visto. E existe aquilo que não vemos porque escolhemos não ver. Como quando fechamos o vidro do carro para impedir o contato com as pessoas que nos pedem alguma coisa do lado de fora. E colocamos insulfilm nos vidros, quanto mais escuro melhor, para que nem mesmo elas possam nos ver. É mais fácil quando aqueles que querem entrar não enxergam nosso rosto assustado, culpado ou com raiva. Nosso desamparo diante da dor do outro é oculto por camadas de insulfilm. E um pouco mais: a película que permite a nossa cegueira impede os que pertencem ao lado de fora de ver que não estamos vendo.
Nos iludimos que estamos protegidos, mas a escolha de não ver – assim como a de não ser visto – vai nos brutalizando. E logo nem precisamos mais da película sintética na janela. Porque um insulfilm orgânico já cobre nossos olhos, faz parte de nós. Não ligamos mais. Os que querem entrar já não importam, porque nos iludimos que são tão diferentes de nós, que temos a sorte de estar dentro, que não faz mais diferença.
Todos os genocídios da história foram cometidos por poucos, mas só puderam ser consumados porque muitos fingiram não ver. E fingiram com tanta ênfase que acabaram por acreditar que não viam. Às vezes, contra todos os meus esforços, acontece comigo. Sucumbo à banalidade, me distraio e permito que o insulfilm me cubra os olhos. Iludo-me que estou vendo, mas não estou.
Na semana passada, duas pessoas de mundos diferentes – mas só aparentemente – me trouxeram histórias que me despertaram. Fiquei com uma dor constante na boca do estômago, um incômodo que não me deixa, desde então. Ver não é fácil. Não entramos em contato com a verdade – a nossa e a do outro – impunemente.
A primeira história veio de longe. Nada mais distante dos nossos olhos do que a África, todas elas. Às vezes temos notícia do mundo de lá por que Angelina Jolie andou pelos campos de refugiados de Darfur ou a copa das confederações, vencida no domingo pelo Brasil, aconteceu na África do Sul. Mas isso não é exatamente ver. A verdade é que poucas realidades do mundo são tão fáceis de não ver como a das Áfricas todas. Porque a rigor nem mesmo a África existe. Como sabemos, o continente e cada país dele foram uma invenção riscada no papel pelos colonizadores, com as consequências mais devastadoras. Para a maioria de nós, que aqui está, nada mais distante de nós do que os africanos todos. Vez por outra acompanhamos seu sofrimento como se acontecesse com gente de outra espécie. Eles morrem todos os dias de guerra, de fome, de sede, de malária e de Aids. E é como se seu sofrimento fosse um dado da natureza. É banal, é corriqueiro, deixamos de ver, não nos sentimos implicados, “a África é assim”. É mais assim ainda que as favelas que se multiplicam ao nosso redor.
Como podemos?
Racionalmente, eu não aceito isso. Mas a realidade, percebi, é que vivo como se aceitasse. Dias atrás, entrevistei uma moçambicana chamada Lucrécia Paco. É considerada a maior atriz do seu país. Sofreu discriminação numa casa de câmbio do Shopping Paulista, quando trocava seus dólares, em São Paulo. Contei essa história nesse site. A certa altura da entrevista, Lucrécia me disse: “Você sabe, no tempo da guerra civil, a expectativa de vida em Moçambique estava em torno de 45 anos. Agora, com a Aids, baixou”. Eu sabia, mas não sabia. Só enxerguei de verdade quando olhei para a mulher diante de mim. Próxima dos 40 anos, ela beirava a expectativa de vida de seu país. Se eu lá vivesse, já a teria superado. E é um índice a ser comemorado, já que em 2003 a expectativa de vida de um moçambicano ao nascer era de 31 anos, só um pouco maior que alguns dos períodos de maior fome da Europa medieval. Ao me reconhecer nos olhos doídos de Lucrécia, lentamente comecei a abrir as pálpebras dos meus.
Em seguida, li um livro chamado O Tradutor – Memórias de um homem que desafiou a guerra (Rocco, 2008). Daoud Hari, seu autor, é também o tradutor do título do livro. Depois de ter sua aldeia dizimada, em Darfur, no Sudão, em 2003, ele passou a levar jornalistas estrangeiros para dentro das fronteiras perigosas do país, para que pudessem contar o que acontecia no seu mundo. Dois anos mais tarde, em 2005, foi preso e torturado pelo governo do Sudão junto com o motorista do carro e um repórter da National Geographic. Só foram libertados depois de uma intensa campanha internacional, que envolveu celebridades como Bono Vox, o líder do U2.
Meus olhos se escancararam quando li o seguinte trecho do livro. Nele, Daoud conta o relato que ouviu de um pai enlouquecido de dor, num dos campos de refugiados de Darfur. Esse homem não conseguia mais viver, seus dias tornaram-se a repetição dessa cena impossível. Daoud não voltou a encontrá-lo. Quando o procurou mais tarde, nem sua mulher sabia de seu paradeiro. Há dores incompatíveis com a vida. Leia o que ele viveu:
“– Um dos janjaweed (milícia apoiada pelo governo do Sudão) começou a me matar de forma dolorosa. Minha filha não aguentou ver aquilo calada e correu em minha direção, gritando Abba, abba.
Ao repetir essa palavra, que em zaghawa significa ‘papai’, sua voz ficou embargada, o que o obrigou a fazer uma longa pausa.
– O homem que tinha me amarrado à árvore viu minha filha correndo em minha direção. Então baixou o rifle e enfiou-lhe a baioneta, empurrando a arma fundo, varando o ventre da menina. Mesmo assim, ela ainda conseguiu gritar Abba, abba. Ele então levantou a arma, ainda enfiada na barriga da minha filha, o sangue derramando sobre ele. Em seguida, começou a dançar com ela suspensa no ar e gritou para os companheiros: ‘Olhem só como estou bravo’. Os outros responderam em coro: ‘Você bravo, bravo, bravo’, enquanto matavam outras pessoas. Minha filha olhou para mim, demonstrando estar sentindo uma dor imensa, os bracinhos estendidos em minha direção. Ela ainda tentou dizer Abba, mas não conseguiu. Demorou muito para morrer, o sangue tão vivo, de um vermelho intenso, escorrendo sobre aquele… o que ele era? Um homem? A encarnação do mal? Ele estava pintado de vermelho, coberto com o sangue da minha filhinha. O que ele era?”
Cenas como essa não são passado, acontecem agora mesmo em Darfur – e em outros pontos da África – sem que tomemos conhecimento delas. Porque acreditamos que “a África é assim mesmo, não tem jeito”.
Como podemos?
Terminei de ler esse livro extraordinário na mesma noite. Extraordinário porque Daoud fala de morte, ele mesmo meio morto por dentro, para reivindicar a vida. É um livro vivo, onde ele acha até espaço para o humor, para reafirmar a importância de sorrir pelo menos uma vez por dia. Esse homem, que viu seu mundo desaparecer em sangue dos seus, nos escreve para reeditar a vida, para nos pedir para olhar, porque a existência dele e de todos lá depende da nossa capacidade de enxergar.
No dia seguinte, Maycon Silva me escreveu. Ele havia lido minha coluna anterior, em que começo a resgatar a história de Manezinho, um homem que morreu atrás da montanha de escombros em que se transformou a favela Jardim Edite, na Zona Sul de São Paulo. Inspirado na história desse homem que nossa cegueira tornou invisível na morte como na vida, Maycon juntou forças para escrever sobre algo que ele testemunhou em 2005 e não pôde esquecer. Maycon tem 25 anos, é estagiário de arte da revista Casa e Jardim, da Editora Globo. Migrou do Paraná aos 11 anos para a periferia de São Paulo, estudou com o apoio de ONGs e do ProUni. Tento convencê-lo a virar repórter, porque ele tem um texto contundente e um par de olhos abertos. Mas ele resiste.
Leia o que Maycon testemunhou. Se lá é longe, aqui é perto:
“Era um sábado de manhã, 3 de setembro de 2005. Eu voltava de um projeto social em Diadema. Como todo ‘cachorro-loco’ que se preza, lá estava eu com minha moto pela avenida Ricardo Jafet, cortando todos os carros, querendo chegar mais rápido não sei aonde.
Paro no semáforo vermelho. Aqueles segundos parecem eternos, ansioso espero a luz verde acender, eu e outro motoqueiro avançamos o mais rápido que nossas mãos permitiam acelerar. Sinto um vulto cair entre as duas motos e escuto o estrondo mais forte por mim presenciado, comparado ao barulho forte de bomba, mas não pela audição e sim pela explosão sentida no impacto.
Olho pelo retrovisor. Enrolada por uma manta cor-de-rosa e vestida com macacão branco, lá estava no chão a linda bebezinha, cujo rosto não sai de minha mente, a pele branca como neve. Nunca estive em um campo de guerra, porém penso ser a mesma sensação de ver um companheiro ser atingido por um tiro de fuzil e não ter forças para fazer nada. A criança foi jogada de cima da ponte, o barulho que escutei foi o do seu corpo batendo no asfalto.
Imediatamente volto. Enquanto alguns correm para a rua e param o trânsito para o bebê não ser atropelado, subo pela contramão, na intenção de matar quem havia feito aquilo. Me deparei com uma mulher, aparentando ter uns 28 anos, sentada no chão, com os olhos brilhando cheios de lágrimas. Quando chego perto dela, ela me estende as mãos e pergunta:
– Cadê minha filha?
No mesmo instante começam a chegar pessoas querendo linchar a mulher. Tento conter a ação e pergunto por que ela jogou sua filha. Sua resposta é a seguinte:
– Preferi jogar ela da ponte a vê-la continuar passando fome junto comigo. O pai está preso e eu não tenho condições de sustentar. Deixa eu me jogar também.
Não consegui ter raiva daquela mulher, foi uma mistura de sentimentos. Ela tinha o olhar sofrido, uma vida que qualquer pessoa da classe média não aquentaria. Ao tentar proteger a filha da fome, ela a matou. Como julgar aquela mulher, se dava para sentir seus sentimentos. Um ato e tudo mudou naquele instante.
No dia seguinte comprei todos os jornais, busquei notícias na internet. Nada, nem ao menos uma nota. Pensei em ir à delegacia saber o que aconteceu com a mulher e sua filha, fazer um documentário, escrever um livro. Mas histórias de pessoas comuns, quem quer saber?” .
Foi essa a história que Maycon Silva contou. Descobri ali, no final, que meus olhos andavam menos abertos do que eu acreditava. Não havia nem a desculpa feia da distância. A África é do outro lado do oceano, mas a Ricardo Jafet é logo ali. Para todos nós, há sempre uma Ricardo Jafet logo ali e muitas Áfricas mais perto do que acreditamos, ainda que seja porque os que morrem lá são feitos da mesma matéria frágil e imperfeita que nós.
Ao final desses relatos, eu não tinha nenhum vidro com insulfilm para fechar às pressas, com as mãos suando, com medo de deixar a vida do outro entrar e transtornar a minha. Ficar de olhos bem abertos dói, mas sigo acreditando que é a única maneira de viver com verdade. A única que preserva nossa humanidade.
E, agora, como o homem que viu a filha ser varada por uma baioneta, empunhada por alguém que também parecia um homem, que dançava enquanto era banhado pelo sangue da criança, também me faço uma pergunta, de olhos bem abertos:
– Como pude? O que sou eu?
(Publicado na Revista Época em 29/06/2009)