Uma mulher em busca do próprio corpo
Houve esse primeiro sonho. Elena veste uma blusa de seda e está em cima de um muro alto, enroscada nos fios elétricos. Logo é Petra quem está enroscada. Petra mexe nos fios. Leva um choque, cai do muro alto e morre. Quem morre? Petra acorda desse sonho com um nó no estômago. Elena não acorda. Elena morreu aos 20 anos, em 1990. Petra tinha 7 anos quando a irmã morreu. Elena acorda, sim. Abre os olhos dentro de Petra. “Sinto você dentro de mim…”, diz Petra. Duas irmãs enroscadas em fios elétricos, uma delas acorda com um nó no estômago. A que vive sente a morta dentro dela. Enroscadas, não se sabe quem morreu.
Esse sonho sonhado por Petra é a primeira cena de um dos documentários mais belos que eu já vi, com estreia nacional nesta sexta-feira. Um filme que fica se encenando dentro da gente por muito, muito tempo. Quando ele começou a ser feito? É difícil saber quando um documentário começa. Mas sempre começa antes, muito antes, quando a vida ainda não sabe que precisará ser encenada para que os vivos possam viver.
A mãe de Elena e Petra “queria ser atriz em Hollywood e beijar o Frank Sinatra”. Sentia também vontade de morrer. Até os 16 anos, quando encontrou aquele que seria o pai das filhas que ainda não se sabiam. O homem vinha dos Estados Unidos “não como Frank Sinatra, mas como Che Guevara”. Quando ambos se preparavam para combater a ditadura militar na Guerrilha do Araguaia, a mãe foi impedida – e talvez salva de ser assassinada pelo regime, como tantos – por estar com seis meses de gravidez. Elena nasceu na ditadura e teve uma infância clandestina. Petra nasceu na abertura política. Elena queria ser atriz e foi para Nova York. Quem será que Elena queria beijar?
Elena morreu em Nova York. “Esse corpo tá doente. A vida o fez totalmente doente. Totalmente. Aquele eu descontrolado voltou… Eu ajo como se atuasse. Percebo tudo como numa tela de cinema…. Eu vou me degradar e escorrer por esse ralo.” No dia da morte, Petra e a mãe já moravam com Elena em Nova York. Petra tinha de levar um objeto para mostrar aos colegas na escola. “Show and tell” (“Mostre e conte”) é o nome da atividade. Elena deu a ela um cachorro azul de pelúcia. E disse: “Ele tem poderes especiais. Quando você quiser muito alguma coisa, fecha os olhos, faz o pedido e chacoalha ele”. Na escola, as crianças perguntavam a Petra: “Mas ele não toca música, não faz mais nada”? Só chacoalha.
À noite, já não adiantava chacoalhar Elena. “Me sinto escura, no escuro… Meu coração tá tão triste que eu me sinto no direito de não perambular mais por aí com esse corpo que ocupa espaço e esmaga mais o que eu tenho de tão… tão frágil.”
O coração de Elena, Petra descobriria depois, pesava 300 gramas.
É este o peso de um coração?
Aos 7 anos, Petra tem pesadelos e quer morrer, diz o relatório psicológico. Evita falar da irmã. Petra ouviria nos anos que se seguiram: “Você pode morar em qualquer lugar do mundo, menos em Nova York. Você pode escolher qualquer profissão, menos ser atriz”. Aos 18 anos, Petra tinha virado atriz. Ao buscar seus diários como material para um workshop do grupo de teatro Vertigem, encontrou um caderno que nunca tinha visto. A letra era muito parecida com a dela, as angústias eram muito semelhantes às dela, as palavras que ela não encontrava tinham sido achadas e se diziam ali. Mas não era o diário dela. Ou era?
Petra já tinha virado atriz e agora embarcava para Nova York. Ela precisava buscar Elena fora dela, porque dentro Elena a consumia. E tinha de fazer isso antes dos 20 anos. Se ficasse ali, como Pedra, sentia que vivia um destino já traçado e, mais que traçado, um destino trilhado. Um destino de outro, outra. Era preciso resgatar a memória de Elena, dar um lugar a Elena fora, para que Petra pudesse se saber – existir. Era preciso dar um corpo a Elena para que Petra descobrisse os contornos do seu.
Quando Petra faz 21 anos, a mãe diz: “Agora, você já está mais velha do que Elena”.
Elena, o filme, é a trajetória de uma mulher em busca de ser não mais duas, mas uma. Trata de um tema crucial para todas as mulheres, a individuação. O arrancar-se do corpo de uma outra – mãe… (irmã…) – para poder existir. Quando esse movimento de matar e morrer simbólico, necessário para o tornar-se mulher, é atravessado por uma morte literal, concreta, tudo ao mesmo tempo se torna mais urgente e mais enroscado. Como matar quem já está morto e que dói em nós como uma saudade brutal? Como ferir de novo a mãe, ainda que desta vez de modo simbólico?
Neste sentido, Elena dialoga com obras literárias bem recentes e confessionais, como a de Paula Corrêa, Tudo o que mãe diz é sagrado, e, ainda que por caminhos mais sutis, com O que os cegos estão sonhando?, de Noemi Jaffe. (E também com o meu próprio romance, Uma Duas). Dialoga com essa morte que Petra Costa chama de “memória inconsolável”, na qual é preciso não só lidar com o morrer de quem amamos, mas é preciso matar de novo. E como matar de novo se o único jeito de manter essa irmã viva é abrigando-a dentro de si (e alimentando-a de si)?
Elena é uma Ofélia, pensa Petra. Ofélia, a noiva de Hamlet que se suicida na peça de Shakespeare. Ela, Petra, também é uma Ofélia. São muitas as Ofélias que andam por aí nas ruas deste mundo, acredita Petra. Meninas que no vir-a-ser mulher afogam-se no rio de desejos e sensações, de excessos do sentir e do querer. Jovens que submergem nesse feminino perturbador sem jamais conseguir voltar à superfície.
Será que para se tornar mulher é preciso se mutilar, e só então ganhar pernas e dançar, como em A Pequena Sereia? A história original, não a da Disney – nunca a da Disney. Será que ao ousar deixar a casa familiar para buscar um outro destino uma menina será punida, como a pequena sereia, que aceita ter a voz arrancada para habitar o mundo do príncipe como mulher? Elena levou Petra para assistir ao filme. Depois contou a história que não foi contada. “Como assim, ela morre?”, pergunta uma Petra inconformada. Morre.
O que é uma irmã mais velha? O que é uma irmã mais velha que morre? Lembro o início de Alice no País das Maravilhas (ou, muito melhor, Alice’s Adventures Under Ground, no original de Lewis Carroll). Na primeira página, a irmã mais velha de Alice está sentada lendo um livro. E Alice irrita-se, sem saber para que serve um livro sem gravuras nem diálogos. Alice está irritada porque não alcança a irmã, mais velha e além. Então Alice sonha toda a história que conhecemos. E a última cena deste sonho é o confronto com a Rainha de Copas, essa figura maternal e assustadora, sempre disposta a cortar a cabeça de quem a ela se opõe. Mais ainda de quem a desafia nos termos de Alice, que diz: “Quem é que liga para você”? Quando as cartas do baralho caem sobre ela e a menina precisa lutar, Alice acorda com a cabeça no colo da irmã mais velha. Salva. As cartas são folhas secas levadas pelo vento que a irmã gentilmente vai espantando do rosto da caçula. Alice desperta e corre para não perder a hora do chá, mas a irmã mais velha fica. Ao ficar, sonha com as aventuras de Alice. E sonha ou imagina que sonha com a irmãzinha virando mulher.
Quando não há uma irmã mais velha para proteger a caçula da Rainha de Copas, o que acontece? Quando não há uma irmã mais velha para sonhar que a caçula um dia será mulher, o que acontece? E se é a irmã mais velha que não suporta virar mulher, como a caçula poderá?
É desse labirinto intrincado entre posições – mãe, filha, irmã… mulheres enlaçadas (e misturadas) – que fala o filme de Petra Costa. Diz também – e muito – desse lugar impossível, que é o da filha que sobrevive diante de uma mãe inconsolável. Há ainda muito pouco escrito e dito sobre os filhos que sobrevivem numa família devastada pela perda de outro. Se é Elena que “salva” a mãe, ao impedir que ela vá para o Araguaia, de onde muitos não voltaram, é Petra quem a “salva” desta vez, ao impedir, apenas por estar viva, que a mãe morra com Elena. Mas, de fato, não há como salvar uma mãe, nenhuma mãe. Não há como salvar mesmo levando essa tentativa à radicalidade, ao manter a morta viva dentro de si.
E como arrancar-se simbolicamente do corpo da mãe para virar mulher, quando essa mãe sangra tanto e tão profusamente pelo arrancar-se literal da outra filha, que se arrancou da vida no momento em que tentava se tornar adulta?
A filha que resta sempre terá de consumar uma morte a mais para crescer, já que se identifica e se confunde também com a filha que morreu, na tentativa de salvar a todas – e principalmente a mãe. A filha sobrada sente que precisa sustentar três. Aos 10 anos, Petra compreende que Elena morreu para sempre e percebe que a mãe pode morrer também, a qualquer momento. Petra precisa evitar essa morte. Então faz promessas, cria mecanismos para salvar a mãe. Não comerá mais sal, subirá os 19 andares até o apartamento de joelhos, nunca mais se olhará no espelho. Para a mãe não morrer, entra no banheiro de olhos fechados.
Elena leva o nome de uma, mas é um filme sobre três mulheres. Há Elena, há Petra e há aquela que nomeou as duas, mas que no documentário só aparece como “mãe”. Aqui, Mãe é nome próprio.
Deixada sozinha para sonhar, Petra Costa poderia ter feito um filme de terror. Em vez disso, escolheu a delicadeza (ainda que possa existir delicadeza no horror e horror na delicadeza).
Fez uma obra brilhante – no cinema, mas também na vida. A Mãe desejou ser atriz de Hollywood, Elena tentou ser atriz em Nova York, Petra tornou-se diretora de atrizes – em Nova York (e aqui). Ao tornar-se diretora, Elena, a Mãe e ela mesma se tornam estrelas de cinema em um filme que nunca esperaram viver, quanto mais encenar. Ao tornar-se diretora, Petra crava as unhas na única oportunidade de ter algum controle sobre a vida, que é a criação de sentido para aquilo que não tem nenhum. A vida encenada como vida.
Agora, Elena pode morrer de novo para viver em outro lugar. Não só dentro e fora de Petra e da Mãe, mas em lugares inalcançáveis mesmo para Petra e para a Mãe. Em cada um de nós, os espectadores, os viventes deste mundo nascido entre a tela do cinema e os nossos corações.
De certo modo, todas as três mulheres morrem e nascem de novo no líquido uterino do cinema. Não uma duas três, mas três umas. Não se afogam mais. Podem mergulhar e voltar à superfície. Flutuam.
Agora que Elena é memória viva, Petra não é pedra – mas água.
Petra seguiu sonhando com Elena enquanto buscava Elena e o filme. “No primeiro, foi a imagem da sua morte. No segundo, Elena se cortava e eu começava a entender sua dor. No terceiro, eu cozinhava sua dor numa panela até ela evaporar. No quarto, eu sobrevoava uma floresta e, num cantinho de mata, via a alegria de Elena, que era laranja, da cor das árvores no outono.”
O último sonho foi em outubro de 2010. Petra, então com 7 anos, girava na cintura de Elena, que dançava. Juntas, dançavam, giravam. Um giro, uma dança.
Petra não sonhou mais com Elena desde então.
(Publicado na Revista Época em 06/05/2013)