Um fotógrafo tem o direito de se posicionar diante da janela, com uma lente potente, para registrar cenas privadas e depois exibi-las?
Desde que, anos atrás, ouvi as primeiras notícias de uma nova tendência no mundo da fotografia, a de registrar a vida privada dos vizinhos, mudei meus hábitos dentro de casa. Passo bastante tempo entre paredes íntimas, porque trabalho em casa, e sempre gostei das cortinas abertas, a luz entrando, o máximo bem mínimo de amplitude numa cidade como São Paulo, com prédios, janelas e outros mundos dentro delas por todos os lados. Mas, com medo de uma lente indiscreta, passei a fechar as cortinas de forma que nenhum olhar desconhecido, ninguém que não tenha batido na minha porta pedindo licença para entrar, possa me alcançar. A possibilidade de me descobrir numa exposição de fotos ou num site da internet, mesmo que meu rosto não possa ser reconhecido, alterou a minha vida mesmo antes de se concretizar.
Em agosto, a justiça americana deu uma decisão favorável ao fotógrafo Arne Svenson, que havia sido processado por dois de seus vizinhos depois de expor retratos feitos de sua janela. Com uma lente de grande alcance, o olhar de Svenson penetrou para além dos vidros de um prédio no bairro de Tribeca, em Nova York. A série de retratos foi exibida na exposição intitulada The Neighbors (Os Vizinhos). Svenson teve o cuidado de não mostrar o rosto dos fotografados, mas as pessoas se reconheceram. Uma delas sentiu-se desconfortável ao identificar objetos do quarto da filha. A simples ideia de que havia alguém espionando a sua vida privada provocou mal-estar. As fotos foram oferecidas pela galeria por valores que variavam de US$ 6.200 a US$ 8.400.
A exposição provocou muita discussão e rendeu vários artigos na imprensa americana: o que fazer quando a liberdade de expressão de um invade a privacidade de outro? Na sentença favorável ao fotógrafo, a juíza diz: “Arte é liberdade de expressão e, portanto, garantida pela Primeira Emenda (da Constituição)”. Mas será que a questão se resume a saber qual dos conceitos – liberdade de expressão ou privacidade – se impõe sobre o outro?
Arne Svenson afirmou que o veredicto foi “uma grande vitória para os direitos de todos os artistas”. E reafirmou sua intenção ao fotografar os vizinhos: “Eu acredito que aspectos inconscientes, não ensaiados da vida, são mais bonitos para fotografar, por serem mais abertos à interpretação, à narrativa”, disse ao jornal britânico The Guardian. “Um momento dramático tem o poder único da ação, mas os pequenos e conectados momentos são como marcamos nosso tempo na Terra.” E concluiu, lindamente: “Estou muito mais interessado em registrar a respiração entre as palavras do que as próprias palavras em si mesmas”.
No Brasil, Felipe Morozini fez 180 mil fotos de sua vizinhança nos últimos dez anos, da sacada de seu apartamento, localizado no 13o andar de um prédio do centro de São Paulo. Algumas fotos mostram pessoas nuas ou com roupas íntimas, em suas tarefas rotineiras. Morozini disse à Folha de S. Paulo: “Não me sinto desconfortável por mostrar essas pessoas. Não busco a falha do outro, mas a poesia”. No texto de apresentação da sua obra numa galeria, esse olhar que atravessa a janela dos vizinhos é apresentado de forma poética:
“É tudo verdade. Num prédio da Avenida São João, em São Paulo, um homem de corpo dourado e cabelos grisalhos todos os dias senta-se na varanda para olhar uma coleção de relógios. No outro prédio, todas as manhãs uma mulher bate bifes com um martelo de carne, no mesmo ritmo do sexo bruto que vive todas as noites. Um cachorro toma sol numa varanda cujo piso é trocado frequentemente: de ardósia para lajota para cimento. Um homem jovem numa janela segura uma câmera e diariamente invade em zoom a vida dos vizinhos, registrando esses hábitos e mazelas. Depois, analisa as imagens e acha pedaços de poesia inintencionais. Amplia então a fotografia de uma mulher nua, numa área de serviço cujas paredes são deliciosamente gastas pelo tempo. Ela segura um espelho, que reflete seu bico do seio. O acaso tem uma face erótica, revela a fotografia de Felipe Morozini. Que o artista tenha escolhido a luz, o dia em que roupas coloridas formavam uma curva na parede cinza, e tenha esperado o corpo da mulher repetir a linha escura vertical que centraliza a composição. Aceito. Mas não foi ele quem mirou o espelho para o mamilo no instante certo. Foi o acaso. Extrativismo estético autossustentável: o fotógrafo colhe migalhas do belo que existem naturalmente no mundo real”.
As fotos são de fato belas e emocionam. Dão transcendência à nossa rotina de minoridades. Nos enxergamos no pequeno gesto do outro, nos descobrimos próximos daquele que pensávamos desconhecer. Nossos passos claudicantes pela casa e pelos dias se revelam um balé poético. Tanto os retratos de Svenson quanto os de Morozini evocam as pinturas do artista americano Edward Hopper (1882-1967), com sua solidão pungente. Como alguém que gosta de fotografia e gosta de arte, o trabalho desses fotógrafos me dá muito prazer. Mas, como alguém que poderia estar no lugar do fotografado, me causa mal-estar. Como superar esse impasse?
Quando alguém confronta Svenson com a questão da moralidade na obra sobre seus vizinhos, ele costuma defender-se dizendo: “Eu não fotografo nada lascivo ou degradante. Não estou fotografando os moradores como indivíduos específicos, identificáveis, mas como representações da humanidade”. Acredito que ele acredita nisso. Porque é uma das verdades possíveis. Mas há outras.
Não é surpreendente que alguém que se reconheça nas fotos ou reconheça partes do seu corpo ou da sua casa seja incapaz de se ver como “uma representação da humanidade”. O complicador é que aquele que se reconhece só pode se reconhecer como um “indivíduo específico”. Nós, que nos reconhecemos nele, enxergamos apenas a “representação da humanidade”, mas ele, o humano singular, se vê primeiro como indivíduo. O complicador é que aqueles que ali representam a humanidade são também aqueles que vivem a sua vida singular. Essa é a força artística do retrato e também o seu dilema ético.
Quando Svenson diz que não fotografa nada lascivo ou degradante, ele também está assumindo, nas entrelinhas, que viu atos que interpretou como lascivos e degradantes e escolheu não fotografá-los ou, pelo menos, não exibi-los. Não é um enorme poder, o de escolher qual parte da vida íntima de um outro pode ser mostrada, e isso sem que este outro saiba sequer que teve seu cotidiano documentado? Ou o enorme poder de espionar a vida dos outros, alcançando aquilo que o outro pensava proteger atrás da sua janela? Raramente um crime, com frequência um ridículo ou mesmo um desespero?
As fotografias dos vizinhos evocam questões fascinantes deste mundo novo, no qual já se anunciou o fim da privacidade. Ainda que com objetivos e sentidos bem diversos, os retratos da vida íntima de homens e mulheres anônimos estão ligados tanto à espionagem que Obama fez de Dilma quanto às gravações e fotografias que pessoas comuns fazem o tempo todo dos flagrantes de outros, para postar em seguida no YouTube e no Instagram – fronteiras e pudores dissolvidos pela tecnologia. Estariam ligados também ao exibicionismo corrente, expressado pelo ato já corriqueiro de postar as melhores imagens de si mesmo, hábito pelo qual pessoas comuns se forjam celebridades na janela do Facebook?
Talvez a resistência a fotos como as de Svenson, Morozini e outros possa também ser compreendida pelo fato de constituírem uma traição à imagem controlada que tentamos desesperadamente difundir nas redes sociais como a nossa imagem “verdadeira”. Essas fotos roubadas, feitas à revelia, escapam do que se poderia chamar de “controle de qualidade da vida exibida”. Revelam às vezes o tédio e não a felicidade, o ridículo e não a glória, as olheiras e não os olhos maquiados, nosso cotidiano sem Photoshop. A solidão de quem tem centenas, milhares de amigos no Facebook.
Há aqui algo interessante, que aparece tanto na escolha dos fotógrafos quanto na resistência de alguns fotografados: a ideia, bem contemporânea, de uma “verdade” na vida privada. Como se nossas evoluções na esfera pública fossem meras “máscaras sociais” – e estas máscaras sociais fossem decodificadas como “mentiras”. Como se existisse um “eu verdadeiro”, despido de máscaras, que se revela em nosso último ou até mesmo único reduto: entre as paredes da casa. Mas não existe um “verdadeiro eu”, não existe um lugar “em que somos nós mesmos”. Somos todas as nossas máscaras e nossas verdades estão espalhadas. O fato de estarmos com remela nos olhos e com um pijama rasgado na bunda não nos torna mais “verdadeiros” do que de salto alto ou de terno, assim como a melancolia que escapa pelos nossos olhos ao mirarmos o vazio no sofá da sala não é mais ou menos verdadeira do que nossos gestos numa reunião de trabalho.
A vida privada tem sido confundida com “vida real”, o que explica a obsessão das pessoas ditas comuns com a privacidade das ditas celebridades. Assim como a obsessão dos fotógrafos pela vida privada das celebridades – e mais recentemente pela vida privada dos anônimos. Poucos parecem se importar com o fato de a vida privada das celebridades ser constantemente invadida por paparazzi, exceto algumas celebridades. Como se, pelo fato de serem pessoas “públicas”, que ganham a vida por serem públicas, não pudessem ter uma vida privada, longe dos olhos de todos os outros. Mais do que isso: o público que as torna celebridades teria direito de acesso ao “verdadeiro eu” das pessoas que venera, àquela que seria a sua “verdade verdadeira” e que só poderia ser descoberta com flagrantes à sua intimidade.
Quando aparece um outro tipo de paparazzo, o que espiona a vida das pessoas comuns, para muitos é uma violência bem mais óbvia. Por quê? Ou qual é a diferença para as fotos íntimas de celebridades? A suposta verdade dos comuns não interessa a ninguém? Não é o que os preços dessas fotos nas galerias têm mostrado. Ou por que seriam imagens de ninguém em particular ou “representações da humanidade”, como disse o fotógrafo Arne Svenson? Mas se o problema está no fato de as pessoas se reconhecerem na sua singularidade, como alguém com nome, sobrenome, rosto e vida? Se o problema começa na singularização daquele que é, ao mesmo tempo, “representação da humanidade” e algo que ele chama de “si mesmo”? E, nesta singularização, preferia não ser fotografado secretamente de cueca na frente do espelho?
É mais complicado do que parece. O ato de fotografar pode ser julgado em si ou apenas no sentido atribuído a essa fotografia? A mesma fotografia que muitos consideram poética numa galeria de arte poderia ser decodificada como ridícula e virar motivo de escracho se jogada em determinados sites da internet. Ou, usando um exemplo mais explícito, a foto do bebê no banho, que enternece os pais no álbum de família, pode ser erótica para um pedófilo. Se o sentido só pode ser dado depois, a fotografia dos vizinhos nos aproxima e nos conecta na solidão das metrópoles, ao dizer de todos e não apenas de um. Já as fotos das celebridades, mesmo – e talvez principalmente – quando são anunciadas como flagrantes de cenas que as aproximam das pessoas comuns, o que fazem é marcar a diferença. Ambos estão fotografando cenas privadas sem autorização, mas a oposição de sentidos tornaria aquele que expõe a intimidade de celebridades para o gozo do público um invasor e o que expõe anônimos não?
As perdas e ganhos se embaralham. Quem ganha com os retratos da vida privada? O fotógrafo, ao transformar cenas íntimas em arte que fala dessa época histórica. Nós, coletivamente, ao ganharmos um retrato de nossa humanidade, que nos faz transcender – e que transcenderá nossa vida ao alcançar as gerações futuras. Quem perde? Nós, também, individualmente, porque aquele que virou representação é também aquele que vive e que talvez não quisesse ser exposto abrindo a geladeira descabelado para pegar o leite pela manhã. E nós, coletivamente, na medida em que a única alternativa para não ter a intimidade exposta seja cobrir com cortinas nossas escassas janelas, por onde já entra muito menos luz do que gostaríamos.
De novo, como superar esse impasse? Ou o que é mais importante? E quem decide?
Quem observa com atenção a cidade, percebe que mesmo moradores de rua constroem paredes e portas invisíveis embaixo de viadutos ou mesmo nas esquinas. Lá dentro, evolucionam por peças sem paredes como se não fossem vistos por todos. Muitas vezes, diante dessas cenas, tão profundamente humanas, desviei os olhos, em sinal de respeito. Acho que nos humanizamos quando conseguimos enxergar – e respeitar – mesmo as paredes invisíveis. Me parece importante bater, mesmo em portas subjetivas, para que o outro tenha a chance de dar ou não sua permissão. Não é porque não enxergamos, que as portas e as paredes não existem. E não é porque a tecnologia permite, que podemos entrar na casa das pessoas, ainda que em nome da arte – ou do jornalismo – sem antes pedir licença. Mesmo que essa casa seja um amontoado de trapos embaixo de uma ponte.
Poder fazer/alcançar/fotografar/expor, graças à tecnologia, significa auto-autorização para fazer/alcançar/fotografar/expor?
Meu sentimento pessoal com relação à possibilidade de ser fotografada por um vizinho indiscreto é um misto de estranheza e pânico. Para mim, a casa me dá algo fundamental: algumas horas despida não de roupas, mas do olhar do outro. A possibilidade dessa nudez, que vai muito além das peças de vestuário, é importante para a minha sanidade. É o que me dá, às vezes, o espaço/tempo necessário para remendar a minha pele e enfrentar o mundo lá fora. Não é para todos que quero mostrar os meus rombos, assim como não é para todos que quero mostrar meus livros mais queridos ou as lembranças que escolhi para botar sobre a minha escrivaninha. E, mesmo que só eu reconhecesse o meu gesto numa galeria, me sentiria violada e exposta. E talvez começasse a ficar paranoica com esse vizinho que usa sua câmera fotográfica para me espionar e passasse a encenar a minha vida. Ou, como já passei a fazer, fechar as cortinas da peça da casa onde estou. Eu, que gosto tanto de luz.
Meu sentimento pessoal deve ser respeitado ou há algo, que a juíza americana chamou de liberdade de expressão, que deve se sobrepor a ele? Não sei. Será que a liberdade de expressão do fotógrafo, ao registrar secretamente a vida de alguém, não está cerceando a liberdade de expressão dessa pessoa dentro de sua casa? Possivelmente. E o que difere, afinal, voyeurismo de arte? O destino que se dá ao olhar? Ou o sentido?
Alguém tentar entrar fisicamente na casa de um outro sem permissão é ilegal. Mas, pelo menos na decisão judicial americana, a invasão de um olhar não autorizado, que capta uma cena privada e a torna pública, é legal. Mas, ainda que seja legal, é ética?
Tenho dúvidas. O que me parece claro é que essa discussão vai muito além da tensão entre liberdade de expressão e privacidade, como foi colocada. E precisamos discuti-la. Porque é fascinante, mas também porque pode haver um fotógrafo nesse exato momento, empunhando uma teleobjetiva na janela do prédio em frente, sinceramente disposto a fazer poesia da nossa vida privada. Mesmo que, diferentemente do personagem de Janela indiscreta, do clássico de Alfred Hitchcock, nossa maior subversão seja comer leite condensado de calcinha.
(Publicado na Revista Época em 16/09/2013)